Acerca do Estado na América Latina

Por Ruy Mauro Marini, traduzido por Gabriel Landi Fazzio. Fonte: Aquivo de Ruy Mauro Marini, com a anotação “Intervenção no Congresso de ALAS, Havana, 1991. Versão definitiva, publicada en Memoria del Congreso, N. Sociedad”. (Também aparece no arquivo como: Três observações sobre o Estado na América Latina).

Em relação ao tema do qual nos ocupamos: a emergência de uma nova ordem estatal na América Latina, me referirei a três questões principais. A primeira tem a ver com os modos de participação da sociedade nas estruturas e no exercício do poder, ou seja, com a democracia. A segunda, com a capacidade dessa sociedade para formular e implementar políticas atendendo a seus próprios interesses, o que diz respeito à autonomia e, por conseguinte, à dependência. A terceira questão, por fim, se coloca na perspectiva do futuro da América Latina, no contexto das transformações pelas quais passa o mundo neste fim de século.

Poder popular e movimentos sociais

As lutas democráticas contemporâneas na América Latina têm estado fortemente influenciadas pelas mudanças que ela tem experimentado em sua formação socioeconômica, em especial aquelas que levaram à salarização e à urbanização em grande escala, e pelo marco internacional da Guerra Fria, que determinou a acentuação das lutas de classes e a polarização das forças políticas. Manifestações importantes destas lutas foram os esforços radicais por afirmar e ampliar a participação das massas no contexto de regimes burgueses democráticos, que se materializou no fenômeno do poder popular, e a resistência popular a regimes de corte tecnocrático e militar, que deu origem aos movimentos sociais.

Pouco estudado e quase sem bibliografia, o fenômeno do poder popular é hoje praticamente ignorado em nossos estudos sociológicos e políticos. Surgindo de uma forma espetacular no curso do processo chileno da Unidad Popular, representou uma tentativa de massas operárias e populares marginalizadas de organizarem-se e, simultaneamente, constituir um poder alternativo ao do Estado burguês tradicional, cuja lógica sufocava o ímpeto transformador da coalizão de esquerda que governava então o Chile. Seu âmbito de atuação foi eminentemente local, mas sua trajetória implicou transitar da defesa de interesses imediatos à reivindicação de política nacionais. Por conseguinte, suas expressões foram múltiplas, começando pelas juntas de abastecimento e preço, passando pelos chamados “cordões industriais” e chegando aos comandos comunais urbanos e camponeses, que reuniam operários e//ou camponeses, profissionais, estudantes, mulheres.

Fenômeno similar, ainda que mais conjuntural e localizado, se registrou nestes anos em países como Argentina, Colômbia e México. No entanto, somente os regimes de orientação socialista, vale dizer os de Cuba a Nicarágua sandinista, se preocuparam em resgatá-lo e institucionalizá-lo.

Nos países onde a repressão estatal forçou as massas ao recuo, elas se refugiaram em suas últimas trincheiras: a moradia, a escola, o local de trabalho, para desde ali desenvolver a luta pelos seus direitos. O novo sindicalismo brasileiro, peruano, mexicano tem este selo de origem, assim como os movimentos de bairro, ecologistas, geracionais, feministas. À medida que a burguesia aderiu às mobilizações em pró da democracia e tratou de tomar sua condução, ela estimulou esses movimentos a apurar suas especificidades e ainda seu corporativismo, como forma de alijar as massas da luta política geral. A maneira como, no Brasil, ela encorajou com uma mão o desenvolvimento desses movimentos, enquanto com a outra levava ao fracasso a campanha pelo restabelecimento das eleições presidenciais diretas (o chamado movimento pelas “Diretas Já”), ilustra eloquentemente a tática empregada pela burguesia latino-americana para assumir a liderança dos processos de democratização.

Em acordo com o imperialismo, a burguesia acabou por lograr seu objetivo. A hegemonia desta aliança se traduziu na implantação de um projeto de corte democrático-liberal. Do o ponto de vista da reconstrução democrática, esse projeto enfatiza o papel do parlamento, instancia na qual a burguesia pode com facilidade obter maioria, diretamente ou, o que é mais freqüente, através da elite política a seu serviço. Em relação ao papel do Estado na vida econômica, o projeto burguês-imperialista abraça ao neoliberalismo, com o fim de adequar a economia latino-americana aos interesses dos grandes centros, privatizar o capital social que se encontra na esfera pública e limitar a capacidade de intervenção na economia de que dispõe o executiva, seja transferindo parte de suas atribuições ao parlamento, seja apropriando-se a burguesia mesma da outra parte, em nome de supostos direitos da iniciativa privada.

Esse processo se encontra, todavia, em curso e choca-se com muitas resistências. Com efeito, se é certo que o modo como se desenvolveu o movimento popular se constituiu em obstáculo a sua plena afirmação política, lhe proporciona, no entanto, as premissas para uma estratégia de luta pelo poder e para um projeto novo de sociedade. Ao lado de suas organizações tradicionais, como os sindicatos, o movimento popular conta hoje com órgãos de todo tipo, que teve de criar para assegurar seu direito à educação, ao transporte, à moradia, ao abastecimento de alimento, luz e água, os quais lhe conferem um tecido muito mais denso que no passado e uma capacidade insuspeita para compreender, manipular e controlar os complexos mecanismos da produção e circulação de bens e serviços. Por isso, quando a burguesia apresenta um modelo de sociedade que transfere esses mecanismos e seu controle ao mercado e ao parlamento, instâncias onde ela reina soberana, o movimento popular pode contrapor-lhe seu próprio esquema de regime social, baseado na organização das massas em função de seus interesses imediatos e em suas participações direta nas instancias pertinentes de decisão.

A experiência dos povos latino-americanos lhes ensinou que a concentração de poderes na mão do Estado, quando este não é seu, apenas o reforça enquanto máquina de opressão da burguesia. Debilitá-lo hoje, minimizar-lhe a força econômica e política interessa, pois, ao movimento popular, sempre que isto implique transferência de atribuições e riquezas não à burguesia, mas ao povo. Assim, o fim da política protecionista é visto com benevolência. A respeito das privatizações, o movimento popular – sem perder de vista que a propriedade pública sempre é mais permeável às suas demandas que a privada – se orienta em direção à proposta de uma área social regida pelo principio da autogestão e da subordinação dos instrumentos estatais de regulação às organizações populares.

Na luta por sua proposta democrática, o movimento popular avançou consideravelmente em sua capacidade de concretizar alianças e aglutinar amplos setores da população. Desde o fim dos anos 80, os processos eleitorais, no México, no Brasil, na Argentina, no Peru, na Venezuela, mostraram um claro avanço das forças progressistas. O fato de que, na maioria dos casos, os governos resultantes destas eleições tenham assumido a defesa de interesses alheios ao povo é outra história. Isso tem implicado em um divorcio crescente entre as elites políticas e as massas, levando o projeto democrático-liberal a ser cada vez mais questionado.

A tarefa central da esquerda latino-americana consiste em formular uma alternativa viável a este projeto e fazê-lo junto às massas. Nesse contexto, haverá de resgatar as conquistas históricas que as massas tenham logrado já, no seio da sociedade burguesa, e plasmar novos institutos jurídicos e normas de vida, que correspondam a uma sociedade superior. A esquerda terá que alcançar, sobre essas bases, sua unidade, descartando de antemão as idéias dogmáticas e sectárias que fazem dessa unidade um ponto de partida para, ao contrário, pôr o pluralismo político e ideológico como critério fundamental de uma pratica social livre e solidária.

Autonomia e dependência

A respeito do segundo ponto, a capacidade dos países latino-americanos para autodeterminar-se, convém recordar que, nos anos 70, o declínio do poderio norte-americano, vis-à-vis do bloco socialista e dos outros centros capitalistas, abriu caminho a uma maior autonomia dos Estados latino-americanos no plano internacional. Ao lado de projetos de afirmação nacional como o do “Brasil potência” ou o da “Grande Venezuela”, se desenvolve então um vigoroso latino-americanismo, que se expressa na formação do Sistema Econômico Latino-americano (SELA), em 1975, e iniciativas como as do Pacto de São José, mediante o qual o México e a Venezuela buscam atenuar os efeitos causados pela crise do petróleo aos países centro-americanos, ou a do Grupo de Contadora, com o que esses dois países, junto à Colômbia e ao Panamá, tratam de frear o intervencionismo ianque na região.

Nos anos 80, caracterizados pela contra-ofensiva norte-americana, sob o governo de Ronald Reagan, e a queda do socialismo europeu, essa situação se modificou drasticamente. Junto a isto, as convulsões da crise econômica internacional agravaram os problemas latino-americanos. Estado Unidos substitui, então, enquanto instrumentos de intervenção nos assuntos da América Latina, o Departamento de Estado e o Pentágono por seus Departamentos do Tesouro e do Comércio, atuando em conjunto com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Os acordos referentes ao pagamento do serviço da dívida externa e a empréstimos e financiamentos particulares que tenham sido realizados com o FMI e o Banco Mundial, atam das mãos de nossos governos, fixando detalhadamente, por largos períodos, a política orçamentária, os planos de inversão, os montantes dos gastos sociais, os níveis da taxa de juros. Ao firmá-los, os governos latino-americanos renunciam a qualquer pretensão de independência na formulação de suas políticas e passam a dispor de um grau de autonomia praticamente nulo.

Se está impondo, assim, uma política de reconversão econômica funcional aos objetivos dos grandes centros capitalistas. Nesse marco, se atribui a nós obrigação de abastecer a estes com matéria primas e manufaturas de segunda ou terceira classe, a custo do desmonte de nossas estruturas produtivas e de nossos próprios mercados, pouco importando que isto implique a voltar as costas das atenções às necessidades mais elementares da população. Paralelamente, nos força a praticar uma política de privatizações, que transfere a preço vil para as mãos dos grandes grupos, estrangeiros em sua esmagadora maioria, as empresas criadas com fundos públicos, fundos que foram formados por nossos povos com enorme sacrifício. Ao Estado resta pouco mais que a função de reprimir as massas para garantir a consecução destes propósitos.

A esquerda e as forças progressistas da América Latina não dispomos de uma estratégia adequada para fazer frente a esta problemática nem estamos sendo capazes de vincular as lutas populares em pró de uma verdadeira democracia com o projeto de sociedade mais justa e independente. Há uma vazio teórico e ideológico, que se faz tanto mais perigoso quanto mais decidida é a ação dos grandes centros internacionais e nossas burguesias para levar adiante sua política de reconversão.

Todavia, é indispensável preocupar-se com os efeitos econômicos e sociais desta política. A reconversão implica modernizar ou simplesmente destruir setores da produtividade mais baixa, o que impacta negativamente o emprego e contribui por isto à degradação do salário. Cabe às forças populares atuar a favor de pôr em marcha mecanismos compensatórios de transição, enquanto se conclui a construção de um parque produtivo renovado, capaz de competir internacionalmente, reduzindo os custos e ao mesmo tempo elevando os níveis de emprego e salário.

A proposta mesma de reforma do Estado que se tem levantado na América Latina deve ser revisada. Não se trata já de defender indiscriminadamente sua presença na economia nem de bater-se por um protecionismo exacerbado – que só serviram, na maioria dos casos, para transferir valor aos grupos empresarias privados. Trata-se, primeiro, de postular que o Estado assuma papel diretivo nesta nova etapa do desenvolvimento econômico, a fim de orientar o processo e coibir a cobiça dos grupos nacionais e transnacionais. Trata-se, também, de garantir que a privatização das empresas estatais não significa tão somente a entrega do patrimônio público a mãos privadas, mediante transações de seriedade duvidosa, e sim que conduzam a uma crescente participação popular no plano da produção e da distribuição.

Trata-se, afinal, de que as chamadas políticas de austeridade representem realmente o término das transferências de recursos ao setor empresarial privado e impliquem, simultaneamente, o redirecionamento de gasto estatal para as políticas sociais. Nesse contexto, a prioridade – ademais da saúde – é a educação, condição sine qua non para que a população latino-americana seja capaz de ajusta-ser às exigências que as mudanças técnico-científicas acarretam ao nível da produção e dos serviços, além de ser alavanca privilegiada para a elevação política e cultura dos trabalhadores.

 O futuro da América Latina

Chegamos assim a nossa terceira questão, que se refere à possibilidade de existência de uma América Latina integrada e solidária ante os campos de forças que configuram a nova ordem mundial. Não nos preocupa tão somente a emergência de grandes blocos econômicos na Europa, na América do Norte e na Ásia. Preocupa-nos, sobretudo as tendências à transformação da ordem estatal que, presentes a nível mundial, podem balcanizar definitivamente a região, se ela não as canaliza rumo a uma integração superior.

A primeira coisa a considerar é que a integração econômica da América Latina é pré-requisito indispensável à nossa integração à economia mundial. Só assim evitaremos que, dispersos e isolados, sejamos objeto de anexações em separado. Nesse âmbito, e como uma maneira de concentrar nossas forças, haveremos de recuperar muitas das atribuições estatais cujas extinções foram votadas nos processos nacionais de reforma do Estado, atualmente em curso.

Todavia, para que a integração econômica tenha resultados, é preciso ter clareza a respeito dos problemas que ela encerra. De pronto, ela não deve ocultar seu propósito de alcançar uma maior espacialização das economias nacionais, posto que só se pode integrar o que é complementar. Isto supõe a destruição dos setores menos ou não competitivos de alguns países em benefício de outros, ademais de implicar um significativo custo social. Mas o desenvolvimento conjunto, mediante mecanismos multinacionais, de novos setores produtivos e de serviços, principalmente os que se baseiam nas tecnologias de ponta, representa uma compensação mais que suficiente, junto às políticas a serem adotadas para minimizar os custos sociais.

Há um aspecto ainda mais relevante: retirar a integração da competência exclusiva dos governos e da burguesia, mediante o desenvolvimento de uma maior iniciativa por parte das forças populares, o que supõe a coordenação de esforços no plano sindical, social e cultura, assim como partidário e parlamentar. A integração deve deixar de ser um mero negócio, destinado tão somente a garantir áreas de inversão e mercados, para converter-se em um grande projeto político e cultural, tal como a concebeu a melhor tradição da esquerda latino-americana. Isto exige que operários, estudantes, intelectuais, mulheres, organizações sociais e políticas dos países da América Latina forjem os instrumentos hábeis para a unificação de suas demandas e para a coordenação de suas lutas no plano reivindicativo e da legislação laboral, da política educacional e das suas plataformas programáticas, e se batam pela inclusão de seus representantes nos órgãos existentes ou a serem criados nos marcos do processo de integração.

Cabe considerar, finalmente, que a integração política parece estar submetida a um duplo processo. Isso é ilustrado pela emergência de uma Europa ocidental politicamente unificada e, em contraponto, a derrocada do poderoso e ultracentralizado Estado soviético, que deu lugar a uma multiplicidade de novas nações, dentro e fora da atual Comunidade dos Estados Independentes. Mas na mesma Europa ocidental se observa, de forma violente, como no País Basco e na Irlanda, ou pacífica, como na Escócia e na Lombardia, uma séria de nacionalidades reivindicam sua autonomia.

Através do desenvolvimento do mercado comum norte-americano, ninguém pode assegurar que movimentos nacionais autonomistas não venham a ameaçar a integridade territorial do México, com seus contrastes entre norte e sul, perigo que paira igualmente sobre o Canadá, de débil consolidação nacional, e ainda sobre os Estados Unidos, onde se registra a cada dia a heterogeneidade étnica. Considerações desta ordem são válidas para a comunidade em gestação no Cone Sul, em especial o Brasil, dilacerado pelas diferenças que se aprofundam entre as regiões sul e nordeste e assombrado pelos interesses internacionais, que se projetam sobre a Amazônia. Por razões socioeconômicas ou étnicas, a imensa maioria dos países latino-americanos não parece constituir exceção, com destaque para Colômbia, Peru e Guatemala.

Tudo se passa como se estivéssemos assistindo ao começo do fim do Estado-nação, em si expressão necessária e única de afirmação – e negação – das nacionalidades que o desenvolvimento do capitalismo mundial pôs de pé. Em seu lugar, sobre a base de uma internacionalização econômica e cultural crescente, derivada dos movimentos de capital e das novas tecnologias de transporte e comunicação, se esboça a tendência à constituição de entidades internacionais maiores e, com contradição aparente, de entidades nacionais menores e mais estreitamente vinculadas às raízes históricas, étnicas e culturais de cada povo. Integração internacional e direito das nacionalidades à sua plena autonomia –  tal parece ser o marco que começa a forjar-se no mundo de amanhã.

Na melhor tradição da esquerda latino-americana, o sonho de Bolívar e do Che se encontra hoje reatualizado pela própria vida. Nãos no cabe senão lutar por uma América Latina integrada política e economicamente, mediante estruturas supranacionais capazes de assegurar a seus povos e étnicas o direito da desenvolver-se sem obstáculos. Mas, tanto no plano regional como mundial, a desigualdade dos sujeitos que se confrontam e as relações de exploração que subjaze, a todo o processo representam um desafio que demanda um esforço formidável de invenção, tanto mais que mesmo o socialismo se colocou em questão. E, todavia, parece ser altamente improvável que esse novo curso da história possa seguir adiante sem a superação do capitalismo, regime social que se funda na desigualdade e na exploração. Deveremos, assim, revisar nossa concepção de socialismo e, descartando sua identificação exclusiva com a revolução bolchevique e suas vicissitudes, retomar a ideia-chave de Marx, que vê ao socialismo como uma era histórica, fruto de um grande período de transformações e realização efetiva do protagonismo das massas.

Importa pouco que, ao fazê-lo, sejamos tachados de antiquados, modernos, pós-modernos ou simplesmente que se pretenda negar-nos a qualificação científica. A ciência não é um conjunto de procedimentos destinados a embelezar ou escamotear a realidade. A ela cabe lidar com os fatos, ainda que isto implique perder a elegância e sujar as mãos.

A forma pela qual se estão desenvolvendo a democracia, a reconversão econômica e a integração na América Latina, e seus reflexos ao nível da ordem política, está longe de corresponder a nossos desejos. Isso exige que assumamos nossas responsabilidades para com os povos da região e nos esforcemos por indicar-lhes um caminho melhor.

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