Slavoj Žižek: “Os curdos são a nação democrática mais progressista do Oriente Médio”

Por Slavoj Žižek, via Kurdish Question, traduzido por Leo Griz Carvalheira.

Esta entrevista com o conhecido filósofo Slavoj Zizek foi concedida à TV Kurdish MedNuçe na capital da Eslovênia, Liubliana. Nesta primeira parte da entrevista, Zizek fala sobre a questão curda e os seus pontos de vista sobre o assunto.


Uma foto de você e do líder curdo Abdullah Öcalan está sendo compartilhada em redes sociais. Qual a história por trás disso?

Sim. Me mostraram a foto na Turquia. Está na internet e diz que é dos anos 80. Mas devo dizer que, infelizmente, não é real. No entanto, eu definitivamente não sou contra o que estão fazendo. Ao contrário, eu acho que há uma bela história por trás disso.

Öcalan está atualmente na prisão e eu acho que ele atribui grande importância à sua identidade como um intelectual. Eu vi a lista de livros que ele pediu na prisão. Ele está lendo Foucault, por exemplo. Até onde eu sei, há um clichê sobre os curdos: vivem nas montanhas e são uma tribo primitiva que está sofrendo. No entanto tenho testemunhado que os curdos, na verdade, são muito secularizados. Os curdos estão se esforçando para se apresentar ao mundo como esclarecidos e modernos. Este é o método correto. No seu lugar, eu faria o mesmo.

Então você nunca conheceu Öcalan…

Não, infelizmente não. Eu gostaria de visitá-lo na prisão. Mas ouvi dizer que ele está em isolamento, na verdade, ele não pode nem mesmo se reunir com os seus advogados.

Eu sei que hoje em dia ele está envolvido na política mais modesta, ele mesmo se define como um cidadão daquele país. O que ele quer é autonomia para os curdos. Ele deveria ter a oportunidade de querer mais.

Vamos olhar para a história: os curdos são as maiores vítimas da separação colonial. A abordagem dos ocidentais para o Oriente Médio é baseada em qual tribo vai lutar contra qual. Em outras palavras, o Ocidente decide sobre isso. Há uma tradição de intervenção ocidental no Oriente Médio.

A maior catástrofe foi logo após a Primeira Guerra Mundial. Os italianos, franceses e ingleses decidiram sobre como eles iriam dividir o Oriente Médio. A Síria estava nas mãos do Egito e os outros países estavam nas mãos de outros. Por isso, todas as fronteiras são artificiais.

Olhe para o Iraque hoje: Iraque Oriental é xiita e sob a influência do Irã, Iraque Ocidental é sunita. Da perspectiva das pessoas uma federação teria sido razoável. Olhe para o Afeganistão e o Paquistão, é a mesma coisa em todos os lugares.

Você vê a situação de mudança para os curdos?

Historicamente e no pano de fundo pode-se ver um mapa curdo, mas em primeiro plano há fronteiras artificiais. As superpotências não vão permitir isso, mas se você me perguntar, a melhor solução seria todos os curdos se unirem; pelo menos o leste e sudeste da Turquia, o norte da Síria e o norte do Iraque. Eles ainda podem estar ligados aos países em que se encontram, mas historicamente eles têm o direito de se unir.

O lugar mais seguro no Iraque neste momento é a região curda. Há vôos para lá de muitos lugares do mundo. Um sistema legal e a lei prevalecem. Existem três grupos no Iraque: a minoria sunita, a maioria xiita e os curdos. Sob Saddam, os sunitas eram poderosos, agora temos a hegemonia xiita. E não parece muito boa.

Portanto, não seria bom para dar aos curdos uma chance de governarem a si mesmos? Sabemos que é uma utopia! Até hoje os curdos só se defenderam. Eles nunca tiveram uma inclinação imperialista, agressiva. Eles nunca mataram os outros. Dar aos curdos a chance de autogoverno significa estabilidade para a região. Os curdos são o grupo mais secular no Oriente Médio. Reconhecer o autogoverno aos curdos significa apoiar a paz. Eu sei disso e apoio os curdos de coração.

Você esteve em Istambul há alguns dias. O que achou disso?

Sim, há dois dias. Falamos sobre o amor com um amigo. Discutimos teologia e o slogan “ama o teu próximo como a ti mesmo” no cristianismo. Podemos dizer isto aos turcos: amem os curdos como a ti mesmo. O que está acontecendo agora é uma prova de amor.

Esclareci outra coisa também: você está ciente da tragédia dos curdos e armênios? O massacre de curdos e armênios não se deve à tradicional barbárie turca, mas ao advento dos Jovens Turcos [https://pt.wikipedia.org/wiki/Jovens_Turcos]. Estas coisas aconteceram com o advento do modernismo na Turquia. Em comparação com o actual estado, o Império Otomano foi mais tolerante a minorias e grupos diferentes. Os problemas começaram com os Jovens Turcos.

Durante a Guerra da Iugoslávia a maior parte dos judeus vivia em Sarajevo. Por quê? Porque a minoria muçulmana teve mais tolerância com os judeus do que os cristãos.

Gostaria de evitar qualquer mal-entendido: o que Erdoğan está fazendo hoje é selvageria. Em vez de construir palácios, ele precisa olhar para trás e ver quais liberdades eles tinham durante o Império Otomano e que eram melhores do que as de agora.

Pouco tempo atrás, li as memórias de um francês que viajou para Istambul no início do século XIX. Sua definição era de que Istambul naquele momento era mais tolerante do que agora. Ele relata ter visto rabinos e sacerdotes nas ruas. Em comparação com o século XIX europeu nacionalista, Istambul era mais tolerante. Se querem voltar para o Sultanato Otomano, que voltem às suas leis e tradições!

A era otomana certamente teve seu lado ruim. Por exemplo, se você fosse não-muçulmano, tinha que pagar um imposto extra. No entanto, havia algumas leis para as minorias que são melhores do que as de hoje.

Toda a esquerda sabe que tanto os impérios do oriente antes da Segunda Guerra Mundial, quanto o Otomano e Austro-Húngaro, foram mais progressistas em algumas questões do que os estados de hoje.

Os curdos exercem um papel chave no Oriente Médio. Quando a questão curda for resolvida, todos os problemas no Oriente Médio serão resolvidos também. Há uma situação irracional nos Balcãs no momento. Albânia e Kosovo, dois estados separados, mas o mesmo povo. O ocidente não vai permitir que se unam, porque eles têm medo de uma Albânia mais forte. Um estado curdo no Oriente Médio, inversamente, não é uma ameaça para ninguém. Na verdade, seria uma ponte entre os povos.

Mas a situação atual mostra que a posição oposta foi tomada. A opressão e a violência contra os curdos, especialmente na Turquia, está aumentando…

A posição da Turquia é vergonhosa, assustadora. O partido de Erdogan não vai nem ganhar a maioria nas próximas eleições. Então eu acho que a esquerda, kemalistas e curdos podem formar um bloco. É claro que esses últimos confrontos estão servindo a  Erdoğan. Eles querem apresentar os curdos como sendo os agressores e miná-los na disputa eleitoral.

A cláusula de barreira [votação mínima para um partido exercer atividade parlamentar] da Turquia é muito alta. É por isso que esse é um jogo sujo. Não é apenas uma questão de matar ou bater nos curdos também. Se os curdos ficarem abaixo da cláusula de barreira, o que os sociais-democratas podem fazer?

Acho que é positivo que os curdos tenham mudado sua abordagem. Eles precisam trabalhar para se promover e se apresentar ao mundo, em vez de apenas procurar piedade. Em suma, os curdos não são apenas as pessoas que lutam nas montanhas, mas o grupo mais progressista e democrático da região. É assim que eles precisam se apresentar. Toda vez que visito Istambul tenho muitos ouvintes curdos. O principal objetivo da propaganda curda deve ser mudar a percepção do mundo ocidental em relação aos curdos.

A esquerda internacional não apoiou nem se solidarizou com a luta curda como tem feito com a Palestina ou a América Latina. Você acha que isso é só porque os curdos não se apresentam do jeito certo?

Este problema não é de vocês, o problema é dos esquerdistas ocidentais dos quais tenho vergonha. A maioria dos esquerdistas aqui afundaram-se em seus próprios clichês: anti-fascismo, a oposição contra o Vaticano…

Um exemplo interessante ouvi de Radovan Karadzic (político bósnio-sérvio): durante a Guerra Civil Iugoslava, Sarajevo estava sob cerco sérvio, um corredor humanitário poderia ter sido aberto com muito pouca pressão ocidental; mas o ocidente não fez a solicitação aos sérvios. O próprio Karadzic me disse isso. Novamente, quando a Eslovênia e a Croácia se separaram, os esquerdistas se opunham a ela; “É hora de se unir, porque vocês estão separando?”, disseram; mas quando os catalães quiseram romper com eles os apoiaram. Em outras palavras, há povos que têm a permissão de fazer isso e outros que não…

Não entendo. O ocidente apoiou o Kosovo e a Chechénia. Mas ninguém diz nada sobre os curdos. Acho que é preciso analisar os movimentos geopolíticos globais por trás da razão para isso. Como curdos, e eu não estou dizendo isso em termos de violência, vocês precisam jogar com muita crueldade. Isso quer dizer que é preciso jogar os poderes uns contra os outros e compreendê-los bem.

Mas os resultados de uma política como esta na região estão claros para todo mundo ver… Os refugiados…

Ouça. Para mim, o maior escândalo ético e político é este: olhe para o Oriente Médio, até mesmo os países europeus. Se tivéssemos de generalizar, existem três tipos de países: muito pobres, medianos e muito ricos. Onde estão os refugiados? Em países pobres ou medianos… Então países como a Turquia, Jordânia e Egito. Há mais de um milhão de refugiados em cada um destes países. Europa é um tanto mais rica e há só alguns refugiados aqui. Entretanto, a política de países muito ricos como Arábia Saudita, Kuwait ou Emirados Árabes Unidos é um “Não para os refugiados”. E esses países não têm sequer o direito de dizer: “Desculpe, mas esta não é a nossa guerra”. A Arábia Saudita apoia as forças anti-Assad. Isso é vergonhoso. Todo mundo está pronto para isolar e punir Israel, mas e pressionar a Turquia com relação ao que está fazendo com os curdos? Ou pressionar a Arábia Saudita? A Arábia Saudita é indefensável, porque não só é um país muçulmano tradicional, como, de alguma forma, ela representa os bancos ocidentais. Sua subsistência vem dos bancos. Em outras palavras, a Arábia Saudita não é nada sem os bancos ocidentais e eu não estou nem contando Dubai e os outros! Estes não são apenas ricos, mas também países sunitas. Eles deveriam ter estado mais perto dos refugiados a nível religioso e cultural também.

Os curdos têm uma visão, um modelo para uma vida igual: Autonomia Democrática…

Para mim, neste momento, os curdos são muito importantes. Agora eu vou dizer algo irônico, com o qual a maioria das pessoas não vai concordar: eu acho que os curdos precisam ser uma outra versão dos judeus no Oriente Médio. Então, não opressiva ou invasivo, mas dinâmica e aberta… A sensibilidade dos curdos poderia ser um exemplo. A autonomia dos curdos é uma grande esperança.

A pessoa precisa ser realista. Há uma crise no Oriente Médio. De onde ou de quem pode vir algo novo? Eu acho que os curdos são um dos lugares de onde algo novo está por vir.

Eu sempre testo meus amigos árabes que dizem: “eu apoio a democracia”, com a pergunta: o que você pensa sobre os curdos? Você pode testá-los com isso. Eu posso dizer francamente: eu quero que tudo fique bem para os curdos e quero visitá-los (em Rojava); mas eu não sei como fazer isso. Eu realmente quero. Depois eu quero visitar Öcalan fora de sua cela.

Como você sabe, existem cantões em Rojava…

Qual é a chance politicamente destes cantões sobreviverem?

Eles tiveram muitos ganhos em termos de autogoverno até agora…

Talvez depois de um certo tempo haverá paz. De qualquer forma, não acredito que a Síria pode ser defendida por muito mais tempo. Acho que é tarde demais. Não acho que a Síria possa ser salva.

No entanto, há um sistema que está sendo erguido no Curdistão sírio, liderado por curdos, que inclui todos os povos da Síria que estavam vivendo juntos até agora.

Este é o problema. Durante o governo Assad, mesmo ele sendo um ditador, houve algum tipo de equilíbrio étnico. Sim, Assad favoreceu seu próprio grupo, e este foi o problema.

Se eu estivesse na posição em que os curdos se encontram eu iria um pouco mais longe. Eu não acho que seja suficiente que existam cantões na Síria ou no sudeste da Turquia. É preciso que haja permissão para que eles se juntem. Talvez não como um estado separado, mas é preciso haver unidade. Este seria um grande ganho.

Eu envio os meus melhores votos. Eu quero visitar essas áreas também. Existem universidades nestes cantões? Como se vai até lá?

Sim, existem universidades. Você pode ir pela Turquia ou pelo Curdistão do Sul (KRG)  [região autônoma curda no norte do Iraque]…

E o Estado turco permite isso?

Mesmo que eles não gostando muito, eles permitem…

Claro, e então você vai encontrar meu cadáver em algum lugar por aí. Não, eu estou brincando, eu desejo seriamente ir. Poderia me dizer alguma coisa, tem alguém para traduzir nessas universidades em Rojava? Em outras palavras, posso falar inglês lá? Como vai funcionar?

Eu não acho que você vai ter dificuldade com a linguagem. É possível encontrar pessoas que falam curdo, árabe, inglês, turco, armênio… na verdade a maioria dos idiomas.

Armênio também? Então eu vou! E eles têm universidades lá também? Se eles tiverem isso seria incrível. OK, eu vou voar por cima da Turquia, sou preguiçoso. Eu não quero viajar 10 horas de carro.

  

Slavoj Zizek é um filósofo, crítico cultural e intelectual marxista esloveno. Ele é um pesquisador sênior no Instituto de Sociologia e Filosofia na Universidade de Liubliana [Institute for Sociology and Philosophy at the University of Ljubljana], Professor Global Distinto de alemão na Universidade de Nova York [Global Distinguished Professor of German at New York University], e diretor internacional do Instituto Birkbeck para as Humanidades [Birkbeck Institute for the Humanities]. Seu trabalho está localizado na intersecção de uma gama de disciplinas, incluindo filosofia continental, teoria política, estudos culturais, psicanálise, crítica de cinema e teologia.

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