Antes do Amanhã: Para uma Crítica da Razão Neurobiológica

Por J-C Martin, via Strass de La Philosophie, traduzido por Daniel Alves Teixeira.

Em entrevista para J-C Martin, a filosofa Catherine Malabou debate a ideia de “virar a página” da metafísica kantiana – e o que as recentes descobertas neurológicas sobre a formação do cérebro humano podem implicar para a filosofia.


J-C Martin: Seu livro que acaba de sair pela PUF nasceu de uma injunção de Quentin Meillassoux relativa à finitude, “Depois da finitude”. Qual o valor desse “Depois” que nos convida de alguma forma a terminar com a finitude e, principalmente, virar a página kantiana? Como você recebeu essa proposição e qual a leitura que ela produziu em você para dar início a sua própria reflexão?

Malabou: Eu reagi de início à questão do transcendental, mais do que àquela da finitude. Você vai me dizer que é a mesma coisa, mas é preciso, apesar de tudo, distinguir dois níveis de análise. Isso que Meillassoux chama finitude não é imediatamente a finitude existencial tal como Heidegger a compreende e que ele, de fato, identifica, em “Kant e o problema da Metafísica”, ao transcendental. Nós sabemos que para Heidegger, transcendental remete primeiramente a “transcendência”, ao ato de sair para fora de si, característica do sujeito finito que, não podendo dar a si mesmo o objeto, tem de encontrá-lo do lado de fora. A estrutura da transcendência assim entendida é, para Heidegger, o tempo.

Para Meillassoux, a finitude aparece como alguma coisa mais lógica, por assim dizer, como uma estrutura de ligação, que ele chama “correlação”, entre o sujeito e o objeto, sem relação com algo como o ser para a morte. Trata-se em verdade de visar, sob o nome de “correlação” ou finitude, um pressuposto ontológico e gnosiológico, segundo o qual o mundo não pode se dar senão a um sujeito, segundo o qual igualmente tudo começa por essa relação sujeito-objeto. Assim, o real não poderia existir sem “nós”. Tudo começa pela presença da doação. Com a ideia de “síntese a priori”, Kant confere a essa primazia da correlação sua expressão mais alta. Ele nomeia “transcendental” o conjunto dos elementos que formam a armação do conhecimento. Finitude aqui, entendida a partir da correlação, designa então menos uma exposição ao fim do que limitação principiante do conhecimento: o mundo não possui existência nem passado nem futuro fora do como nós o pensamos, fora da maneira pela qual as estruturas transcendentais autorizam a ele essa determinação. “Depois da finitude” se entende, portanto, como um “depois do transcendental”. Mais tarde certamente, a finitude será analisada por Heidegger em um quadro de uma analítica existencial. Mas isso não pode fazer esquecer o correlacionismo que subentende tal quadro do qual Heidegger, segundo Meillasoux, ainda é prisioneiro.

Ele manifestou, em seu livro, sua decisão de “abandonar o transcendental” e é essa expressão que deteve primeiramente minha atenção.  Eu não posso parar, desde então, de tentar compreendê-la, de fazê-la um desafio que eu me comprometi a revelar.

J-C Martin: Se eu compreendi bem, “Depois da finitude” se coloca sobre um certo limite. Não é aquele de um acesso à coisa. Eu acedo geralmente à coisa pelas intenções que tomam a forma da receptividade, e por consequência segundo o transcendental de uma intuição finita. Então nenhum acesso de formas a priori que não seriam as nossas. Mas então, se não há acesso correspondente ao transcendental do sujeito humano ou talvez do dasein, existe de qualquer forma alguma coisa como uma saída. Bem …. sair da finitude ou aceder a coisa me parece levar ao mesmo efeito de limiar. A palavra depois é mesmo muito próxima daquilo que ela precede e que ela nomeia. Você, você nos dá ao contrário o sentimento de outra coisa. Primeiro pela ideia de epigénese. O “epi” dessa gênese se mantém sobre um limite formador que não é nem um acesso nem uma saída, mas uma formação. Você poderia precisar um pouco esse trabalho formador de uma relação embrionária que nega tanto o sujeito fundador como a coisa em si?

Malabou: Com efeito, você tem razão, existe mesmo em Meillassoux alguma coisa como uma saída. Eu quero prová-lo por essa frase: romper com o transcendental, nós a lemos em “Depois da finitude” (p.38), implica em “sair de si mesmo, de se apoderar do em si, de conhecer isso que nós somos ou não.” Mas não se trata da mesma “saída” que aquela que supõe, segundo Heidegger, a transcendência. Para esse último, a saída, como eu o disse, é o êxtase do sujeito que encontra do lado de fora o dado fenomenal. Todavia, a estrutura da relação sujeito-objeto não é transtornada por essa saída, ela é mesmo sua condição. Para Meillassoux, ao inverso, a saída é sair fora dessa estrutura ela mesma, ruptura, passagem ao além. Sair de si significa sair do si, sair do nós, partir para o fora absoluto de um mundo deserto, desafetado, indiferente ao fato de ser pensado. Não é então uma transcendência mas um corte decisivo.

Minha questão é essa de saber se é ou não possível abandonar o transcendental que, isso me aparece hoje de maneira radical, é a noção resolutamente indesconstrutível da filosofia continental. Aquela que recebeu mais golpes (Hegel, Heidegger, Foucault, Derrida, Deleuze, Badiou), mas que resiste e assombra a filosofia contemporânea como sua questão mais urgente. É essa resistência que eu tento pôr a prova aqui.

Se uma tal resistência é real, e ela é, isso quer dizer que toda crítica do transcendental não é, mutatis mutandis, mais do que uma nova versão, uma transformação do transcendental. Portanto Meilassoux não faz no fundo senão trazer à luz do dia novas condições de possibilidade do pensamento. Foucault via aí a prova do caráter “histórico” do transcendental, eu prefiro dizer “epigenético”, pois Kant nos estende o termo como um presente. “Epigenético” tem o mérito de situar a transformação no nível da natureza, da vida. O transcendental, muito simplesmente, está vivendo. Esse é o vertiginoso problema que nos lega Kant. Sem brincar com as palavras, o transcendental não está morto.

J-C Martin: Vamos agora então a essa questão da vida. Em que ela se coloca na borda do transcendental para nele repetir seu caráter fixo, como o a priori se modifica de maneira dinâmica (plástica para repetir um conceito que você havia renovado em um trabalho anterior), como ele entra, se assim você quiser, em uma mutação através do contato com a vida, de suas finalidades sem fim? Não é preciso pensar, como diria Foucault, sobre a forma de uma linha de enfrentamento?

Malabou: O vivente é o grande desafio dirigido ao transcendental, como testemunha a terceira Crítica. Por várias razões de fato, ele opõe às categorias uma indiferença que força o julgamento a ter de inventar um universal, é o famoso julgamento reflexivo. O determinismo que prevalece na necessidade física não é adequado para a natureza vivente. O vivente é organizado, mas essa organização é de uma ordem que ao mesmo tempo dispensa a ordem, não há nenhuma necessidade de ser julgada, classificada, subsumida. Como pensar então sua factividade? A terceira “crítica” procura trazer a luz essa “legalidade do contingente”, a ordem dessa ordem que não é mecânica mas teleológica.

Eu insisti sobre este ponto nos últimos capítulos do livro para mostrar primeiro que Kant absolutamente não se evadiu do problema da contingência. Esse problema não deve ser procurado, contrariamente ao que faz Meillassoux, na primeira mas na terceira “Crítica”. É verdade que para Kant não há esperança em pretender afirmar que não há necessidade física, que a terra pode deixar de ser redonda, ou o mercúrio se tornar azul. Essa contingência é infantil em seu conceito e sem futuro em seu fenômeno. Em revanche, que as criaturas da natureza sejam tão diversas que elas não poderiam entrar nos quadros categoriais, que ali existam vários tipos de necessidade, eis o que é uma contingência mais interessante e mais ameaçadora. Eu mostrei como ela se prolonga com o darwinismo neural no fim do século XIX e hoje com a epigênese.

Minha insistência acerca da biologia tem também por objetivo contestar o privilégio exclusivo que Meillassoux confere às matemáticas. Existe evidentemente uma reflexão biológica sobre a contingência, mais convincente fenomenologicamente que todos os raciocínios puros sobre o aleatório.

Enfim, no que concerne à plasticidade, eu não utilizei o termo em meu livro. Ele não aparece mais que uma vez, e é sobre a pena de Gérard Lebrun. O que eu quero fazer com o transcendental, é mostrar que nós podemos dissociá-lo do autêntico. Eu não sei se dizer que ele é plástico é pertinente para pensar isso. Eu estou um pouco aborrecida que queiram relacionar tudo o que eu digo com a plasticidade. Não é isso que você faz, mas eu aproveito a ocasião para dizê-lo.

J-C Martin: Sim, falando do enfrentamento eu tinha antes no espírito uma ontologia do acidente do que eu diria plástica. Eu pensei, digamos, em uma fronteira acidentada naquilo que ela supõe uma relação com o exterior. E, mesmo porque se trata de interioridade, o acidente nos coloca em relação não mais com o inato mas com uma forma de negatividade que poderia ser transcendental. Você poderia vir novamente um pouco sobre esse lugar do negativo em seu pensamento mesmo se esse papel do negativo intervém menos em seu último livro? Quando existem formas de desestruturação nós podemos ainda considerá-las como programas?

Malabou: Em um de seus seminários sobre a negatividade em Hegel (GA 59), Heidegger se pergunta por que este se recusa a conferir a negatividade um estatuto explicitamente transcendental. Ele declara que, na “Fenomenologia do Espírito” ao menos, a negatividade aparece como “dor transcendental” da consciência. A questão é importante: é a negatividade que é transcendental, ou bem há negatividade porque o transcendental se contradiz sempre ele mesmo de uma maneira ou de outra? Segundo eu, é a segunda resposta possibilidade que constitui a resposta de Hegel.

Em meu livro, de fato, essa auto-contradição aparece sem cessar uma vez que eu tentei mostrar como, através das diversas leituras que foram feitas do transcendental kantiano, este vem sempre a se contradizer. Você tem então razão de falar do transcendental como uma linha de fratura. È bem esse estatuto que é interessante. Um transcendental sem negação não seria que uma forma fixa, inata. Eu devo lhe dizer que minha leitura de Kant é bastante hegeliana. Hegel fez meu olhar de maneira indelével.

J-C Martin: Já que nos estamos liberados das formas fixas e inatas e de outros objetos nós interpelando como os de Deus, do Eu e do Mundo, o que você faz como o cérebro? Que lugar tem essa interrogação neurológica na filosofia que, em nome da consciência transcendental, evita frequentemente de se colocar essa questão?

Malabou: Meu livro é também uma reflexão sobre a origem das categorias do pensamento, uma vez que essa questão se encontra no centro da “Crítica da razão pura”. Como nós sabemos, Kant diz dessas categorias que elas não são nem inatas nem adquiridas, mas presentes no espírito a priori. Para explicar isso um pouco mais claramente, ele afirma que essas categorias são “originariamente adquiridas”, paradoxo apaixonante no qual eu estou muito interessada. Imediatamente, tal origem parece estar em contradição total com uma origem biológica. A priori não quer dizer “no cérebro”, evidentemente. E no entanto…. a revolução neurobiológica que teve lugar nos anos 80 modificou profundamente a visão do cérebro e de se desenvolvimento. Precisamente, em um ponto de passagem com Kant que eu não podia não deixar de marcar, o desenvolvimento cerebral é dito ser epigenético: isso quer dizer que ele continua após o nascimento e não é então inteiramente determinado. Ele é aberto a todo tipo de influência: hábitos, educação, ambiente…. Em uma palavra, ele não responde estritamente a um programa. O desenvolvimento cerebral parece ele também ocupar um espaço intermediário entre inato e adquirido. Quais são os possíveis paralelos entre epigenética contemporânea e epigénese crítica? Entre as neurociências e a filosofia kantiana? Aqui há, mais uma vez, mais do que nós acreditamos.

Depois do início, em meu trabalho, eu procuro fazer compreender que as recentes pesquisas em neurobiologia quebraram os clichês de um cérebro-máquina, robô, determinado, voltado para a transmissão de informação e a economia dos reflexos. É importante recolocar em causa a distinção entre espírito e cérebro pela forte razão que o lugar desta distinção se torna cada vez mais improvável. Mas o fato de assimilar os dois não é no entanto reducionista no sentido forte. Precisamente, uma nova crítica é necessária, que eu chamo pelos meus votos, uma crítica da razão neurobiológica. E Kant, sobre este ponto como em tantos outros, pode nos ajudar. Explorar uma proximidade do transcendental e o neuronal é uma tarefa necessária e fascinante.

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