O morto-vivo, nova figura metafórica da intelectualidade progressista

Entrevista realizada por Nicolas Dutent, via L’Humanité, traduzido por Fred Lyra, mestre em música pela Sorbonne e membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia.

Em “Menos que Nada”, uma obra importante crivada de referencias teóricas, literárias e artísticas, o filosofo e psicanalista Slavoj Žižek dialoga pacientemente com a obra de Georg Wihelm Friedrich Hegel. É imperativo para Alain Badiou, autor do prefácio, não apenas de retornar ao pensado alemão, “mas de repetir as suas explorações e ultrapassar seus limites”.

Humanité: A França é a atravessada por vivos debates sobre a direitização dos intelectuais. Esta constatação pode parecer paradoxal uma vez que obras críticas em ciências humanas e sociais são abundantes. O intelectual progressista está enfraquecido, ou mesmo morto, como alguns anunciam?

Slavoj Žižek : Uma certa figura do intelectual progressista não funciona mais pois ele não serve mais de ponto de partida para uma orientação política. Esta direitização francesa é um sintoma da “provincialização” da França. Quando eu era jovem, a França era uma mega-potência intelectual. A nova filosofia (encarnada por André Glucksmann, Bernard-Henri Levy…) não conseguiu entrar no mercado intelectual anglo-americano. Paradoxalmente, Alain Badiou, que não dispõe de cadeira midiática e institucional nos Estados-Unidos, é infinitamente mais estudado que Finkielkraut. Esta “direitização” não vale então universalmente. Eu noto que quanto mais proclamamos que a esquerda intelectual radical está morta, mais esta se mobiliza. Nós somos mortos-vivos muito produtivos! A ideologia oficial, que promove o fim das revoluções e a hora do pragmatismo, tem todo interesse em nos declarar mortos. Mais nós estamos mais vivo do que nunca. A nova figura metafórica do intelectual progressista é então esta do morto-vivo. A ferocidade dos ataques proferidos contra nós é a melhor prova de nossa saúde. Pois ignoramos os mortos.

H: Você deu suporte precocemente ao Syriza no seu quebra de braço com a troika. Quais ensinamentos sobre o funcionamento atual da Europa, você tira desta reeleição? Estamos todos condenados a viver o inverno europeu? A democracia europeia estaria fazendo a experiência do “impossível”?

SZ: Syriza talvez tenha cometido erros, mas eu rejeito radicalmente a ideia segundo a qual, depois do referendo, o Syriza teria se comprometido. Tratar este episódio como uma simples traição é a coisa mais estúpida que existe. A minoria da Plataforma da esquerda não trouxe uma única ideia original e o seu fracasso parlamentar é um sinal de sabedoria do corpo eleitoral grego. O que se seguiu após o referendo pode parecer horrível, absurdo, mas Alexis Tsipras tinha escolha? Os intelectuais pretendiam que os Gregos consentissem em fazer a escolha do sofrimento e da austeridade. Nada é mais falso. O povo grego não quer mais sofrer. Devemos aceitar que, desde o principio, na Grécia, as chances revolucionárias eram fracas. Estes eventos nos lembram que a salvação da Europa está condicionada por uma ruptura económica radical e que a crise dos refugiados é uma chance que se abre para iniciar essa mutação. Não devemos temer nenhum tabu e iniciar um dialógo entre as forças progressistas. Sobre o “islamismo” por exemplo, é urgente dar suporte aos grupos palestinos que combatem o islamo-fascismo. Sem o quê a direita populista se dará o privilégio da crítica.

H: Menos que Nada, o seu recente e monumental ensaio, se abre com uma refutação: este da “caricatura ridícula de Hegel em idealista absoluto”. Como você explica a relativa ocultação contemporânea de Hegel e os reducionismo de que ele pode ser objeto?

SZ: O que é vivo e morto no pensamento de Hegel? Existe ainda algo a ser dito? Esta questão, o filosofo italiano Benedetto Croce já se fazia no século passado. Seguindo Adorno, eu creio que a questão deve ser invertida: qual a nossa contemporaneidade aos olhos de Hegel? A caricatura grosseira de Hegel me faz pensar no que chamamos na psicanálise de “uma lembrança-tela”: o medo inconsciente e invisível da filosofia hegeliana. Hegel não é a exceção. O trabalho de Alain Badiou sobre Platão se inscreve também contra a falsa caricatura deste imenso filosofo e do evento platônico. É uma tarefa da posteridade de naturalizar, descontaminar, de “re-normalizar” os grandes filósofos. Não é mais do que um problema epistemológico: as consequências da teoria hegeliana sobre a questão social são mais radicais do que pensamos. Duas politizações contraditórias de Hegel tiveram ligação com o conservadorismo por um lado e com a esquerda revolucionária por outra. Outros ainda tentaram fazer de Hegel um pensador proto-fascista e antidemocrata. Observamos que, nestes últimos quarenta anos, um terceiro Hegel emergiu: este do centro liberal. Os trabalhos americanos de Robert B. Pippin, Charles Taylor ou Robert R. Williams acerca da dialética da liberdade e a teoria do reconhecimento mutuo instalaram este personagem liberal. Em face desta corrente, uma outra defende ainda a ideia que podemos ler Hegel não como um sistema metafísico relativo à natureza da realidade mesma, mas como uma teoria de estratégias discursivas que analisam os procedimentos da argumentação racional. Esta corrente diz finalmente: deixemos de lado a ontologia!

H: Você constata, no contrapé de algumas interpretações, uma “incompatibilidade entre o pensamento de Hegel (“pensador da potencialidade”)  e toda forma de mobilidade evolucionista”. Este pensamento, apresentado ordinariamente como um sistema do fechamento, oferece um lugar para o futuro?

SZ: Dois grandes intérpretes hegelianos responderam a esta questão na França. Os trabalhos de Gérard Lebrun oferecem uma crítica brilhante de Hegel demonstrando que o mobilismo do pensamento hegeliano é incorreto. Catherine Malabou expõe a tese, no seu extraordinário livro  l’Avenir de Hegel,  segundo a qual o sistema de Hegel não é fechado e que ele é ao contrario uma abertura radical. É preciso compreender que se a mobilidade evolucionista é fechada no sentido de que ele persegue infalivelmente uma direção, este fechamento é uma abertura radical em direção ao futuro no sentido onde esta filosofia nos diz que não podemos falar do futuro, nem o escrever! É o que confirma a célebre frase de Hegel: “ninguém pode saltar além do seu tempo”. Os inimigos de Hegel são os que pretendem poder saltar além do seu tempo mantendo uma imagem ilusória do futuro. Assim que analisamos um sistema social, este já é passado. É o que faz com que Hegel diga que “quando a filosofia pinta o seu cinza sobre o cinza, é que uma figura da vida se tornou velha, e não podemos rejuvenesce-la com cinza sobre o cinza, mas nós podemos somente conhece-la, a coruja de Minerva voa somente quando cai o crepúsculo.” Hegel não é um cretino e esta análise deve valer para a sua própria filosofia do direito. Existe um paradoxo interessante: Hegel é radicalmente aberto para o futuro e toda necessidade é retroativa. A situação atual me parece mais hegeliana que marxista. Marx estava preocupado com a maneira de preparar a revolução. Para Hegel, a Revolução francesa já era passado, e agora o problema hegeliano era o de saber como se manter fiel à ideia revolucionária. A questão da herança e da repetição é primordial. O século XX foi uma tentativa de repetir e atualizar o comunismo, ao custo de perigosos fracassos. Como repetir isto em condições radicalmente novas?

H: Você não tenta ultrapassar o conflito entre materialismo e idealismo, cristalizado em torno de dois monumentos do pensamento que são Marx e Hegel?

SZ: No século XIX, o tópico da finitude, que designa a limitação ao nosso próprio corpo, nossa experiência sendo limitada a este ser finito, é um momento materialista. O idealismo se voltou, do seu lado, em direção do infinito imortal. Quentin Meillassoux, em Après la Finitude, dá conta perfeitamente destas tensões. Ele constata que, no século XX, acentuamos esta finitude abraçando a tese heideggeriana segundo a qual nós somos finitos e jogados dentro da existência. Não olhamos em direção ao céu, nós nos imergimos na materialidade mais suja, mais abrupta. É todo o projeto do diretor russo Andrei Tarkovski. Esta imersão pode ser compreendida como um último suporte ao idealismo. Hoje em dia, paradoxalmente, os materialistas são partidários do infinito. Isto para salvar a ideia de um além? O materialismo hoje é abstrato, sem matéria. Encontramos esta ideia já nos materialistas gregos. O nome “átomo” em Democrito, quer dizer “menos que nada”, definição que Barbara Cassin bem analisou. A coisa mais difícil de pensar é um materialismo não substancial. Abandonemos o velho materialismo concreto. Temos que nos arriscar na abstração, ao incorpóreo, ao infinito.

H: A questão da liberdade, ao condicionar a capacidade frágil dos homens de fazer história, assombra esta publicação. Deleuze estimava que “o passada puro deve ser o conjunto do passado, mas deve ser modificado pelo surgimento de todo novo presente”. Você o abandona neste ponto afirmando que “profundamente passivos, determinados pelo passado o qual dependemos, nós desfrutamos porém da liberdade de determinar a largura desta determinação”. Você reativa o existencialismo sartriano querendo que sejamos totalmente livres por natureza e totalmente determinados pelo meio?

SZ: O grande poeta conservador inglês T. S. Eliot avança uma tese interessante, a saber que “o sentido histórico modifica a percepção, não apenas do caráter passado do passado, mas de seu caráter presente. Este sentido histórico percebe tão bem o que lhe escapa no tempo quanto o que  lhe pertence”. Aplicado ao artista, isto induz que cada obra de arte nova modifica o passado ele mesmo. O passado é sempre, retroativamente, reconduzido, nos diz Hegel. Se o existencialismo é potente, nos devemos ir além. Eu continuo lacaniano-freudiano no sentido que, segundo eu, o inconsciente é o local por excelência da liberdade. Eis um novo paradoxo: não temos acesso acesso a este lugar de liberdade. Uma analogia é aqui possível com o amor. Não posso dar a ordem a alguém de se apaixonar por fim e o fato de se apaixonar é sempre julgado do ponto de vista do passado. O ato livre mais radical é o ato inconsciente.

H: Se, na dialética hegeliana, a verdade da luta é “a destruição mútua dos contrários”, a práxis revolucionária não seria ela, em termos, destinada também a auto-destruíção?

SZ: A meta de todo sujeito autenticamente revolucionário é de não ser mais o que ele é. O objetivo do proletariado não é, precisamente, de abolir o proletariado como classe explorada? A prática revolucionária deve então, aos meus olhos, ser dissociada desta poética perpétua do inimigo. Quando viajei para a Índia, encontrei representantes da casta dos Intocáveis, que ocupam o lugar mais baixo da hierarquia social. Eles me deram uma definição magnifica do seu projeto político. Em substância, ela dizia: “Todos os outros grupos políticos querem afirmar a sua posição de dominação, isso quer dizer permanecer o que são. Nosso plano para nós é simples: não queremos ser o que somos, nós queremos abolir o nosso estado”. Em suma, isto vem a ser a querer mudar radicalmente o mundo, ao ponto de desaparecer. A transformação mais elevada, é a transformação de si mesmo.

H: A segunda parte do seu livro é inteiramente direcionada à Lacan, outro de seus autores fetiches. Quais são os pontos de convergência e discórdia entre a psicanálise e o hegelianismo?

SZ: Todo o meu livro é dirigido contra o lugar comum segundo o qual Hegel, prisioneiro da sua “pretensão delirante ao saber absoluto”, seria anti-revolucionário. Da mesma forma, Lacan seria redutível a um pensamento da descentralização. O que pode unir estes dois pensadores, é uma análise do processo contingente da verdade que deve passar pelo erro. Se, desde seu Discurso de Roma e sob influência de Jean Hyppolite, Lacan propõe uma leitura hegeliana, positiva mas tradicional, do processo analítico, ele se separa progressivamente de Hegel e opera um retorno a Kant. O que eu proponho aqui, é uma leitura de Lacan contra a corrente. A minha tese é que mesmo que ele pareça se opor a ele mais tarde, ele não cessa, à sua maneira, de ser hegeliano. Quando Lacan critica Hegel, ele critica a imagem de um idealismo absoluto que anula toda autoridade. Para descobrir o coração verdadeiro da dialética hegeliana, podemos chegar ai através da crítica de Lacan. Inversamente, Hegel nos permite determinar o impasse místico, o beco sem saída de Lacan em seu último seminário.

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3 comentários em “O morto-vivo, nova figura metafórica da intelectualidade progressista”

  1. Prezado, agradecemos imensamente sua preocupação, e temos pleno acordo. O blog cresceu rapidamente e não pudemos fazer a estrutura acompanhá-lo. Mas estamos providênciando um mecanismo de revisão das publicações futuras e das passadas. Mais uma vez obrigado pela atenção, a Equipe do LavraPalvra lhe agradece.

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