Como ler Žižek na crise dos refugiados

Por Adam Kotsko, traduzido por Daniel Alves Teixeira, via An und für sich

Os comentários recentes de Žižek acerca da crise dos refugiados provocaram uma ira considerável nos círculos online esquerdistas. Para alguns, esse artigo é a prova final de que Žižek é um racista e um quase (ou não tão quase) fascista. Apesar de muitas pessoas que eu respeito partilharem dessa visão, eu acredito que isso seja uma terrível má compreensão.


Em última análise, eu diria mesmo que este artigo pode ser lido através da lente do meu “Como ler Žižek“. Nesse artigo, eu argumento que as intervenções políticas de Žižek sempre tentam destacar um conflito ou impasse fundamental. Ele faz não isto através de uma argumentação passo a passo e uma declaração clara de uma tese, mas através de uma super-identificação com os (inadequados) termos do debate público a fim de pressionar para além deles.

Essa mesma estratégia básica está trabalhando no artigo sobre os refugiados, embora ele seja atipicamente direto em antagonizar os leitores de esquerda e os liberais. Eu acredito que seu objetivo fazendo isto é provocar esses leitores mostrando que eles se recusam a fazer perguntas concretas sobre como exercer o poder, preferindo antes demonstrar sua pureza através da denúncia dos outros.

Eu devo admitir que eu começo partindo da premissa que Žižek não é pessoalmente racista e que não pretende carregar água para a ala direita. Isso não somente porque eu o conheço pessoalmente e me beneficiei de sua generosidade em várias ocasiões. Nem porque tomar seriamente a visão de que um líder intelectual da esquerda é um fascista enrustido soa como uma teoria da conspiração absurda. Mais fundamentalmente, essa premissa decorre da minha visão de seu projeto intelectual como um todo. A base inteira de sua crítica ao liberalismo dominante desde “Tarrying With The Negative” é que ela determina a reação de direita como uma forma de desviar a atenção das contradições fundamentais do capitalismo.

No mundo pós-soviético, as principais correntes da esquerda e da direita estão fechadas em uma relação simbiótica. Um exemplo chave aqui é quando os liberais admitem que os conservadores “têm razão” quanto à imigração, por exemplo. Žižek concorda que os conservadores “têm razão” quando eles usam os imigrantes de bode expiatório, mas isto não é a razão que eles pensam que tem – eles estão reagindo a uma ruptura real em sua sociedade, mas a raiz do problema não são os imigrantes, mas as dinâmicas do capital.

A esquerda tem desistido da ideia de uma alternativa ao capitalismo, ou mesmo de qualquer mitigação significativa de seus piores excessos. Então os partidos de esquerda e liberais são cúmplices na reação racista que ambos denunciam e condescendem. Se não fosse pelo racismo de direita, os líderes liberais não teriam a o que se opor. Pense no fato que de deveríamos votar em Hillary Clinton não por causa de seu programa positivo (que está a direita da já bastante conservadora agenda de Obama), mas porque ela (ao contrário de Bernie Sanders, cuja agenda é mais atraente para a esquerda) irá derrotar o horror racista que Trump é. Como esse exemplo ilustra, a situação tornou-se muito pior desde meados dos anos 90, quando Tarrying foi publicado.

A dinâmica básica aqui é que os partidos ostensivamente de esquerda têm colocado a ala direita no assento do motorista e não possuem outra estratégia do que denunciar o racismo dessa mesma direita que as suas preferências políticas efetivamente atiçam. O artigo sobre os refugiados visa desmascarar uma dinâmica similar em círculos mais radicais de esquerda. Entre comentadores esquerdistas, acadêmicos, como também os ativistas online, existe uma abdicação de qualquer responsabilidade de formulação da ação política que assuma a realidade atual existente em conta. Em seu lugar, encontramos somente a retórica vazia destinada a garantir a pureza ideológica do orador.

Nestes círculos, certos fatos empíricos óbvios são tratados como algo inominável e intrinsecamente de direita, e é a insistência de Žižek em expor esses fatos que me parece ser a verdadeira causa da ira contra seu trabalho recente. Toda vez que ele menciona a existência da intolerância ou da diferença cultural, por exemplo, isso é tomado como um endosso ou legitimação ao invés de uma descrição dos fatos que devem ser levados em conta. O que nós da esquerda fazemos com o racismo ou o preconceito é forçosamente denunciá-lo – e então ir embora. Se a esquerda alguma vez exercer o poder estatal, entretanto, ela será responsável pelos intolerantes entre nós e terá de encontrar uma maneira de lidar com eles. Se a resposta é enviar todos para o Gulag, eu sinto que Žižek poderia ser por isso. Menos que isso, porém, você precisa figurar uma maneira de trabalhar em torno de seus óbvios déficits morais para que todos possam viver suas vidas.

Para usar um exemplo que ele não usa, o que devemos fazer com os governadores republicanos que estão tentando rejeitar a colocação de refugiados em seu estado? Obviamente, todos nós rejeitamos e denunciamos o que eles estão fazendo, mas o que estamos fazendo praticamente? É uma boa ideia realmente fixar os refugiados nesses estados? Será que eles estariam seguros? Será que eles teriam boas relações com os seus vizinhos? Em certas comunidades, sem dúvida eles teriam – mas dado o número relativamente pequeno de pessoas de que estamos falando, talvez fosse prudente simplesmente colocá-los em estados acolhedores. Fazê-lo não é um endosso do racismo dos governadores, é uma resposta prática ao fato empírico de que há um monte de idiotas que vivem na América.

Alguns comentários que foram especialmente destacados para denunciar incluíam generalizações sobre as diferenças entre a cultura ocidental e a islâmica. Eu vou sustentar que, em termos gerais, existem diferenças importantes que talvez dificultem para as pessoas dessas culturas morarem juntas em quartos próximos. Eu tenho a esperança que todos possam ser melhores do que isso, mas pessoas são pessoas. Colocar uma família branca conservadora de Indiana em um apartamento em cima de um bar gay não seria divertido para nenhuma das partes envolvidas. E não é racismo afirmar que a mesma observação serviria igualmente para uma família conservadora muçulmana. A política pública é feita no nível da generalidade, e tomar as normas culturais dos refugiados como um ponto de partida é o único caminho sensível. Sim, um conservador rural de Indiana pode vir a ter um filho gay, da mesma maneira que uma família muçulmana pode ter uma filha de mente liberal que quer rejeitar o hijab – e Žižek insiste que as comunidades refugiadas terão de aceitar que alguns de seus membros tomarão vantagem das liberdades Ocidentais para rebelar-se contra suas normas culturais herdadas.

É precisamente a invocação de Žižek dessas “liberdades Ocidentais” que foi provada como tão “problemática” para muitos. Para entender o que ele está fazendo aqui, nós precisamos lembrar que muitos dos comentários de Žižek são centrados na tentativa de recuperar significantes-mestres. É aqui que sua estratégia de super-identificação é mais clara. Você acha que devemos abraçar o legado europeu? Žižek concorda – contanto que nós reconheçamos que a verdadeira herança europeia é a herança do igualitarismo e da revolução. Você acha que devemos retornar aos valores cristãos? Žižek concorda – com a condição de que o cerne mais profundo do Cristianismo acaba por ser o ateísmo radical.

A mesma estratégia serve para os valores Ocidentais no presente contexto. Žižek sempre nomeia os valores Ocidentais específicos em questão, e eles são valores com os quais a maior parte da esquerda concorda: democracia, equidade e secularismo. Obviamente, o sentido desses conceitos é um lugar de significativa contestação – ou ao menos deveria ser. Muitos esquerdistas são ávidos em invocar ideias de democracia e soberania nacional quando os EUA estão ditando a política econômica para membros do governo, mas esses mesmos ideais são rejeitados como incipientemente fascistas quando está em questão determinar quem deveria ter permissão para entrar em um dado país. Tal oportunismo descarado representa uma abdicação da tarefa de articular uma conceituação genuinamente esquerdista do poderoso significante-mestre conhecido como democracia.

Se você acha que não vale a pena lutar pelo significante-mestre “Ocidental”, eu respeito isso – mas ele está bastante em jogo nos debates contemporâneos, e eu não vejo razão para a esquerda unilateralmente desarmar-se na luta sobre um símbolo poderoso e (para muitas pessoas nos países Ocidentais) amplamente positivo. Toda tradição cultural é múltipla e variada, e as tradições ocidentais de fato levaram ao desenvolvimento do imperialismo e do fascismo e do marxismo e do anarquismo. A forma específica de tolerância religiosa secular praticada na maioria dos países ocidentais é um desenvolvimento histórico contingente que se originou em condições históricas contingentes na Europa, e como tal, elas são naturalmente imperfeitas. Ao mesmo tempo, as críticas dessas práticas que desejam remover de fato o seu viés pró-cristão equivale a jogar um aspecto da herança cultural do Ocidente contra o outro. Será que o corolário de reconhecer o valor de outras culturas tem que ser a rejeição absoluta de tudo manchado pela mácula de uma genealogia ocidental?

Onde as respostas vão para a pior incoerência é precisamente nestes pontos sobre a diferença cultural. Muitas vezes parece que estamos na proximidade de uma contradição ideológica semelhante ao famoso exemplo de Žižek da fantasia imigrante do mexicano que é, simultaneamente, um pedinte-aproveitador preguiçoso e um workaholic que está roubando todos os nossos empregos. Aqui a contradição é que devemos respeitar as diferenças culturais, mas sem nunca especificar quais são essas diferenças. Além disso, é um insulto aos muçulmanos a alegação de que eles não podem se assimilar … à nossa cultura totalmente sem valor e opressiva.

Esta incoerência mostra que os esquerdistas estão presos dentro da díade Ocidente contra o Resto dos conservadores que eles denunciam – só que a esquerda o inverteu. A verdadeira luta, ou seja, nomeadamente aquela contra o capitalismo, corre diagonalmente através de todas essas divisões culturais. Não existe uma relação necessária entre a lógica do capitalismo e as tradições políticas e intelectuais locais que deram luz a ele, nem são todas essas tradições igualmente cúmplices com o capitalismo. De modo semelhante, as tradições que surgiram fora da esfera original do capitalismo não são necessariamente incompatíveis com ele, muito menos vão intrinsecamente contra ele, como os exemplos da China contemporânea ou o “budismo ocidental” mostram claramente. Mas quando Žižek aponta os últimos, muitas pessoas da esquerda só conseguem ouvir “não-ocidental não é automaticamente bom” como “não-ocidental é mal” – e, portanto, ele deve ser racista.

O fato das respostas a estes artigos tornarem-se um referendo sobre o que pensamos de Žižek, ou seja, se ele precisa ser denunciado – prova seu ponto implícito. Por todas as suas falhas, os artigos de Žižek sobre esta questão são sobre o que realmente pode ser feito para acomodar os refugiados. Ele pode estar certo ou errado sobre qualquer uma das suas sugestões, mas eles são, pelo menos, discutíveis. Mais ao ponto, ele está falando sobre o tipo de perguntas que qualquer partido de esquerda de governo teria que considerar se fosse para realmente tomar o poder. Agora, tomar o poder dentro da estrutura institucional existente obviamente impõe sérias limitações, mas a única alternativa é a revolução – embora quando Žižek fale sobre como revoluções do passado aconteceram, ele é denunciado como um apologista para os piores excessos do stalinismo.

O pior de tudo, é claro, é quando alguém realmente reconhece a minha leitura do comentário político de Žižek, e ficamos sabendo que ele é apenas mais um centrista liberal chato. Ou Žižek é o homem mais politicamente multi-talentoso vivo – uma Terceira Via Democrata tentando impor o comunismo nazista – ou suas provocações estão apontando em direção a uma verdadeira incoerência no pensamento de esquerda contemporâneo. Em minha opinião, a última alternativa continua a ser mais plausível.

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