A espontaneidade na revolução espanhola

Por Enric Mompó*, via O Olho da História, traduzido por Jorge Nóvoa.

81 anos após a insurreição que estabeleceu a chamada Comuna de Astúrias, um debate sobre a relação entre espontaneismo e organização consciente pode ajudar a entender as raízes de seu fracasso. Tal tipo de análise, iniciada com Marx em seu estudo da Comuna de Paris, permite à esquerda se orientar pelos acertos e erros das experiências do passado. 


 

A espontaneidade é um dos fenômenos mais difíceis de se analisar na história. Com frequência, fala-se dos grandes personagens, conhecem-se seu pensamento e suas ambições, que representam os interesses das camadas dominantes da sociedade. Todavia quase se desconhecem a consciência, os desejos e a forma de pensar da imensa maioria da sociedade, a miúdo aprisionada pelo pensamento oficial. Há também momentos na história em que esta consciência social se revela de forma clara e manifesta, sem que intervenham para isto outros fatores. Contudo, com frequência, os estudiosos interpretam a espontaneidade sob o peso deformador da ideologia e alguns chegam à conclusão de que a espontaneidade social é a panaceia dos males que assolam a humanidade, enquanto outros a menosprezam a ponto de considerar que a história é decidida pelas pequenas minorias dotadas de um objetivo e de uma vontade e para quem a imensa maioria da sociedade se reduz a um corpo amorfo, a uma marionete que obedece aos desígnios da elite que possui maior clarividência e audácia. Entretanto, estas concepções são equivocadas e talvez um dos acontecimentos históricos que melhor o demonstrem é a Revolução Espanhola.

Ao longo do século XX, ocorreram numerosas revoluções sociais, e, sem dúvida alguma, a espanhola figura entre as mais emblemáticas e polêmicas. A espontaneidade é um dos traços mais significativos da Revolução Espanhola. Não por casualidade, o historiador francês Pierre Broué qualificou o movimento operário espanhol na Revolução, como “a hidra sem cabeça” [1]. A Revolução Russa, como a alemã, contou com grupos que encarnaram os desejos revolucionários das massas, seus verdadeiros protagonistas. Distintamente, na Revolução Espanhola existe um profundo corte entre suas demonstrações espontâneas e as organizações políticas e sindicais existentes. Esta característica põe ao desamparo um campo de estudos no qual poucos historiadores se aventuram. A maior parte das realizações da Revolução Espanhola não se achava prevista nos programas dos partidos e dos sindicatos. Ao contrário, a classe trabalhadora e o campesinato pobre criaram organismos políticos e econômicos do nada, pela sua própria iniciativa e sem esperar orientações de seus dirigentes. Este caráter espontâneo pode ajudar a compreender o grau de consciência e os desejos dos trabalhadores, mas ainda seus prejuízos e ingenuidades.

Não se pode esquecer que a Revolução foi derrotada e que uma das causas principais dessa derrota foi a falta de organismos dirigentes, capazes de canalizar a enorme energia social liberada, para dirigi-la à vitória. A Revolução Espanhola é talvez o melhor exemplo que se conhece sobre a natureza, as virtudes e as limitações da espontaneidade na história.

Antecedentes

A espontaneidade na Revolução Espanhola não surgiu do nada. Existem numerosos precedentes. A moderada política do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) no período pré-revolucionário provocou, em numerosas ocasiões, a mobilização espontânea das classes populares no campo e na cidade. A condição miserável na qual estes viviam foi a causa pela qual eles decidiram tentar solucionar seus problemas pela sua própria conta. A tímida reforma agrária iniciada pela República, no período republicano-socialista (1931-3), foi contestada, com frequência, por meio de ocupações dos grandes latifúndios e dos sangrentos choques com a Guarda Civil.

Poder-se-ia escrever um livro inteiro caso se quisesse detalhar todas as expressões de revoltas populares espontâneas no período anterior à Revolução. Contrastando com o PSOE, o anarco-sindicalismo, por intermédio de sua principal organização, a Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNT), e concretamente sua expressão faista (da Federação Anarquista Internacional – FAI), fez um verdadeiro culto à espontaneidade revolucionária, convencido de que a revolução só poderia ser realizada por meio de uma pequena minoria militante, que devia limitar-se a provocar a resposta espontânea dos trabalhadores.

Durante o período pré-revolucionário, existiram dois momentos que constituíram o máximo da espontaneidade no seio do movimento revolucionário: o Outubro Asturiano de 1934 e o período compreendido entre o triunfo eleitoral da Frente Popular e o início da Guerra Civil (de fevereiro a julho de 1936).

No primeiro caso, a convocação dos socialistas para uma greve geral pacífica, objetivando frear a ascensão da direita ao governo, foi contestada pelos mineiros asturianos com a insurreição. Enquanto no resto do estado a esquerda (à exceção da maioria da CNT que se mantinha neutra) fracassava ou se limitava a seguir a greve geral, os mineiros traduziam a chamada de seus dirigentes em um levante revolucionário. A Comuna Asturiana, isolada do resto do país, conseguiu sobreviver durante mais de quinze dias ao assalto das tropas do governo provenientes do norte da África, melhor armadas e organizadas. Durante todo este tempo, os mineiros asturianos construíram, em torno de suas alianças operárias locais, um verdadeiro embrião de Estado revolucionário: organizaram a vida cotidiana e a produção nas fábricas e nas minas; formaram um improvisado exército; construíram caminhões e trens blindados e ainda chegaram a fabricar combustível valendo-se de carvão para mitigar a falta de gasolina. Muito mais se poderia falar da Comuna Asturiana, não fossem os limites desse trabalho. É necessário, todavia, sublinhar que a ascensão da direita não foi impedida nem pela greve geral, nem pelas ameaças dos dirigentes socialistas, e muito menos pela neutralidade da maioria anarco-sindicalista (salvo nas Astúrias onde a CNT desempenhou um papel de primeira ordem nos acontecimentos). Foi a Comuna Asturiana que feriu de morte os planos da reação.

Apesar da derrota dos revolucionários, sua ação tornou possível o triunfo da esquerda nas eleições de fevereiro de 1936, ainda que fosse sob a roupagem da moderada Frente Popular, que era a negação da essência do Outubro revolucionário de 1934. A fratura entre os dirigentes das organizações operárias e suas bases se abria cada vez mais e inevitavelmente iria surgir de novo, mediante a ação espontânea dos trabalhadores.

Com a vitória eleitoral da esquerda, a promessa de anistia para os trinta mil presos foi levada a cabo, de forma imediata, pela população. Os cárceres foram abertos sem que o novo governo estivesse formado. Entre fevereiro e julho de 1936, apesar dos apelos à moderação da Frente Popular, as greves, as mobilizações e as ocupações da terra se sucederam de forma ininterrupta. Desta maneira, o proletariado e o campesinato pobre expressavam sua vontade de não mais esperar que o governo decidisse cumprir suas tímidas e vagas promessas de reforma. A crescente instabilidade e a incapacidade manifesta do novo governo para controlar a situação era a tradução de que a República se havia convertido em uma ficção e que já não representava o interesse de nenhuma classe social. É o que também pensa Claudin quando observa o seguinte:

Decepcionado até a medula com a república parlamentar instaurada em 14 de abril e com os seus políticos liberais, já não se confiava mais em suas próprias forças, em suas organizações classistas; já não se acreditava em programas ‘mínimos’ e meias medidas. Pode-se dizer, sem exagerar, que seu ‘programa mínimo’ era a revolução social. [2]

Ao tempo em que as classes populares, cada vez mais radicalizadas, demonstravam que se encontravam situadas muito mais à esquerda que seus dirigentes, as classes proprietárias se aglutinavam a favor da intervenção do Exército, convencidas de que este era o único obstáculo que se interporia entre elas e a revolução.

As Jornadas de Julho

A sublevação militar foi levada a cabo com os golpistas convencidos de que sua ação ia ser um simples passeio triunfal em direção ao poder. O Exército, encarnando os interesses da burguesia e das classes privilegiadas, exigia a reforma autoritária da República e os mecanismos necessários para pôr fim à ameaça revolucionária. Contudo, o passeio triunfal acabou convertendo-se em uma longa e sangrenta guerra civil de três anos de duração. Nas primeiras semanas do conflito, a geografia da zona antifascista experimentou uma profunda mutação. A República transformou-se numa sombra fantasmagórica. O território espanhol se cobriu de uma multidão de organismos revolucionários que se haviam convertido no único poder real. A economia se coletivizava a marchas forçadas, ao passo que o antigo Exército e a polícia eram substituídos por milícias improvisadas. O que havia se passado?

Caso se atente para os programas políticos ou para a imprensa partidária, comprovar-se-á que nada disto estava previsto. Os comitês e as coletivizações, por exemplo, não faziam parte do projeto político de nenhuma organização. Ao contrário, todas elas demoraram semanas para reagir e quando o fizeram, foi de forma empírica, desordenada, provocando, muitas vezes, mais problemas do que soluções. As organizações dos trabalhadores que aderiram à Frente Popular, socialistas e comunistas, aferravam-se à sua aliança com o desestruturado governo republicano.

A esquerda do PSOE navegava sem programa político, adaptando-se às pressões que sofria. O PCE se chocava com um processo revolucionário que não entrava em seus esquemas políticos ditados pelo Komintern. Por sua vez, o anarco-sindicalismo, dono da situação na Catalunha e em outras zonas, sem programa e sem política para enfrentar o desafio do poder, viu-se obrigado a improvisá-los, mediante pactos com seus aliados conjunturais. A conseqüência maior destes malabarismos foi que os líderes da CNT não tomaram o poder na Catalunha, mas tampouco entregaram-no a seus rivais e aliados circunstanciais. Assim, nasceu um organismo contraditório que dirigiria a Catalunha revolucionária nos primeiros meses de guerra: o Comitê Central das Milícias Antifascistas de Barcelona [3].

Nos primeiros momentos da sublevação, a falta de critérios claros das organizações operárias, a improvisação e a confusão compeliram os insurretos a se levantarem com triunfo em algumas cidades e territórios (Saragoça, Sevilha…). Alguns historiadores atribuíram o fracasso inicial da sublevação à intervenção dos setores do Exército e da polícia que se mantiveram leais ao governo. Outros consideraram que foi a intervenção dos revolucionários nos combates que tornou possível a vitória nos primeiros momentos. É necessário, todavia, realçar algumas questões.

Os militantes operários intervieram nos combates sem planos determinados, sem organismos dirigentes que organizassem a luta. Este fato provocou a morte de numerosos deles. No meio dos combates, um acontecimento provocaria um sobressalto na situação: em algumas cidades, os operários conseguiram apoderar-se das armas armazenadas nos quartéis abandonados pelo Exército. A partir deste momento, armados e sentindo-se donos da situação, os militantes operários se negariam a deixar arrebatar-lhes um triunfo que consideravam seu, pelas mãos de um governo em que não confiavam.

Outro feito acabaria por desestruturar os planos do governo para recuperar o controle da situação. As tropas leais que haviam combatido ao lado dos revolucionários nas ruas, submersos no clima do entusiasmo popular produzido pelo triunfo inicial, sofreram o contágio revolucionário e se descompuseram rapidamente. Desprovido de suas forças coercitivas, desprestigiado pela sua política vacilante diante dos insurgidos, o governo desmoronou, sem poder opor nenhuma resistência séria.

A negativa das organizações operárias em assumir o poder que tinham praticamente em suas próprias mãos foi o detonador para que aparecesse em toda zona antifascista uma multidão de cantões dirigidos por improvisadas juntas que suplantaram o governo republicano até a sua reconstrução posterior. Simultaneamente, enquanto as direções dos partidos e sindicatos empreendiam a organização de juntas, os militantes de base construíam seus comitês revolucionários na maior parte dos povoados e cidades. De qualquer maneira, a dualidade de poderes ficaria estabelecida entre os dirigentes das organizações operárias, dispostos a manter seus compromissos com a Frente Popular, ou, como no caso da CNT e do POUM, a conviver com o que restou das antigas autoridades, e as bases que haviam dado início ao desenvolvimento de sua revolução de forma espontânea. “Nessas primeiras semanas posteriores ao 2 de julho, nem sequer os partidos e as organizações controlavam seus filiados” [4].

A espontaneidade política

Sem dúvida alguma, a rápida decomposição do aparato estatal, do Exército, da polícia, do poder judicial e do funcionalismo facilitaram a aparição dos organismos revolucionários. Entretanto, isto não pressupõe que existisse uma consciência clara na vanguarda do movimento revolucionário sobre a necessidade de acabar, de uma vez por todas, com a República. Os militantes libertários ou socialistas desconfiavam do governo, mas também eram conscientes de que seus dirigentes o apoiavam ou colaboravam com ele. No fim das contas, a hegemonia estava em mãos de organizações operárias e os políticos republicanos já não tinham nenhum peso político. Os milicianos operários consideravam que eles já não representavam nenhuma ameaça para sua revolução, ao contrário do que ocorria com os militares sublevados.

Os comitês apareceram de maneira espontânea. A prova disto foi a sua heterogeneidade, seus diversos nomes e suas formas diferentes de funcionar. Porém, sem dúvida, tinham algo em comum: demonstraram sua vontade de poder, organizando a defesa contra o inimigo, criando tribunais populares, organizando a vida cotidiana nas localidades, encarregando-se do abastecimento da população, convertendo-se, enfim, em governos revolucionários em miniatura. Munis os chamou de “comitês-governo” para refletir sua vontade determinada de implantar uma nova ordem revolucionária que defendesse suas aspirações (divisão das terras, socialização…) [5]. A visão de Alba é também contundente:

O homem comum teve pois a impressão de que não era apenas senhor das empresas abandonadas, mas também das instituições municipais ou privadas abandonadas ou paralisadas. [6]

Em poucas semanas, o instinto revolucionário da população resolveu todas as pendências democráticas que a República não pôde realizar em seus cinco anos de existência. E, para tanto, os trabalhadores e os militantes de esquerda, incluídos os anarco-sindicalistas, organizados em torno dos comitês, não demoraram a exercer o poder, no nível local, que seus dirigentes rechaçavam na cúpula. Uma vez mais, é este caráter espontâneo aquilo que põe em evidência a profunda natureza anticapitalista da Revolução Espanhola. As observações de Alba reforçam esta ideia quando escreve o seguinte:

De todas as alternativas possíveis, escolheram a que refletia melhor seus desejos e que lhes parecia que respondia mais a seus interesses: converteram-se nos senhores. Nas ruas, milhares de trabalhadores possuíam armas. Sem armas, isso não poderia ter sido possível. Mas apenas com armas, nada haveria mudado. Os trabalhadores, sem necessidade de instruções de ninguém, compreenderam que as duas coisas estavam relacionadas. [7]

Alguns historiadores têm criticado a ação dos comitês pelos excessos que cometeram. Entretanto, é necessário analisar os acontecimentos dentro do contexto de uma situação de vazio de poder no nível de Estado, propensa a que se desatasse o ódio acumulado por séculos de miséria e exploração.

Frequentemente, os comitês revolucionários e sua obra se chocavam com a incompreensão, quando não com a hostilidade de seus líderes políticos. Na realidade não havia nenhum partido ou sindicato disposto a transformar os comitês na estrutura básica de um Estado revolucionário. Os socialistas de esquerda se deixavam arrastar pela onda revolucionária, porém não estavam dispostos a romper sua aliança com os republicanos para precipitar-se na revolução. Sem critérios definidos, seu dirigente máximo, Largo Caballero, esperava que o esgotamento dos republicanos lhes entregaria o governo como fruta madura. Os comitês não deixavam de ser um mal menor que havia impedido a vitória inicial dos sublevados, porém que deviam desaparecer para dar espaço a uma nova República reconstruída.

Os comunistas, por sua vez, negavam, contra toda evidência, o caráter socialista da Revolução Espanhola e consideravam que os comitês e sua obra eram fruto dos excessos de radicalismo das massas enganadas pela demagogia anarco-sindicalista. A CNT e a FAI advogavam pela essência sindicalista da Revolução Espanhola. Em seu esquema, os comitês não detinham nenhum papel concreto. Os sindicatos eram os verdadeiros canais de expressão dos trabalhadores.

Alguns políticos da época e historiadores afirmaram que as estruturas soviéticas eram estranhas ao caráter da Revolução Espanhola. Caso se analise a natureza espontânea dos comitês, observam-se grandes coincidências, entre elas a sua vocação estatizante. Quais eram então as diferenças entre os comitês-governo espanhóis, os sovietes russos e os Räte alemães? Em primeiro lugar, dever-se-ia mencionar sua incapacidade para transformar-se em um poder estruturado de baixo para cima, como conseqüência da recusa das organizações operárias em transformá-los na pedra-mestra do Estado revolucionário.

A espontaneidade dos trabalhadores havia iluminado o nascimento dos comitês no calor de um processo revolucionário; nos primeiros meses, estes se converteram no único poder real nas localidades onde estavam implantados, porém era necessário um projeto que os convertesse em um verdadeiro poder estatal. Em algumas zonas, os comitês chegaram a coordenar-se entre si. Todavia estes casos foram a exceção que confirma a regra. O passo para uma federação estatal de comitês estava bloqueado. Ainda que os militantes tenham-se aferrado a seus comitês, desconfiando dos apelos de seus dirigentes pela aceitação da autoridade do governo, não podiam se opor indefinidamente sem ter que fazer face também a suas próprias organizações. Como afirma o historiador P. Broué:

À medida que se distanciavam das jornadas revolucionárias e do exercício do poder na rua pelos trabalhadores armados, assim também, pouco a pouco, os comitês deixavam de ser verdadeiros organismos revolucionários, por não se terem transformado em comitês de aliança, nos quais a ação dos operários e camponeses deixou de ser sentida, cada vez menos, e nos quais , pelo contrário, a influência dos aparelhos dos partidos e sindicatos se tornou preponderante. [8]

O triunfo inicial dos revolucionários na maior parte da península deu lugar a um vasto fenômeno que transformou a sociedade espanhola. No entanto, a vitória não havia sido total e o Exército sublevado começou a ganhar posições. A revolução agora teria que defender-se no campo de batalha. Em poucos dias, milícias improvisadas substituíram o Exército sublevado. Apenas algumas unidades e comandos continuaram organizados em torno do governo. A desconfiança da população se fez sentir, umas vezes com razão e outras sem, sobre os militares ativos que se mantiveram no campo antifascista. A improvisação das milícias refletiu também as aspirações e a consciência da vanguarda operária, seu igualitarismo e também seus preconceitos e ingenuidades. As milícias evitaram qualquer referência que lembrasse o antigo Exército. Os problemas de funcionamento, a eleição dos comandos, etc. foram discutidos e votados em assembleia. Desapareceram os galões, os distintivos e privilégios dos comandantes. Poderíamos nos estender sobre o tema, mas o caráter desse trabalho não nos permite9. O que é importante destacar é que o igualitarismo radical das milícias refletia os desejos de emancipação dos militantes operários. Utiliza-se aqui a palavra ‘radical’ porque a consciência socialista foi aplicada na prática mesmo e, às vezes, de forma ingênua e cômica. Estas debilidades seriam aproveitadas mais tarde pelos partidários da reconstrução de um Exército republicano para desacreditar as milícias. Mas o que ninguém pode negar, nem partidários, nem detratores, é que foram as milícias que impediram uma vitória rápida do Exército franquista. Os milicianos conseguiram superar, com seu entusiasmo, suas limitações diante de um adversário melhor armado e organizado.

A espontaneidade econômica [10]

Se é surpreendente a natureza e o alcance da espontaneidade dos trabalhadores na hora de tomar a direção do poder político local, é preciso observar seus efeitos na economia. É precisamente neste campo que melhor fica demonstrado o caráter socialista da Revolução Espanhola. A classe operária e o campesinato não se limitaram a criar comitês. Depois do levante, iniciaram um vasto movimento de expropriação e de coletivização da economia. Uma vez mais, as organizações operárias não desempenharam nenhum papel nesse processo. Na época, não eram poucos os que pensavam diferente do que atesta Fraser:

Naquele momento, não tínhamos a menor intenção de ocupar, expropriar ou coletivizar nenhuma fábrica. Pensávamos que o levante seria rapidamente esmagado e que tudo ficaria mais ou menos igual a antes. De que iria servir entusiasmar-se com as coletivizações se tudo ia terminar outra vez nas mãos do antigo sistema capitalista. [11]

Os partidos socialista e comunista não tinham nenhum interesse em socializar a economia. Partidários que eram da Frente Popular, tiveram na vaga de expropriações, protagonizadas em muitos casos pelas suas próprias bases, um questionamento a sua política. O anarco-sindicalismo, desorientado pela vertiginosa evolução dos acontecimentos, havia aceitado postergar a revolução libertária para o futuro e conviver com o aparelho republicano. Com esta perspectiva, os objetivos imediatos do anarco-sindicalismo eram a luta contra o levante, embora permanecesse adepto da revolução. De modo significativo, o primeiro folheto que a FAI publicou em Barcelona não veio a público até o dia 26 de julho, uma semana depois da explosão do conflito. Nele, falava-se da necessidade de derrotar o fascismo, mas nem uma palavra era dita sobre a economia que começava a ser construída nas zonas revolucionárias.

Nem a CNT regional da Catalunha, nem a sua federação local, nem a FAI abordaram, em suas primeiras declarações, os objetivos da nova estrutura econômica que havia começado a construir-se: esta foi uma obra de completa espontaneidade. [12]

É necessário, não obstante, conhecer como se desenvolveram os fatos para entender o verdadeiro significado de espontaneidade da classe operária e do campesinato espanhol, sob pena de cair em exageros ou em idealizações que nada têm a ver com a realidade histórica.

Acabados os combates de julho, os sindicatos desconvocaram a greve geral para que os trabalhadores pudessem voltar às fábricas e reiniciar a produção, necessária para cobrir as necessidades do front. Com a volta ao trabalho, os operários descobriram que a maioria dos empresários e técnicos, seja por temor às represálias, seja pela sua cumplicidade com a sublevação, haviam fugido13. Se os antigos dirigentes não se apresentavam, era necessário reiniciar o trabalho e constituir numa nova direção. Somente dias depois, com a comprovação de que os donos não iriam retornar e que a produção continuava, começaram a se conscientizar das consequências do passo que haviam dado.

O que queria a classe operária era ter o salário assegurado na ausência de quem tradicionalmente o pagava. Buscou esta segurança, não em medidas governamentais e sim em suas próprias medidas. Os operários, no momento, não pensaram em exercer este poder que lhes dava a posse de armas e o haver ganhado as jornadas, em mais de uma questão: a de assegurar o salário do sábado seguinte. [14]

A iniciativa coletivizadora partiu dos militantes operários, seguidos depois pelo resto dos trabalhadores. Os comitês encarregados de dirigir a produção foram eleitos quase sempre em assembleias, ainda que se tenha procurado integrar os sindicatos minoritários. As iniciativas para pôr em marcha as empresas partiram dos próprios trabalhadores, ao passo que as orientações dos sindicatos só chegariam dias depois.

Cada dia que passava, a cidade caía ainda mais sob o controle da classe operária. O transporte público funcionava, as fábricas trabalhavam, as oficinas estavam abertas, o abastecimento de víveres chegava sem novidade, o telefone também funcionava, a distribuição da água e do gás igualmente, tudo isso organizado e levado, em maior ou menor medida, pelos próprios trabalhadores. Qual a causa que explica que assim tenha ocorrido? Os principais comitês da CNT não haviam dado nenhuma ordem nesse sentido. [15]

É extraordinário estudar os diversos testemunhos que falam das profundas transformações que a coletivização provocou na consciência dos trabalhadores. Operários e camponeses pobres pressentiram que os novos acontecimentos significavam uma mudança profunda no seu destino. Com a derrota dos militares e a fuga dos patrões, chegara a oportunidade, durante tanto tempo esperada, de liberar-se de tantos séculos de exploração.

Era incrível, era a prova prática do que se conhece em teoria: o poder e a força das massas quando se lançam nas ruas. De imediato, todas as suas dúvidas se evaporam, dúvidas sobre como se deve organizar a classe operária e as massas, sobre como podem fazer a revolução, mesmo que não se tenham organizado. De repente, sente-se o seu poder criador. Não se pode imaginar o quanto as massas são capazes de se organizar rapidamente. Inventam formas de fazê-lo que vão muito além do que haviam sonhado ou lido em livros. O que agora fazia falta era aproveitar a iniciativa, canalizá-la, dar-lhe forma. [16]

Os trabalhadores, armados e sentindo-se vencedores, comprovaram que eles podiam manter perfeitamente a produção em marcha, sem necessidade de seus antigos patrões. Pela primeira vez, sentiam a sensação de que eles eram donos de seu próprio destino. E era este entusiasmo e esta crescente consciência que fez aquele caos funcionar.

Na Catalunha, onde eu me encontrava, vi criar-se uma indústria de guerra como por arte de bruxaria…(o povo) estava disposto a realizar este milagre, que povos em plena paz e com meios econômicos adequados não logravam realizar em muito tempo, e mais ainda, sem engenheiros nas fábricas, com apenas dois ou três na comissão de indústrias de guerra, e aquelas fábricas e oficinas, tão rápida e perfeitamente transformadas, funcionavam admiravelmente, aumentando cada dia a produção em condições insuspeitas, criando-se as mais difíceis atividades industriais, graças à iniciativa particular dos operários catalães. [17]

O fenômeno coletivizador da indústria teve seu paralelo no campo. O campesinato viu na revolução a possibilidade de apoderar-se da terra e levou a cabo suas expropriações sem esperar as diretrizes de ninguém. Nas zonas latifundiárias que haviam caído no campo antifascista e nos territórios recuperados do inimigo, o campesinato sem terra escolheu, em sua maioria, a via da coletivização. Sem dúvida, a tradição anarquista e socialista no campo influenciou nessa decisão. Longe de optar pela repartição individual das terras expropriadas, que os condenaria à falta de recursos e a uma condição de vida miserável, parte dos camponeses optou pela exploração coletiva. Alguns críticos sugeriram que as coletividades foram criadas pela ditadura dos extremistas. Sem negar os excessos e as coações, a acusação desaba por seu próprio peso. Na segunda metade de 1937, quando o movimento revolucionário já havia sido derrotado por partidários da república, as coletivizações foram com frequência agredidas. Os camponeses foram convidados a abandoná-las para repartir-se a terra de forma individual e, mesmo assim, as coletividades sobreviveram e o governo teve que voltar atrás, sob pena de que a colheita se perdesse. Pode haver uma prova mais contundente de que as coletivizações representavam o sentir de um setor importante do campesinato?

Da mesma forma que na cidade, o camponês organizou suas comunas mediante assembleias, nas quais todos os membros da comunidade participavam. Frequentemente, os camponeses individualistas eram convidados a participar delas. Junto a seus lucros, houve também a aplicação de medidas ingênuas como a eliminação do dinheiro. Sem dúvida alguma, cometeram-se erros, porém não há dúvida de que as coletividades funcionaram e chegaram a ser vitais para a economia republicana.

As circunstâncias nas quais as coletividades foram criadas, inicialmente limitadas pelas fronteiras das empresas, fizeram que nascessem, entre muitos trabalhadores, não a ideia de que estas pertenciam a toda a sociedade, e sim de que eram suas propriedades exclusivas. Isto provocou desigualdades entre empresas ricas e pobres e se traduziu em diferenças salariais. Tal fato fez os setores mais conscientes compreenderem que teriam que corrigir a situação antes que se desse início à reprodução da antiga sociedade capitalista: foram criadas caixas de compensação para redistribuir os benefícios das empresas de modo igualitário e também federações industriais que tendiam a reorganizar a indústria sob formas socialistas.

O que nos interessa, em qualquer caso, é determinar o significado, o alcance e também as limitações que a espontaneidade marcou no processo de coletivização. Talvez valha a pena destacar que a principal contradição legada por sua origem espontânea e não planificada foi que nunca se conseguiu criar um sistema coerente, estruturado, centralizado e controlado democraticamente pelas bases. O contrário teria sido assentar as bases de um Estado operário, alternativa que, naquele momento, e por distintas razões, ninguém estava interessado. A inexistência de um Estado e de uma planificação socialista fez que a economia coletivizada fosse caracterizada por uma combinação de traços da autogestão operária e de corporativismo. É impossível saber se a economia coletivizada se transformaria em socialista, superando suas contradições iniciais. A derrota da Revolução, primeiro, e a vitória de Franco, depois, truncaram definitivamente o processo.

*

Sem dúvida alguma, a Revolução Espanhola é um exemplo único para a compreensão da espontaneidade social na história. Quando se conhecem as conquistas espetaculares conseguidas pelos trabalhadores, sem que tenham sido mediadas por programas de partidos e sindicatos, não se pode deixar de admirar-se até onde chega a capacidade criadora dos homens quando acreditam ter ao alcance das mãos a possibilidade de serem donos de seu próprio destino. No entanto, isto não nos deve levar a não ver a outra face da moeda. A espontaneidade de massas é uma força cega e poderosa que nos revela a sensibilidade e as aspirações das classes sociais. Porém, sozinha é incapaz de estruturar um novo sistema político e econômico estável e coerente, que assegure sua sobrevivência.

Notas

  1. BROUÉ, P. La revolución española. Barcelona: Península, 1977.
  2. CLaudín, F. La crisis del movimiento comunista. Barcelona: Ruedo Ibérico, 1978.
  3. A Catalunha era a zona mais industrial da Espanha e também a que concentrava o setor mais combativo e organizado do movimento operário.
  4. ABAD DE SANTILLÁN, D. Por qué perdimos la guerra. Barcelona: Plaza y Janés, 1977. p.93.
  5. MUNIS, G. Jalones de derrota. Promessa de victoria. Madri: Zero Zyx, 1977.
  6. ALBA, V. El obrero coletivizado. (Não publicado. Uma cópia se encontra no Arquivo Nacional da Catalunha, em Barcelona: Inventario: Fondo 219.19.4 – Santa Pere de Ribes, 1977). p. 73.
  7. Idem, p.65.
  8. BROUÉ, P., TEMINE, E. La revolución y la guerra de España. Barcelona: Comuna, 1974.
  9. Veja-se ORWELL, G. Homenaje a Cataluña. Barcelona: Ariel, 1983.
  10. Para o estudo das coletividades camponesas, leia-se GUÉRIN, L. et al. Las colectividades campesinas. Barcelona: Tusquet, 1977. Com respeito às industriais, veja-se SOUCHY, A., FOLGARE, P. Colectivizaciones. Barcelona: Fontamara, 1977. Entre os estudos mais recentes é imprescindível a obra BERNECKER, L. Colectividades y revolución social. Barcelona: Crítica, 1982.
  11. FRASER, R. Recuérdo tú y recuérdo a otros. Barcelona: Crítica (Grijalbo), 1979. v.1, p.316.
  12. ALBA, V., op. cit., p.66.
  13. Idem, p.63.
  14. Idem, p.62.
  15. FRASER, R., op. cit., p.187.
  16. Idem, p.188.
  17. SANDINO DIAZ, F. (Diário pessoal cuja cópia se encontra no Centro de Estudios Históricos Internacionales (CEHI), em Barcelona). p.182

*Historiador e pesquisador doutor da pós-graduação em História da Universidade de Barcelona.

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