Engels e o esboço do comunismo

Por Gabriel Landi Fazzio

Nascido em 28 de novembro de 1820, Friedrich Engels é usualmente diminuído pelo pensamento dominante como um mecenas do marxismo, o melhor-amigo de Marx – quase como um “fiel escudeiro”, e não como o pensador e revolucionário que efetivamente foi, com toda a sua importância própria. Não é raro que, sem maiores debates, se questione a “validade” dos seus escritos após a morte de Marx.


Quando muito, lembra-se que coube a ele, por testamento, a tarefa de finalizar e publicar os dois últimos volumes de “O Capital: Crítica da Economia Política”. Mas aqui se esconde algo a mais: foi o próprio Engels a iniciar a empreitada dessa crítica, ao enviar a Marx o manuscrito que este considerou “genial”: o “Esboço de uma Crítica da Economia Política”.

Ainda que já tivessem sido apresentados dois anos antes, foi só então, em 1844, que Marx e Engels iniciaram sua colaboração teórica [1]. No ano seguinte, a pesquisa de Engels sobre “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” lançaria as bases de toda uma série de formulações críticas sobre a jornada de trabalho, o trabalho insalubre, infantil, enfim, as formas concretas que assumiam as relações assalariadas de produção sob o regime fabril. Apenas mais três anos depois seria publicada a mais famosa obra de ambos, o “Manifesto Comunista”. Exatamente na manhã seguinte à publicação, explodiria na França a revolução de 1848, e os dois jovens comunistas (Engels com 28, Marx com 30 anos) viveriam a derrota da Primavera dos Povos e a contrarrevolução na Europa.

É no calor desses quatro anos que se forjaram as bases históricas do chamado comunismo marxista – e diante disso, nunca é pouco afirmar a importância de Engels. Mas fato é que, daí até sua morte, Marx será tido como o responsável maior pelo materialismo dialético. Viverá para ver seu socialismo científico ser chamado de marxismo em nome de concepções reformistas francesas – e que, de acordo com Engels, reivindicavam o materialismo como “pretexto para não estudar a história”.

Longe deste tipo de marxismo, não se deve entender a relação entre Marx, Engels e o comunismo como uma santa trindade ideal – mas como sim como uma relação prática histórica, ocorrida do intercâmbio de ideias e da prática política conjunta de dois indivíduos, em um período histórico, que esboçou em papel e pôs em movimento as bases fundamentais da teoria revolucionária do século passado e do presente. Engels, ele próprio, parece modesto e sensato ao entender tal colaboração:

“Se encontro algo a censurar é que você atribui mais mérito do que me cabe, mesmo se eu entrar em conta com tudo o que possivelmente eu teria encontrado autonomamente — com o tempo —, mas que, porém, Marx, com o seu rápido “golpe de olho”  visão de conjunto mais ampla, muito mais depressa descobriu. Quando se teve a sorte de, durante quarenta anos, trabalhar juntamente com um homem como Marx, habitualmente, não se é tão reconhecido, durante a vida deste, quanto se crê que se merece; mas, uma vez morto o maior, facilmente o menor é superestimado — e parece-me ser agora, precisamente, o meu caso; a história porá finalmente tudo isto em ordem, mas até lá, felizmente, desaparecerei e não saberei mais nada de nada.”

No aniversário póstumo de seu nascimento, muitas reflexões de Engels valeriam nota [2]. Abaixo, transcrevemos uma reflexão do revolucionário alemão sobre o materialismo dialético e a teoria da superestrutura. As acusações equivocadas de determinismo que pesam sobre o marxismo costumam ser acompanhadas da condescendência: “eram homens de seu tempo!”. Como Engels disse quanto aos marxistas franceses, é preciso saber que o materialismo não é a mera repetição de fórmulas abstratas, mas sim o estudo da história concreta.

Carta para Joseph Bloch

Por Friedrich Engels, Londres, 21/22 de setembro de 1890

“De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto afirmando que o fator econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia. As condições econômicas são a infra-estrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma. Há uma interação entre todos estes vetores entre os quais há um sem número de acidentes (isto é, coisas e eventos de conexão tão remota, ou mesmo impossível, de provar que podemos tomá-los como não-existentes ou negligenciá-los em nossa análise), mas que o movimento econômico se assenta finalmente como necessário. Do contrário, a aplicação da teoria a qualquer período da história que seja selecionado seria mais fácil do que uma simples equação de primeiro grau.

Nós mesmos é que fazemos a história, mas o fazemos sob condições e suposições definidas. Entre estas, os determinantes econômicos são, ultimamente, decisivos. Mas mesmo as condições políticas, etc., e mesmo tradições que assombram as mentes humanas também desempenham o seu papel, embora não sejam decisivos. O Estado prussiano também surgiu e se desenvolveu por causas históricas, mas de modo final, por causas econômicas. Da mesma forma, seria difícil de se argumentar sem pedantismo que muitos dos pequenos Estados da Alemanha do Norte, Bradenburg, foram especificamente determinados por necessidades econômicas para se tornar grandes potências econômicas, linguísticas e, após a Reforma, também religiosa em distinção entre o sul, e não por outros elementos além do econômico (acima de tudo, o relacionamento com a Polônia devendo sua possessão da Prússia foi também decisivo para a formação da potência dinástica austríaca, ou seja, relações políticas internacionais que foram determinantes). Sem ser ridículo, seria difícil explicar em termos puramente econômicos a existência de cada pequeno Estado na Alemanha, no passado ou no presente, ou a origem da Alta Alemanha consoante com as alterações que alargaram o muro geográfico da partilha, formado pelo conjunto sudético de montanhas do Taunus, até a extensão de uma fissura regular cortando toda a região.

Em segundo lugar, a história é feita de maneira que o resultado final sempre surge da conflitante relação entre muitas vontades individuais, cada qual destas vontades feita em condições particulares de vida. Portanto, é a intersecção de numerosas forças, uma série infinita de paralelogramos de forças, que resulta em um dado evento histórico. Isto pode ser novamente interpretado de modo equívoco, sendo visto como um produto de um poder que trabalha como um todo, inconscientemente e sem vontade. Cada vontade individual é obstruída por outra vontade individual e o que emerge é uma vontade final não antecipada pelas singularidades envolvidas.  Assim, a história procede na forma de um processo natural e é essencialmente sujeitas às leis do movimento. Mas do fato de que as vontades individuais — das quais os desejos que impelem pela constituição física ou externamente e, em último lugar, pelas circunstâncias econômicas (sejam pessoais ou aquelas da sociedade em geral) — não obtém o que querem, mas tem suas vontades amalgamadas em um sentido coletivo, um resultante comum, não deve ser concluído que seus valores sãos iguais a zero. Ao contrário, cada parte singular contribui para o resultado e é, em certo grau, envolvido com esta soma final.

No mais, eu iria pedir para que você estude esta teoria de fontes originais e não de materiais secundários; será muito mais fácil. Marx dificilmente escreveu algo que ele não tomou parte. Especialmente o Dezoito Brumário de Louis Bonaparte é o mais excelente exemplo da aplicação desta teoria. Também existem muitas alusões n’O Capital. Também devo indicá-lo alguns de meus escritos: Herr Eugen Duhring’s Revolução na Ciência e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia alemã clássica, nestas obras eu dei, até onde sei, a mais detalhada explicação sobre o materialismo histórico que é possível encontrar.

Eu e Marx somos aqueles a quem, parcialmente, culpar pelo fato que as pessoas mais novas frequentemente acentuarem o aspecto econômico mais do que o necessário. É que nós tínhamos que enfatizar estes princípios vis-à-vis nossos adversários, que os negavam. Nós não tínhamos sempre o tempo, o local e a oportunidade para explicar adequadamente os outros elementos envolvidos na interação dos fatores constituintes da história. Mas quando era o caso de apresentar uma seção historiográfica, isto é, de aplicação prática, era um assunto diferente e nenhum erro era permissível. Infelizmente, de modo muito frequente, as pessoas pensam que aprenderam uma nova teoria e podem aplicá-la sem maiores problemas, crendo que dominaram os principais princípios e isto não é sempre correto. E eu não posso também isentar os mais recentes “marxistas” do mais incrível lixo que já foi produzido nos últimos três meses.

A reação do poder do Estado para com o desenvolvimento econômico pode ser um dos três tipos: (i) pode ser que corra na mesma direção e então o desenvolvimento seja acelerado; (ii) ele pode se opor à linha do desenvolvimento, o que, nos dias de hoje fará com que o poder de Estado seja  estraçalhado no longo termo e; (iii) pode barrar o desenvolvimento econômico em algumas direções e prescrevê-lo em outras. Isto reduz as possibilidade para uma das duas anteriores. Mas é óbvio que nos casos dois e três, o poder político pode causar grandes danos ao desenvolvimento econômico e resultar em grande dispêndio material e de energia das grandes massas.

Então, é também um caso de conquista e destruição brutal de recursos econômicos, os quais, em certas condições, um sistema econômico nacional ou local poderia ser arruinado. Nos dias de hoje, tal caso teria um efeito contrário, ao menos entre os grandes povos: em longo termo, o subjugado às vezes ganha mais em termos políticos, econômicos e morais do que o vitorioso.

Similarmente com a lei. Assim que a nova divisão do trabalho surge, na qual se tornam necessários advogados profissionais, uma nova e independente esfera é criada e ainda especialmente capaz de reatar as esferas de produção e comércio. No Estado moderno, a lei não deve apenas corresponder à condição econômica geral e ser sua expressão direta, mas ser expressão internamente coerente o que não se reduz ao nada, devido suas contradições internas. E com o objetivo de atingir isto, o fidedigno reflexo das condições econômicas sofre cada vez mais. Assim, cada vez mais raramente que um código legal é a direta, não-suavizada e não-adulterada expressão da dominação de uma classe — isto por si iria ofender a “concepção de direito”. Mesmo no Código Napoleônico, a pura e consistente concepção de direito que a burguesia revolucionaria de 1792-1796 se dizia titular, é em muitas formas adulterada e, da forma como foi constituído, foi sujeita às atenuações decorrentes do nascente poder do proletariado. Isto não impede o Código Napoleônico de ser o estatuto que serve de base para novos códigos em todos os cantos do mundo. Portanto, em grande parte, o curso do “desenvolvimento dos direitos” apenas consiste (i) em uma tentativa de desfazer as contradições emergentes, sendo destarte, tradução direta dos antagonismos de relações econômicas em princípios jurídicos e (ii) nas reiteradas brechas feitas neste sistema pela influência e pressão do desenvolvimento econômico seqüente, envolvendo contradições posteriores para estabelecer um sistema jurídico harmonioso. (Neste momento, eu estou apenas falando no Direito Civil).

O reflexo de relações econômicas em princípios jurídicos é necessariamente confuso e desordenado: ele age sem a pessoa que está atuando ser consciente deste processo; o jurista imagina que está operando com proposições a priori, quando o que ele está manuseando verdadeiramente são reflexos das relações econômicas; assim, tudo está invertido. Para mim, parece óbvio que esta inversão que, enquanto permaneça desconhecida sob a forma do que nós chamamos de concepção ideológica, reage e retorna à base econômica podendo, dentro de certas limitações, modificar esta última. A base do direito de herança (assumindo que os estágios atingidos no desenvolvimento da família sejam iguais) é econômica e não a priori jurídica. No entanto,  seria difícil de provar, por exemplo, que a absoluta liberdade do testador na Inglaterra e as severas restrições impostas a este na França são decorrentes, em cada detalhe, às causas econômicas. Ambas (causas jurídicas e causas econômicas) reagem entre si, sem podermos, no entanto, reconhecer a esfera econômica em considerável extensão, pois a herança afeta a distribuição de propriedade.

No reinados da ideologia que deslizam ainda alto nos céus, religião, filosofia, etc., têm um estoque pré-histórico que encontra sua existência no e é tomada pelo período histórico do que chamamos nonsense. Estas variadas falsas concepções da natureza, do ser, de espíritos, forças mágicas, etc., têm, na maior parte das vezes, apenas um fundamento econômico negativo;  o baixo desenvolvimento econômico do período pré-histórico é suplementado e parcialmente condicionado e mesmo criado por falsas concepções de natureza. E mesmo que a necessidade econômica seja a principal força motriz do conhecimento progressivo sobre a natureza e se torna cada vez mais assim, seria certamente pedante tentar encontrar e indicar causas econômicas para este nonsense primitivo. A história da ciência é a história da gradual substituição deste nonsense ou sua eliminação por formas mais recentes, mas nem sempre menos absurdas de tolices. As pessoas que tomam parte nisto, aderem a dimensões especiais da divisão do trabalho e isto aparenta para eles como se estivessem trabalhando em um campo independente. E na medida em que eles formam um grupo separado dentro da divisão social do trabalho, a sua produção, incluindo seus erros, reage novamente e influencia o desenvolvimento total da sociedade, e mesmo o desenvolvimento econômico. Mas todos estes estão, novamente, sob a dominante influência do desenvolvimento econômico. Na filosofia, por exemplo, isto pode ser mais prontamente demonstrado através do período burguês. Hobbes foi o primeiro materialista moderno (no sentido possível dos limites do século XVIII), mas ele era um absolutista no período em que a monarquia absolutista estava em seu mais alto ponto por toda a Europa e quando a luta da monarquia contra o povo estava se iniciando na Inglaterra. Locke era uma criança no compromisso de classe de 1688 tanto em matéria de religião como de política.

Os deístas ingleses e seus mais consistentes continuadores, os materialistas franceses, eram verdadeiros filósofos da burguesia, sendo os franceses o mesmo até durante a revolução burguesa. O filistinismo alemão corre através da filosofia germânica de Kant até Hegel, algumas vezes positivamente enquanto outras negativamente. Mas a filosofia de cada época, considerando que é uma dimensão definida na divisão do trabalho, tem por pressupostos certos pensamentos guiados por seus predecessores, dos quais toma como ponto de partida. E é por esta razão que países economicamente atrasados podem fraudar com vantagens na filosofia: a França no século XVIII comparada com a  Inglaterra, em cuja filosofia os próprios franceses se basearam, e a filosofia alemã posterior relativamente baseada em ambas. Mas na França, assim como na Alemanha, a filosofia e a literatura floreada do período eram resultantes de um crescente progresso econômico. Eu também considero a supremacia do desenvolvimento econômico estabelecendo-se nestas esferas, mas ocorre dela atuar dentro de condições impostas pela própria área do conhecimento em si: na filosofia, por exemplo, através da operação de influências econômicas (que geralmente atua sob um encobrimento que aparenta ser político) sobre a existência filosófica material criada por seus antecessores. Aqui, a economia cria nada em formas renovadas, mas ela determina o modo pelo qual o pensamento material encontra a existência e o altera, posteriormente progredindo e isto na maior parte das vezes sob formas indiretas, sejam filosóficas, legais ou morais, reflexos que exercitam grande poder sobre a filosofia.

Sobre religião, eu disse o que era mais importante na última sessão sobre Feuerbach.

Se, no entanto, Barth supõe que nós negamos toda e qualquer reação do político, etc., reflexos do movimento econômico sobre o movimento em si, ele está simplesmente lutando contra moinhos de vento. Ele só precisa olhar para o Dezoito Brumário de Marx, que lida quase que exclusivamente o papel particular desempenhado pelas lutas políticas e outros eventos; é claro que dentro da dependência geral das pré-condições econômicas. Ou O Capital, no capítulo sobre a jornada de trabalho, por exemplo, onde a legislação, que é certamente um ato político, tem efeito incisivo. Ou então a parte sobre a história da burguesia (capítulo XXIV). Ou por qual razão nós lutamos pela ditadura política do proletariado se o poder político é economicamente impotente? Força (isto é, poder estatal) é também poder econômico!

Mas eu não tempo agora para criticar este livro. Eu devo agora pegar o volume III e no mais, penso que Bernstein, por exemplo, poderia efetivamente lidar com estes assuntos.

O que falta para estes cavalheiros é a dialética. Eles simplesmente olham aqui a causa e ali o efeito. Esta é abstração vazia e estas oposições polares metafísicas só existem no mundo real durante crises quando todo o vasto processo na forma de interação (embora por forças muito desiguais, com o movimento econômico sendo, de longe, o mais poderoso, inicial e mais decisivo) é aqui muito mais relativo e nada absoluto (isto, eles nunca enxergaram). Hegel nunca existiu para eles.”


[1] Além de ler o esboço de Engels, Marx escreveu com ele, ainda em 1844, “A Sagrada Família” e o começo de “A Ideologia Alemã” – ou seja, seu acerto de contas filosófico com os jovens hegelianos de esquerda.

[2] Sem aprofundamentos, a atualidade do pensamento de Engels poderia ser demonstrada pela recém-publicada brochura “Sobre a moradia”, pela Boitempo, celebrada por Boulos, dirigente do MTST, e mesmo resenhado pela Folha de São Paulo. Na obra, uma polêmica com Proudhon, Engels constata que as tentativas de converter cada assalariado no proprietário de seu imóvel nunca chegam a bom termo porque muitos demitidos precisam se desfazer de seus bens, alguns têm de achar abrigos mais próximos dos novos empregos, outros não conseguem arcar com os impostos decorrentes da valorização de certos bairros, etc. Explica que o problema não é de falta quantitativa de moradias, mas de distribuição: “já existem conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de sua utilização racional, toda a real ‘escassez de moradia’”.

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