Poder Popular: os Cordões Industriais e Comandos Comunais no Chile

Segue abaixo continuação da tradução inédita para o português do último capítulo do livro do historiador chileno Hugo Cancino Troncoso, Professor Catedrático da Universidade de Aalborg na Dinamarca, chamado: “Chile: A problemática do Poder Popular no processo da via chilena ao socialismo, 1970-1973”, publicado em 1988 pela Aahus University Press.

O capítulo selecionado proporciona uma ampla visão sobre a emergência do Poder Popular no Chile e as tensões sociais que se disseminaram pela sociedade durante os últimos anos do governo da Unidad Popular, antes do golpe de estado de 11 de Setembro.


8.2.2 – Desenvolvimento dos Cordões Industriais e Comandos Comunais

No transcorrer do primeiro semestre de 1973, os Cordões Industriais começaram a adotar um modelo organizativo comum, que com variantes locais se gerava através das seguintes fases: a) A Assembleia de Trabalhadores de cada indústria ou empresa compreendida no raio geográfico do Cordão Industrial respectivo elegia entre 2 a 3 representantes ao Conselho do Cordão. Para ser eleito delegado não se requeria necessariamente estar investido da qualidade de dirigente sindical; b) Os delegados de cada fábrica se constituíam no Conselho de Delegados do Cordão Industrial; c) O Conselho elegia entre seus membros a direção do Cordão Industrial. Estava contava, no geral, com um presidente e uma série de encarregados das Secretarias de Organização, de Agitação e Propaganda, de Defesa, de Cultura e de Imprensa.

No mesmo período organizativo surgiu um sistema de imprensa e comunicação dos Cordões Industriais e do Poder Popular. Se tratava de jornais de circulação irregular, editados na maioria dos casos em mimeógrafos e excepcionalmente impressos em gráficas. Pode-se mencionar a respeito publicações como “El Cordonazo” e “Puño Obrero”, publicados pelo Cordão Vicuña Mackenna, e “Tarea Urgente”, publicação de aparição mais regular, que se definia como órgão dos Cordões Industriais e do Poder Popular.

Até o primeiro semestre de 1973, os Cordões Industriais não contavam com uma instância regular de coordenação a nível provincial na Grande Santiago, ainda que às vezes e conjunturalmente seus dirigentes se reunisem para planejar mobilizações conjunturais, ou elaborar plataformas reivindicativas. A esse respeito, podem citar-se: a) As mobilizações de janeiro de 73 contra o chamado projeto “Millas”; b) A apresentação de uma plataforma programática dos Cordões Industriais de Santiago em fevereiro; e c) Por último, as ações e mobilizações definidas pelos Cordões na ocasião do “tanquetazo” [levante militar fracassado] em 29 de junho e nos dias seguintes. A capacidade de mobilização e de convocatória de cada Cordão dependia de seu grau de organicidade e da população industrias que este abrigava. O presidente do Cordão Cerrillos, Hernán Ortega, declarava em maio de 73: “Em regra se mobilizam em torno de 45 indústrias, que representam mais ou menos trinta mil trabalhadores”. Não se têm registro fidedignos acerca do nível organizativo, do funcionamento e da capacidade de mobilização dos Cordões Industriais de Valparaíso, Concepción e outras cidades industriais. Em todo caso, o processo de suas constituição parece ter sido lento em comparação com Santiago. A formação dos Cordões Industriais foi um processo dependente da correlação de forças existente ao interior da esquerda, e ainda dos alinhamentos de tendências no interior dos partidos da UP, em particular o PS, que fomentava o desenvolvimento do Poder Popular. As contradições interpartidárias e intrapartidárias a nível nacional, local e ainda setorial se projetavam nos Cordões e outras organizações do Poder Popular. As relações entre os Cordões e a CUT constituíam uma frente de tensões, rusgas, suspeitas e concorrência de capacidades e poderes entre ambas organizações. Os dirigente dos Cordões, contudo, reconheciam publicamente o papel e a trajetória da CUT. A CUT, por sua vez, havia perdido sua imagem de organização classista no transcurso do Governo da UP. Para os setores mais radicalizados da classe trabalhadora, a CUT e seus dirigentes apareciam como uma instância afastada demais de suas lutas cotidianas. Se associava a CUT a emissários ministeriais e burocráticos, mas não se via seus militantes na base. O Subsecretário Geral da CUT, Jorge Godoy, militante comunista, atribuiu em dezembro de 1972, a crise de representação da CUT a fatores de ordem organizativa, na medida em que a estrutura da CUT se ajustava às subdivisões administrativas do país e nãos respondia à realidade geográfico-espacial dos Cordões Industriais que transpassavam as subdivisões comunais ou departamentais. Godoy admitiu que os Cordões Industriais como instâncias de coordenação substituíam em muitos casos as funções da CUT: “A tendência espontânea à organização para mobilizar-se e apoiar-se na luta tem sido há muito tempo os Cordões Industriais: por exemplo, o Cordão Vicuña Mackenna, que abarca 2 comunas, Ñuñoa e Pedro Aguirre Cerda (…) É necessário”, concluiu Godoy, “colher e adaptar toda essa nova experiência”. Existem indícios que os dirigentes comunistas da CUT propunham a integração dos Cordões à CUT como organismos de base territorial. Essa discussão se reativou no seio da CUT depois do “contato subversivo” de 29 de junho. Esta iniciativa se motivava no suposto perigo de os Cordões Industriais se transformarem em um organismo paralelo à CUT. Até fins de junho os comunistas não participaram fortemente, ou seja, como partido, nos cordões. Sua aceitação da realidade do Poder Popular, especialmente dos Cordões, se expressará depois do “tanquetazo”, não sem reservas e condicionantes. As tensões entre a CUT e os Cordões chegaram ao ponto alto quando a CUT, depois de 29 de junho, ordenada o recuo do movimento operário, a normalização da produção e o fim da ocupação de fábricas, enquanto os Cordões conclamaram a execução de ações de mobilização para evitar um possível contato sedicioso.

Mesmo os Cordões Industriais tendo emergido antes da crise de outubro, e depois apresentarem maior dinamismo e capacidade de convocatória e mobilização, o debate posterior a outubro sobre a problemática do Poder Popular se centrou nos Comandos Comunais como paradigmas do Poder Popular. Em um primeiro momento, o próprio Partido Socialista interpretou o Poder Popular como uma instância de base que deveria abarcar e coordenar um universo social mais amplo e plural que exclusivamente a classe trabalhadora. A partir de uma leitura distinta das alianças de classes, dos sujeitos populares em um rumo ao socialismo, o MIR definiu o Poder Popular em sua forma de Comandos Comunais. Contudo, a conotação de “popular”, como assinalado anteriormente, assumiu valorações distintas em ambas as coletividades políticas. Para o PS e em particular para o Presidente Allende, o Poder Popular configurado como Comando Comunal permitiria conjugar/articular, na base, a aliança da classe trabalhadora organizada com diversas organizações comunitárias, que compreendiam camadas sociais heterogêneas, associações e grupos culturais. O Poder Popular em sua forma de Comando Comunal se configurava como concretização do bloco social que a via político-institucional ao socialismo requeria para seu êxito. Nesta relação, esta aceitação do Poder Popular, se delimita uma compreensão reducionista de “Poder Operário” ou Poder Proletário, que exclui os sujeitos sociais não inseridos no universo da produção industrial. Entretanto, não estiveram ausente dentro do PS as tendências portadoras de um vanguardismo proletário, definido a priori, no que se estabelecia que a conformação dos Cordões Industriais deveria ser priorizada e que os Comandos Comunais deviam ser dirigidos pela classe operária. O MIR formulou com anterioridade à crise de outubro a tese dos Conselhos Comunais de Trabalhadores, órgãos que deviam articular as massas urbanas pobres com a classe trabalhadora tradicional. Ainda que aparentemente a concepção do MIR não incorresse em um reducionismo classista ou obreirista, ao incluir camadas e setores não proletários do universo urbano, nos parece que a posição do MIR tem em última instância outras vertentes explicativas, que seriam a nosso juízo as seguintes: a) A escassa influenciado MIR/FTR no meio operário, claramente demonstrada nas eleições para o Conselho Diretivo Nacional da CUT, onde obteve modestos 1,8% dos sufrágios emitidos em votação direta. Por isso, o MIR não podia contribuir com a formação de Cordões Industriais nem menos ainda disputar neles o papel de condução em oposição aos militantes do PS nesses órgãos; b) O controle de cúpula exercido pelo MIR sobre fragmentos dos movimentos comunitáriose estudantis através de suas organizações de frente, como o MPR e o FER (Frente de Estudantes Revolucionários) lhe permitia esboçar conjunturalmente Comandos Comunais, a maioria de precária base social de apoio. Apesar da devoção e disciplina dos ativistas do MIR nos distintos setores do movimento popular, estes não puderam ampliar a reduzida capacidade de convocatória social do MIR. Isso não lhes permitiu que, enquanto organização, plasmassem na prática da base social os Conselhos Comunais, nem tampouco generalizar os Comandos Comunais. O MIR deu a conhecer publicamente em julho de 73 uma proposta de esquema organizativo para os Comandos Comunais, onde se descrevem as distintas funções e tarefas das instâncias organizativas. No entanto, os redatores da proposta omitiram a inclusão de uma ampla gama de entidades componentes do Comando Comunal, aos Cordões Industriais. Por outro lado, na proposta não se elucida se são as organizações populares pré-existentes no âmbito comunal, JAP, sindicatos, juntas de vizinhos, etc, as que enviam delegados ao Conselho do Comando Comunal ou se os as distintas “frentes” que se mencionam no texto correspondem aos organismos de frente controlados politicamente pelo MIR.

No esquema organizativo dos Comandos Comunais apresentado por Benítez, da Comissão Política do PS, são “os órgãos já existentes, a CUT, os sindicatos, as JAP, as Juntas de Vizinhos, os centros de mães, os centros culturais e, em geral, as organizações culturais de cada localidade” as entidades que elegem representantes para a chamada assembleia permanente do Comando Comunal. Este órgão “elegeria um Secretariado executivo cuja função específica seria levar a cabo as resoluções da assembleia permanente: a assembleia permanente será a mais alta autoridade de coordenação a nível local”. É perfeitamente presumível que combinações ou adaptações entre ambos modelos fossem aplicadas na organização dos Comandos Comunais. Em todo caso, a estrutura elegida dependia de circunstâncias locais e dos grupos políticos influente no interior das organizações populares de base. Os Comandos ou Coordenadores Comunais, como se os chamou indistintamente em outubro, surgiram em uma primeira fase para enfrentar e resolver tarefas do abastecimento, distribuição e do apoio ao Governo e ao processo. Outros se formaram por uma decisão política do MIR, do PS ou de outros grupos da UP, e alguns nasceram como ponto de partida de uma mobilização cidadã local para solucionar problemas que atingiam à sua comuna. Neste último caso citado, se inscrevem a organização do Comando Comunal de Constitución, cidade no interior da região do Maule, no centro do Chile. O movimento cidadão coordenado por este Comando Comunal culminou com a tomada simbólica da cidade em 10 de maio de 73.

Sumariamente reportamos a concatenação de causas que conduziram a esta ação sem precedentes ao governo da UP. A governadora de Constitución, María Tejos San Martín, militante do grupo API da UP, segundo os populares, se negou durante anos a tender as demandas do movimento de “sem-tetos” da comuna. A representante do Poder Executivo não demonstrava disponibilidade para discutir com as organizações de moradores os problemas habitacionais, de infraestrutura e de abastecimento que afetavam com singular dureza cerca de 3 mil pessoas do Acampamento “Vietnam Heroico”. Em 21 de fevereiro de 73 se celebrou uma Assembleia do Povo, convocada pelas organizações sindicais e de massas do Departamento, reunião que foi respaldada pelo PS, MAPU, MIR, IC e o PR. A Assembleia resolveu constituir formalmente o Comando Comunal, o que coordenou 8 sindicatos da indústria d e celulose CELCO, os moradores do Acampamento “Vietnam Heroico” e organizações estudantis. Também se elaborou uma plataforma de luta que incluía as demandas mais sentidas, como a solução do problema da moradia e do abastecimento. A governadora, depois de dois meses de espera, não u conta de satisfazer às reivindicações. Na terça-feira, 10 de abril, se reuniu novamente a Assembleia do Povo, na Praça das Armas, convocada pelo Comando Comunal, e com o apoio expresso dos mesmos partidos políticos anteriormente elencados. A assembleia decidiu: “1- Exigir a renúncia da governadora e do inspetor da DIRINCO. Em caso e negativa proceder à tomada simbólica da cidade. 2- Reconhecer o Comando Comunal De Trabalhadores como condutor do movimento. 3- Criação imediata das brigadas de vigilância, abastecimento, saúde, limpeza e organização de tarefas. 4- Petição ao Ministro do Interior para que nomeie como governador o secretário do Comando Comunal de Trabalhadores, Arturo Rivieros. 5- Rechaçar todo gesto ou composição para a manutenção em seu cargo da governadora ou para a designação de outra autoridade não proposta pelo Comando Comunal”. A governadora se negou a aceitar o pedido de renúncia, e o Comando Comunal procedeu imediatamente à disposição da tomada dos edifícios do Governo, que ademais funcionava como sede dos serviços públicos; as vias de acesso à cidade foram obstruídas com barricadas. Os trilhos de trem que unem Constitución com Talca passou para o controle do Comando Comunal. Dispôs-se, ademais, declarar o Comando Comunal em “Assembleia Permanente”. Ao dia seguinte, quarta-feira 11 de abril o Comando Comunal decidiu terminar a tomada, quando o Ministro do Interior designou como governador sub-rogante Artur Rivieros. O caso relatado constitui, contudo, uma exceção e não deve ser superdimensionado, nem interpretar-se como um exemplo de prova do protagonismo dos Comandos Comunais, ou da implementação generalizada de formas de democracia direta. O Comando Comunal se organizou no contexto de relações conflituosas entre a governadora e os movimentos de moradores. Os sindicatos locais e um amplo arco de organizações políticas respaldaram as reivindicações dos moradores e as mobilizações, participando do Comando Comunal. A plataforma de luta da Assembleia do Povo no desafia em nenhum ponto o programa da UP, nem questiona o governo de Allende. O eixo do conflito foi a negligencia a autoridade para solucionar um problema da comunidade. A governadora pede legitimidade como representante do Governo. O povo organizado no Comando Comunal exerce o direito de petição e de proposição à autoridade central. Si abstrairmos este acontecimento de seu contexto político conjuntural, parece que seja um exemplo de exercício da democracia direta, como uma ação cidadã, em que os únicos elementos de força-violência são as ocupações e as barricadas. Situado acontecimento em seu contexto histórico real, maio de 73, sua avaliação não resulta favorável. O governo da UP se encontrava cercado pelas mobilizações sociais da oposição da ENU e da guerrilha parlamentar. A estruturação de uma aliança conjuntural a nível local entre setores da UP e do MIR não ajudava a fortalecer a imagem do Governo e da UP, senão que fazia perceptível fendas profundas em seu seio. A “Tomada de Constitución” e outras ações semelhantes levantavam a problemática dos limites da mobilização dos movimentos populares dentro dos marcos da via político-institucional ao socialismo. Por um lado, estes movimentos aprofundam as práticas democráticas, geram novos espaços de exercício e realização da democracia, mas por outro lado podem, como ocorreu no caso chileno, não só reativar e rearticular camadas médias em torno do polo opositor como contribuir para constituir-se em fator de desestabilização do sistema político institucional.

Nos meses posteriores à paralisação patronal, funcionaram cerca de 20 Comandos Comunais na Grande Santiago, chegando a somar cerca de 100 ao nível nacional, com heterogêneos níveis de organização e apoio de organizações de base. Não existem dados fidedignos sobre o numero preciso de organizações populares articuladas nestes Comandos. Do mesmo modo as informações são difusas e escassas acerca dos Comandos Comunais que existiram e funcionaram em granes cidades como Valparaíso e Concepción e em cidade pequenas do norte do sul do Chile. Parece haver acordo que entre os meses de janeiro e junho de 73 se afirmou uma tendência ao fortalecimento dos Cordões Industriais, em detrimento dos Comandos Comunais. Segundo o estudo de Pastrana e Therelfall, a partir de janeiro de 73 “a frente sindical e popular assumem uma dinâmica própria, construindo organizações separadas”. Os Cordões Industriais passam a articular o setor de vanguarda da classe trabalhadora. No mundo popular, emergem organizações de base para encarar e resolver os problemas de abastecimento, os Comandos Comunais de Abastecimento Direto e os armazéns populares, uma vez que se generalizam as JAP.

  

A SEGUIR: AS ORGANIZAÇÕES DE ABASTECIMENTO DIRETO E O PODER POPULAR

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