Apenas uma esquerda radicalizada pode salvar a Europa

por Slavoj Žižek, via Newstatesman, traduzido por Daniel Fabre.

A austeridade não é “tão radical” assim, como alguns críticos esquerdistas reclamam, mas, ao contrário, demasiadamente superficial, um ato para evitar as verdadeiras raízes da crise, diz Slavoj Zizek.     


Depois do triunfo eleitoral dos partidos anti-imigrantes e eurocéticos em países como França e Reino Unido, muitos liberais expressaram seu choque e preocupação. De qualquer forma, havia algo de uma ingenuidade fingida em sua surpresa e indignação, em seu deslumbramento sobre como a vitória da direita populista foi possível. O que alguém deveria se preocupar é porque a direita anti-imigrante levou tanto tempo para fazer uma ruptura decisiva.

Quando Jean-Marie Le Pen fez uma piada sem-graça sobre câmaras de gás com o cantor judeu pop frânces – “Nós faremos um forno cheio a próxima vez” (Le Pen nega que sua intenção foi anti-semita) – sua filha Marine Le Pen criticou publicamente ele, apesar de que promovendo sua imagem como a face humana de seu pai. É irrelevante se esse conflito familiar é encenado ou real – a oscilação entre as duas faces, a brutal e a civilizada, é o que nega a direita populista. Por baixo da face pública civilizada, lá reluz seu lado escondido obsceno, brutal, e a diferença diz respeito apenas ao grau com que este lado escondido é admitido abertamente. Mesmo se esse lado escondido obsceno permanecer totalmente fora de vista, mesmo se não houver escorregões pelos quais apareça, ele estará lá, como uma pressuposição silenciosa, como um ponto de referência invisível. Sem o espectro de seu pai, Marine Le Pen não existe.

Não há surpresa na mensagem de Le Pen: o usual patriotismo da classe trabalhadora anti-elitista que aponta para os poderes financeiros transnacionais e a burocracia alienada de Bruxelas. E, efetivamente, Le Pen forma um claro contraste com os estéreis tecnocratas europeus: recebendo as preocupações do povo em geral, ela traz a paixão de volta a política. Mesmo alguns esquerdistas desorientados sucumbiram à tentação de defendê-la: ela rejeita os tecnocratas financeiros de Bruxelas não-eleitos, que brutalmente reforçam o interesse do capital financeiro internacional, proibindo estados individualmente de priorizar o bem-estar de sua própria população; ela portanto advoga uma política que estaria em contato com as preocupações e os cuidados de trabalhadores comuns – os excessos fascistas de seu partido são uma coisa do passado… O que une Le Pen e os esquerdistas europeus que simpatizam com ela é sua rejeição compartilhada de uma Europa forte, e o retorno a total soberania dos estados-nações.

O problema com essa rejeição compartilhada é que, como eles dizem em uma piada, Le Pen não está olhando as causas do conflito no canto escuro onde eles realmente estão, mas no debaixo da luz, porque se pode ver melhor lá. Começa com a premissa correta: a falência das políticas de austeridade praticadas pelos especialistas de Bruxelas. Quando o escritor romeno de esquerda Panait Istrati visitou a União Soviética nos anos 30, tempo de grandes expurgos e julgamentos públicos, um apologista soviético tentou convencê-lo da necessidade de violência contra os inimigos, evocando o proverbio “Não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos”, o qual Istrati laconicamente respondeu: “Tudo bem. Eu posso ver os ovos quebrados. Mas onde está o seu omelete?” Nós deveríamos dizer o mesmo sobre as medidas de austeridade impostas pelos tecnocratas de Bruxelas: “Beleza, vocês estão quebrando nossos ovos por toda a Europa, mas onde está o omelete que vocês estão prometendo?”

O mínimo que se pode dizer é que a crise econômica de 2008 oferece muitas provas de como não é povo mas esses especialistas que, em sua grande maioria, não sabem o que estão fazendo. Na Europa ocidental, nós estamos efetivamente testemunhando uma crescente inabilidade da elite dirigente – eles sabem cada vez menos como governar. Olhe como a Europa está negociando com a crise na Grécia: pressionando-a a pagar a dívida, mas ao mesmo tempo controlando sua economia através de medidas de austeridade impostas e assim assegurando que a dívida grega nunca seja paga. No fim de dezembro de 2012, o próprio FMI publicou uma pesquisa que mostrava que os danos econômicos causados por medidas de austeridade agressivas podiam ser até três vezes maiores do que anteriormente assumido, contradizendo assim seu próprio conselho de austeridade para a crise na eurozona. Agora, o FMI admite que forçando a Grécia e outros países com enormes dívidas públicas a reduzirem seus déficits rapidamente seria contra produtivo… agora, depois de que centenas de milhares de empregos foram perdidos por conta de seus ‘erros de cálculo’.

É como se os provedores e zeladores da dívida acusassem os países endividados de não se sentirem suficientemente culpados – eles são acusados de se sentirem inocentes. Lembremos a pressão atual da EU na Grécia para implementar medidas de austeridade – essa pressão encaixa perfeitamente no que a psicanálise chama de superego. Superego não é um agente ética propriamente, mas um agente sádico que bombardeia o sujeito com demandas impossíveis, aproveitando obscenamente a falha do sujeito em cumprir com elas; o paradoxo do superego é que, como Freud viu claramente, o quanto mais obedecemos a suas demandas, mais nos sentimos culpados. Imagine um professor viciado que dê aos seus pupilos tarefas impossíveis, e então sadicamente zombe quando vê sua ansiedade e pânico. Isso é o que é tão errado nas demandas e comandos da UE: eles não dão uma chance a Grécia, porque a derrota grega é parte do jogo.

Aí reside a verdadeira mensagem dos protestos populares ‘irracionais’ na Europa: os manifestantes sabem muito bem que eles não sabem, eles não fingem ter respostas rápidas e fáceis, mas o que seu instinto os está dizendo no entanto é verdade – que aqueles no poder também não o sabem. Hoje na Europa, os cegos estão guiando os cegos. As políticas de austeridade não são realmente ciência, nem mesmo em um sentido mínimo; está muito mais próximo de uma forma de superstição contemporânea – um tipo de reação à uma situação complexa e impenetrável, uma reação do senso comum cego de que “as coisas deram errado, de alguma forma somos culpados, temos que pagar o preço e sofrer, então deixe-nos fazer algo que doa e gaste menos…’. A austeridade não é ‘tão radical’ assim, como alguns críticos esquerdistas reclamam, mas, ao contrário, demasiadamente superficial, um ato para evitar as verdadeiras raízes da crise.

No entanto, pode a ideia de uma Europa unida ser reduzida ao reino dos tecnocratas de Bruxelas? A prova de que não é o caso é que os EUA e Israel, dois exemplares nações obcecadas com sua soberania, em algum nível profundo e ofuscado perseguem a União Europeia como um inimigo. Essa percepção, mantida sob controle no discurso político público, explode em seu subsolo obsceno, a visão política da extrema direita fundamentalista cristã com seu obsessivo temor da Nova Ordem Mundial (Obama está em um secreto conluio com as Nações Unidas, forças internacionais irão intervir nos EUA e pôr em campos de concentração todos os verdadeiros patriotas americanos – a alguns anos atrás, havia rumores de que tropas latino-americanas já estariam no meio-oeste, construindo campos de concentração…). Essa visão tida pela linha-dura do fundamentalismo cristão, exemplarmente nos trabalhos de Tim La Haye et consortes – o título de um de seus romances aponta nessa direção: A Conspiração Europa. O verdadeiro inimigo dos EUA não são terroristas muçulmanos, eles são meramente fantoches secretamente manipulados pelos secularistas europeus, as verdadeiras forças do anticristo que querem enfraquecer os EUA e estabelecer a Nova Ordem Mundial sob dominação das Nações unidas… De algum modo, eles estão certos em sua percepção: A Europa não é apenas mais um bloco geopolítico de poder, mas uma visão global que é, em última análise, incompatível com os estados-nação, uma visão de uma ordem transnacional que garante certos direitos (bem-estar, liberdade, etc.) Essa dimensão da UE provém a chave para a conhecida ‘fraqueza’ europeia: há uma surpreendente correlação entre a unificação europeia e a sua perda de poder global político-militar.

Então o que há de errado com os tecnocratas de Bruxelas? Não apenas suas medidas, sua falsa expertise, mas principalmente seu modus operandi. O modo básico da política atual é uma administração especialista e despolitizada e a coordenação de interesses. A única maneira de introduzir a paixão nesse campo, para mobilizar ativamente as pessoas, é através do medo: medo de imigrantes, medo do crime, medo da depravação sexual, medo de um estado excessivo, com sua sanha por altos impostos, medo da catástrofe ecológica, medo do assédio (A corretude política é a forma liberal exemplar da política do medo). Liberais progressistas têm, é claro, horror ao racismo populista; de qualquer modo, um olhar mais de perto logo revela como sua tolerância multicultural e respeito (étnico, religioso, sexual) pelos outros compartilha uma premissa básica com os anti-imigrantista: o medo dos outros claramente discernível na obsessão liberal com o assédio. Tudo bem com os outros, mas apenas até onde sua presença não seja intrusiva, apenas até onde estes outros não sejam outros…

Não admira que o tópico dos ‘sujeitos tóxicos’ esteja ganhando terreno recentemente. Enquanto essa noção se origina da psicologia popular que nos alerta contra os vampiros emocionais que nos caçam lá fora, esse tópico esta se expandindo muito além das relações imediatas interpessoais: o predicado ‘toxico’ cobre uma serie de propriedades que pertencem a níveis totalmente diferentes (natural, cultural, psicológico, político). Um ‘sujeito tóxico’ pode ser um imigrante com uma doença mortal que poderia ser posto em quarentena; um terrorista cujos planos mortais deveriam ser prevenidos e que pertence a Guantánamo, a zona livre do poder da lei; um ideólogo fundamentalista que deveria ser silenciado porque está semeando ódio; um parente, professor ou padre que abuse de crianças; O que é tóxico é acima de tudo o vizinho estrangeiro como tal, assim o alvo maior de todas as regras que governam as relações interpessoais é pôr em quarentena ou ao menos neutralizar e conter essa dimensão tóxica.

No mercado de hoje, podemos encontrar toda uma série de produtos privados de sua propriedade maligna: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool… E a lista continua: e que tal sexo virtual como sexo sem sexo, a doutrina Colin Powell de guerra sem mortes, a redefinição contemporânea de política como a arte da administração especialista como política sem política, até mesmo o atual multiculturalismo tolerante dos liberais como uma experiência do outro privado da alteridade – o outro descafeinado que dança danças fascinantes e tem uma visão holística ecológica sobre a realidade, enquanto características como ‘bater na esposa’ permanecem fora de vista…

Essa desintoxicação do Outro imigrante não seria o principal ponto do programa Ukip de Nigel Farage? Farage repetidamente enfatiza que ele não é contra a presença de trabalhadores estrangeiros no Reino Unido, que ele aprecia enormemente os poloneses que dão duro e sua contribuição para a economia britânica. Quando lhe foi perguntado na LBC sobre porque ele disse que as pessoas não gostariam de ter romenos vivendo em apartamentos vizinhos dos seus, o contraste foi imediatamente desenhado com os vizinhos alemães – o que o preocupava, disse, era pessoas com antecedentes criminais sendo permitidas a entrar no Reino Unido. Essa é a instância da direita anti-imigrantista ‘civilizada’: a política do vizinho desintoxicado – bons alemães versus maus romenos. Essa visão da desintoxicação do Vizinho apresenta uma clara passagem da barbárie direta para a barbárie com rosto humano. Em que condições isso se aflorou?

A velha tese de Walter Benjamin que por trás de toda ascensão fascista há uma revolução fracassada não apenas ainda guarda relevância hoje, mas talvez seja mais pertinente do que nunca. Liberais direitistas gostam de apontar similaridades entre os ‘extremismos’ de esquerda e direita: O terror e os campos de Hitler imitavam o terror Bolchevique, o partido leninista está vivo ainda hoje na Al-Qaeda – isso não indica como o fascismo repõe (toma o lugar de) uma revolução de esquerda fracassada? O levante do islamismo radical não seria correlato ao desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos? Hoje, quando o Afeganistão é pintado como de maior de todos os países islâmicos fundamentalistas, quem ainda lembra que, 30 anos atrás, ele era um país com uma tradição secular forte, até mesmo um forte partido comunista que tomou o poder independentemente da União Soviética? Como Thomas Frank demonstrou, o mesmo vale para o Kansas, a versão nacional do Afeganistão nos EUA: o mesmo estado que nos anos 70 era berço do populismo radical de esquerda, é hoje o berço do fundamentalismo cristão. E o mesmo vale para a Europa: o fracasso da alternativa de esquerda ao capitalismo global deu lugar ao populismo anti-imigrantista.

Mesmo no caso de movimentos claramente fundamentalistas, deve-se ter cuidado para não perder o componente social. O Taliban é regularmente apresentado como um grupo de fundamentalistas islâmicos que reforçam seu poder com terror – no entanto, quando, na primavera de 2009, eles tomaram o Vale do Swat no Paquistão, o New York Times noticiou que engendraram uma “revolta de classe que detonou profundas fissuras entre um pequeno grupo de riquíssimos aristocratas e seus inquilinos sem-terra”. Se, tirando vantagem do martírio dos agricultores, o Taliban está “alertando o Paquistão, que permanece largamente feudal”, o que impede os democratas liberais de no Paquistão, assim como os EUA de forma parecida ‘tiram vantagem’ desse martírio, tentar ajudar os agricultores sem-terra? A triste implicação desse fato é que as forças feudais no Paquistão são o ‘aliado natural’ da democracia liberal… E, mutatis mutandis, o mesmo vale para Farage e Le Pen: sua ascensão é o anverso do fracasso da esquerda radical.

A lição que os assustados liberais deveriam aprender é portanto: que apenas uma esquerda radical pode salvar o que vale ser salvo do legado liberal. O triste prospecto que espreita se isso não ocorrer é a unidade de dois polos: o governo dos tecnocratas financeiros sem nome usando a máscara das pseudo-paixões populistas.

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3 comentários em “Apenas uma esquerda radicalizada pode salvar a Europa”

    • Prezado, anverso tem o sentido de “outro verso”, não de algo oposto à.
      Significado de Anverso: s.m. Face de uma moeda ou medalha que mostra o elemento principal (por opos. a reverso).
      De qualquer modo, muito obrigado pela atenção na leitura! 😉

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