Fantasmas e fantasias do impeachment: O 29 de setembro de Eduardo Cunha

Por Gabriel Landi Fazzio

Sobre seu “O 18 Brumário de Luis Boanaparte”, Marx afirma que pretendeu demonstrar “como a luta de classes criou na França as circunstâncias e as condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco representar o papel de herói”.


Como ainda correm os acontecimentos, é cedo para que se conte a história do patético 29 de setembro de Eduardo Cunha. Mas, sob o risco de fazer qualquer triunfo parecer devido a algum “valor” ou “mérito”, desde já é preciso adotar uma postura que vá para além da mera indignação com a podridão cada vez mais notória dos reacionários.

A palavra mágica constitucional com a qual Cunha conjura seu patrono é impeachment. Os jornais a erguem “despretensiosamente”; “apenas relatando” que os oportunistas de plantão a encampam. As forças populares estremecem frente ao seu som, incertas sobre como deter a ofensiva da contrarrevolução, uma vez que esta parece vir tanto desvelada na agitação reacionária quanto na capitulação dos “democratas” a um ajuste fiscal burguês. Nesse “clima” de instabilidade, incerteza, em suma, nessa crise, há tanta confusão e vertigem que alguns dos revolucionários mais pacientes parecem querer simplesmente tomar as rédeas do que quer que seja, confundido o galope da história com o empinar desse cavalo ingovernável que é a podridão estatal burguesa, que dá coices sob o cruzado da vez.

Desde que rachou o PMDB por sua liderança, em fevereiro de 2013, o príncipe do blocão avançou rumo à presidência da câmara dos deputados capitaneando arrastões contra os recursos públicos – e sempre prometendo mais aos fiéis que crescentemente se somavam à sua zona de influência parlamentar. E, depois de todas as óperas de conservadorismo que regeu no plenário e com as quais abafa as denúncias ao seu redor, parece que o mais previsível de seus atos é o que mais escandaliza: que utilize despudoradamente as armas que lhe dá a Constituição e a conjuntura, nada mais que a essência do que lhe permite mesmo estar na posição que está. Assim como o sonho napoleônico faz o louco, o senso de oportunidade é a essência do político burguês. É aqui que se irmanam, cada um em sue papel, o cruzado Cunha e o monge Temer, cada um a seu modo aspirando que a fortuna lhes reserve ao menos um bom assento no futuro.

Por décadas, o impeachment parecia ser um objeto de museu, artefato de um tempo em que a III República ainda se firmava – destinado, por tanto, a permanecer como referência histórica, inspiração distante para as lutas sociais, notadamente as da juventude. Mas, há poucos meses, passou-se a dizer que a derrubada do PT era eminente; e então a ofensiva arrefeceu sob um compromisso escandaloso com o próprio assassino de aluguel; mas já hoje a votação do procedimento de impeachment parece que será instaurada, e Dilma arrisca mesmo dizer que “foi melhor assim”. Mas, do ponto de vista do comunismo revolucionário, não espanta que as frações mais comprometidas com a espoliação burguesa agitem seu golpismo em nome da ética democrática burguesa, justamente quando lutam para defender os mais corruptos privilégios que lhe garante a legalidade despótica burguesa. À ditadura burguesa sucedeu a república burguesa – é essa mesma que agora estrebucha sob as mãos da sua própria ala esquerda.

No meio da confusão, tatear as experiências históricas deveria parecer efetivamente o terreno mais seguro. Mas, nesse que parece um momento crítico do próprio regime instaurado pela Constituição de 1988, o que realmente prolifera é a superstição perante o passado: velhas respostas, promessas e suspenses parecem ser reencenados uma vez mais, antes que os nós se desatem e o palco desmonte. As dívidas fiadas da “Constituição Cidadã” para com a educação, a saúde e a situação habitacional das massas são crescentemente motivos de cobrança popular. As bancadas da burguesia latifundiária, da burguesia urbana e dos seus pistoleiros rasgam a cartilha de que as transições devem ser lentas, graduais e seguras, e mesmo o pmdbismo, que “elegeu” Tancredo, mas alçou Sarney, na época do PL (ex-ARENA), agora toma consciência e aspira abertamente a eliminar os intermediários de seu papel de fiel da ordem na democracia oriunda das Indiretas. E o PT, partido forjado na luta pelo estabelecimento deste regime democrático burguês, parece ser o único a lutar para permanecer fiel à sua personagem original, mesmo quando toda a história intermediária não permite negar o quanto mudou – e daí que a solução sempre seja uma “atualização estratégica”, que parece algo tão mais simples e decorrente do original quanto mais se tarda em adotar.

Diante deste quadro, entre a militância comunista, dois alertas se contrapõem: a necessidade de evitar um golpe reacionário, ou a necessidade de não se deixar levar pela conjuntura para a conciliação. Com opções opostas tão mecanicamente, não surpreende a desorientação. Por um lado, porque é indigno de uma política revolucionária perigar servir de linha auxiliar a manobras palacianas da ala direita da burguesia. Por outro lado, porque negar que a política de conciliação está na raiz da incapacidade do governo Dilma de tomar a iniciativa em uma política radicalmente “democrática e popular” equivale a nada menos do que deixar o PT à sorte de seu desgaste, e não a qualquer coisa como “defender a democracia”. Mas, uma coisa de cada vez.

Antes de tudo, é preciso dizer: alguns partidários do socialismo revolucionário parecem se alegrar, quase que por princípio, com o retorno da palavra impeachment à ordem do dia: depois de derrubar Dilma, as massas enxergarão sua própria força, e poderão então fazer cair todos os demais. Há algo aqui do mesmo espírito supersticioso da juventude que foi em massa às ruas, em 2013, receosa dos partidos políticos e dos “radicais”, se distinguindo pela “cara pintada” verde-amarela, que provaria sua fidelidade à “causa comum” patriótica: as aparências já validadas pela experiência histórica da luta popular podem legitimar os conteúdos mais diversos, sem qualquer consideração sobre a específica correlação das forças e classes em luta. Mas quem invoca esses espíritos do mais recente passado da luta de massas brasileira por ver neles uma venerável roupagem revolucionária, sem saber, só faz reviver as derrotas finais dos anos 80, da qual pouca esperança se poderia extrair. Não à toa, tal posição esteja tão próxima do liquidacionismo que, a cada novo ataque, celebra que o de amanhã será maior e, portanto, terá de acordar o espírito revolucionário na classe trabalhadora. Mesmo muitos petistas brincam com tal versão do “quanto pior melhor”, intuindo que é mais fácil esperar da massa que magicamente assuma a iniciativa, do que esperá-lo dos dirigentes petistas. De todo modo, exatamente o tema do impeachment permitiria um debate mais profundo sobre o que signifique “jogar água no moinho da direita”.

Dito isto, porém, é preciso lembrar que nenhuma organização socialista defende abertamente o impeachment. Mesmo as posições, por exemplo, do PSTU e do MNN são mais confusas e envergonhadas que um grito de “nenhum compromisso custe o que custar”. Se isso não as exime de uma crítica oportuna, no entanto, muito diferem da versão extremada daquela primeira posição: a versão do “defender os compromissos de 88 custe o que custar”, muito em voga no discurso oficial do PT e da esquerda parlamentar, e de todo o tipo de social-democrata.

Os defensores mais ferrenhos do governo vão ainda mais longe e invocam, alarmados, as próprias vésperas do golpe de 64: aqui também há algo descabido, que só se justifica no tamanho da ilusão que seu rompeu com as “regras do jogo”. Quanto aos revolucionários, qualquer que seja sua posição frente ao governo do PT, não existe dúvida quanto ao que para muitos legalistas parece um raio em céu azul: não pode haver paz perpétua entre as classes na sociedade capitalista, e quando as massas trabalhadoras vão para o plano de fundo do palco, quem assume a cena são os mais grosseiros defensores da ordem mercantil. Prolongando-se, a incapacidade do PT de vencer em favor dos trabalhadores essa luta só poderá significar maiores cisões e derrotas, cada dia mais que ontem. O cenário é desolador, e os alarmes que soa a militância petista em nada refletem na transformação efetiva do PT em um partido para tempos de guerra como os que se aprofundam. Para boa parte dos dirigentes petistas, o que falta é apenas, sem qualquer mudança imediata no que toca ao próprio partido, esclarecer as massas sobre a guerra em curso, e esperar que se dediquem à defesa do governo democraticamente eleito (“se não por qualquer outro motivo novo, ao menos por isso”). Como o menino que gritava “lobo!”, os governistas denunciam como a democracia burguesa está em risco, sem tomar as consequentes conclusões radicais, e assim preparam, junto da sua tragédia, a dos mais bem intencionados elementos da esquerda petista. Isso depois de terem jurado que entrariam na toca do leão e voltariam ilesos!

Uma posição materialista dialética sobre a aventura do impeachment não pode ser confundida nem com o ingênuo legalismo “democrata” nem com o esquerdismo deslumbrado “revolucionário” – ambos são impotentes frente ao cinismo pragmático da burguesia, que muito se alegra com a nova alternativa extremista que se agita para si, bem como com recolher tudo o que puder de um governo acuado e desesperado pelo apoio dos demais poderes estabelecidos do mundo burguês.

A lição mais profundamente dialética [1] contida no materialismo de “O 18 Brumário” talvez seja a de que “a tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo na mente dos vivos” – esse é o ponto de partida para elaborar todas as fantasias que vêm à tona em momentos da luta de classes como o atual. Esse foi o esforço da presente exposição. Daí em diante, seria possível uma investigação mais detida e geral sobre a repetitiva “compulsão” golpista que orbita a própria democracia constitucional; e, mais particularmente para o caso brasileiro, uma reflexão sobre a traumática experiência do PT com os impeachments da III República: o primeiro, que, como tragédia, deu posse em definitivo a um governo liberal; e o segundo, a farsa que põe em cheque a tese do “pós-neoliberalismo”.


 [1] A consideração remete a Engels: “Se, no entanto, Barth supõe que nós negamos toda e qualquer reação do político, etc., reflexos do movimento econômico sobre o movimento em si, ele está simplesmente lutando contra moinhos de vento. Ele só precisa olhar para o Dezoito Brumário de Marx, que lida quase que exclusivamente o papel particular desempenhado pelas lutas políticas e outros eventos; é claro que dentro da dependência geral das pré-condições econômicas.”

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