O capitalismo dependente latino-americano 40 anos depois

Por Raphael Lana Seabra, via Scielo.
Foram necessários 40 anos para que O Capitalismo Dependente Latino-Americano da socióloga Vânia Bambirra ganhasse sua primeira publicação no Brasil. O livro lançado em janeiro de 2013, conta com a tradução primorosa de Fernando Correa Prado e Marina Machado Gouvêa, é o segundo volume da Coleção Pátria Grande – Biblioteca do Pensamento Crítico Latino-Americano, organizada e editada pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina e pela Editora Insular. Trata-se sem dúvida de uma obra crucial para a compreensão da teoria da dependência, não só em sua vertente marxista, mas também da importante contribuição brasileira para seu desenvolvimento. Antes de apresentar os conteúdos da obra, nos parece crucial apresentar uma curta biografia da autora e as condições de sua redação divulgação.


Vânia Bambirra começou sua carreira acadêmica como docente no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) em 1963, naquele momento sob a direção de José Albertino Rodrigues e Perseu Abramo. O golpe de 1964 interrompe suas atividades na universidade, fato que afetou a carreira de muitos dos membros do corpo docente da jovem UnB. Após passar dois anos clandestinamente em São Paulo, Bambirra e seu companheiro (no momento Theotônio dos Santos) se exilam no Chile. Pouco tempo depois da chegada naquele país, nossa autora é convidada para ser docente no Centro de Estudios Socioeconómicos (CESO) da Universidade do Chile.

A luz da publicação e discussão sobre os trabalhos de André Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Edelberto Torres Rivas e Ruy Mauro Marini, formou-se no CESO, sob a direção de Theotônio dos Santos, um grupo de pesquisa sobre as relações de dependência na América Latina, composto por Vânia Bambirra, Orlando Caputo, Sérgio Ramos e Roberto Pizarro.

O grupo realizava seminários semanais para discussão dos principais textos e fontes levantadas. Cada membro do grupo definiu seu projeto específico sobre a dependência no subcontinente. Bambirra se propôs a tarefa de pesquisar a América Latina em seu conjunto. O resultado de sua pesquisa foi o livro “O Capitalismo Dependente Latino-Americano”, redigido em 1970, publicado pela primeira vez no Chile em 1972. Porém, com a derrubada do governo da Unidade Popular, essa edição se perdeu, voltando a ganhar nova edição no México, em 1973. É o livro da autora mais divulgado na América Latina, extravasando o ambiente acadêmico e alcançando o meio político. Segundo Bambirra, Jaime Wheelock, um importante quadro da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), revelou à autora ter conhecido seu livro durante uma viagem clandestina de San José da Costa Rica a Manágua. Muitos dirigentes do Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR) chileno buscaram a autora para discutir suas teses.

É muito importante frisar que sua publicação preenche uma enorme lacuna no debate brasileiro sobre a teoria da dependência. Ao contrário de outros países latino-americanos em que a teoria da dependência desenvolveu-se na forma de um intenso debate (caso do Chile e do México), no Brasil, a teoria da dependência ficou restrita à contribuição de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, em Dependência e Desenvolvimento na América Latina, principalmente de sua fórmula do “desenvolvimento dependente associado”. Embora a obra tenha o mérito de ser uma das primeiras críticas ao desenvolvimentismo cepalino, sua difusão no Brasil não se deve exclusivamente a seus méritos. Mas a censura imposta pelo golpe Militar de 1964, que obrigou ao exílio vários dos intelectuais brasileiros que participaram diretamente do debate, ao mesmo tempo o Brasil foi apartado do enfoque latino-americanista que se desenvolvia nas ciências sociais da região nos anos 1960-70; o papel desempenhado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sob a direção de Fernando Henrique Cardoso, em meados dos anos 1970, que, sem pudor, desqualificou as obras de outros autores sobre a dependência, como André Gunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos; e, também, a recolonização da intelectualidade brasileira e latino-americana em meio à ofensiva neoliberal, criando um ambiente acadêmico incompatível com o debate sobre a teoria da dependência.

Em sua “Nota prévia” a autora deixa bastante claro que seu trabalho representa parte do esforço coletivo em superar o pensamento desenvolvimentista (e, também a orientação etapista dos Partidos Comunistas para a revolução nos países latino-americanos), buscando estabelecer as bases de uma teoria marxista da dependência. Nos termos da autora, tal tarefa correspondia a duas ordens de necessidades:

(…) primeiro, compreender o caráter e as contradições do capitalismo dependente na fase de integração monopólica mundial, o que possibilitava explicar a profunda crise que este sistema atravessava; segundo, oferecer elementos para a reorientação da concepção estratégico-tática que guiava os movimentos revolucionários, o que se fazia imprescindível frente aos duros reveses sofridos por esses movimentos, que se deviam em parte aos seus equivocados pressupostos programáticos. (p.28)

O livro é dividido em três partes organicamente interligadas. A “Primeira Parte Para uma tipologia da dependência (industrialização e estrutura socioeconômica)” busca apresentar e fundamentar a tipologia da dependência, delimitando dois grandes grupos de países dependentes na América Latina. Portanto, a primeira parte está voltada ao estabelecimento de questões metodológicas da tipologia da dependência. Bambirra parte do pressuposto de que o desenvolvimento do capitalismo na América Latina ocorre dentro do contexto da expansão e evolução do capitalismo mundial. De modo que o capitalismo latino-americano, sem negar as leis gerais de acumulação, assumiu formas específicas configurando tipos específicos de capitalismo dependente. A compreensão do caráter e modo de funcionamento desses tipos específicos está diretamente ligada à dinâmica assumida historicamente no capitalismo dos países centrais.

O método proposto pela autora parte das características gerais do que pode ser definido como um conjunto de sociedades capitalistas dependentes, dado o fato de que a integração dos países latino-americanos ao sistema capitalista mundial no século XIX só poderia ter se fundamentado como economias primário exportadoras. Em seguida a autora busca diferenciar os componentes internos essenciais através da agrupação de tipos, uma vez que, dentro do marco geral das economias exportadoras, alguns países obtiveram a independência antes que outros, instalaram regimes políticos diferentes, alguns países atravessaram longas guerras civis, outros travaram conflitos bélicos regionais que destroçaram suas economias e alguns já começaram a desenvolver indústrias no final do século XIX. Essas foram as possibilidades estruturais que se concretizaram no interior do marco geral da dependência (BAMBIRRA, 2013, p. 41).

Dessa relação entre a estrutura e as situações específicas de dependência tornasse mais claro que o objetivo específico da obra “consiste num nível intermediário entre a tentativa de conceitualização teórica geral da dependência (…) e o estudo específico das estruturas dependentes concretas” (BAMBIRRA, 2013, p. 39).

É bastante comum encontramos tentativas de elaboração de tipologias dos países latino-americanos, mas a maioria apresenta limitações resultantes de seus pressupostos, da metodologia empirista e do enfoque dado à questão da dependência. Assim, nos deparamos com o enfoque de Gino Germani sobre as sociedades modernas e sociedades tradicionais, o enfoque de Jacques Lambert da “estrutura social evoluída homogênea”, das “estruturas arcaicas” da “estrutura social dualista”. Todavia são concepções orientadas por uma percepção gradualista do desenvolvimento, cuja referência são os países capitalistas centrais. Outro caso é o trabalho de Ruy Marini – Subdesenvolvimento e Revolução em que, ao analisar as tendências subimperialistas brasileiras, aponta uma tipologia dos países dependentes em forma piramidal, de maneira que apenas a algumas economias da região estão abertas às possibilidades de uma política subimperialista. Mesmo sendo um grande esforço que se dirige ao estudo do capitalismo dependente brasileiro, ao mesmo tempo em que se busca realizar generalizações para o subcontinente, essa obra esbarra no limite de que o caso brasileiro é tomado como modelo de análise do capitalismo dependente.

Para Bambirra, uma das melhores tentativas de tipologias até aquele momento era encontrada na obra de Enzo Faletto e F. H. Cardoso, Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Os autores se propõem a realizar uma análise integrada do desenvolvimento através de uma valiosa discussão metodológica, que parte de uma crítica aos enfoques empiristas e estruturalistas. Embora essa obra possua seus méritos, Bambirra indica que seu limite reside no fato de que o “âmbito econômico está presente neste estudo somente como um ‘marco’ muito geral” (p. 49). Esse limite terá consequências maiores na incongruência com os fatos históricos, mas principalmente com relação à classificação dos países e, mais evidente o limite com relação à definição do novo caráter da dependência pós-1945.

Bambirra propõe uma nova tipologia dos países latino-americanos a partir de dois grandes tipos de estruturas dependentes: o tipo A, constituído por países cujo processo de industrialização começou a partir das últimas décadas do século XIX (Brasil, Argentina, México, Uruguai, Chile e em menor medida Colômbia); o tipo B, composto por aqueles onde tal processo ocorrerá a partir da II Guerra Mundial, controlado diretamente pelo capital estrangeiro (Peru, Venezuela, Equador, Costa Rica, Guatemala, Bolívia, El Salvador, Panamá, Nicarágua, Honduras, República Dominicana e Cuba). A autora sugere que seria possível estabelecer um terceiro tipo C, com os países de estrutura agrário-exportadora, sem diversificação industrial, incluindo Paraguai, Haiti e, talvez, Panamá.

O estabelecimento das tipologias de Bambirra foi um recurso indispensável para explicar os diferentes níveis de desenvolvimento capitalista nos países latinoamericanos. Principalmente para explicar porque apenas nos países de tipo A tem origem uma burguesia industrial nacional com capacidade de oferecer à sociedade um projeto próprio de desenvolvimento. Bambirra considera que apenas nos países de tipo A ocorreu, de fato, o processo de substituição de importações e o deslocamento do bloco primário-exportador da condução hegemônica da sociedade. Nos países de tipo B, suas burguesias industriais jamais tiveram peso substantivo frente ao controle do capital estrangeiro, portanto, nunca foram capazes de mobilizar a população através do fenômeno do populismo, senão, um tipo de “populismo defensivo”, cujo eixo era a afirmação da nação e a negação do imperialismo, um “populismo” oligárquico para chantagear o imperialismo.

A segunda parte da obra “As estruturas dependentes na fase de integração monopólica mundial” analisa o impacto das transformações no sistema capitalista mundial, principalmente aquelas gestadas pela hegemonia estadunidense, nos dois tipos de países latino-americanos. O imperialismo pós-1945 se orienta não apenas no controle de matérias-primas e conquista de mercados, mas volta sua atenção para investimentos nos setores manufatureiros. Portanto, novo caráter da dependência resulta da “penetração sistemática do capital estrangeiro, em especial do capital estadunidense, no setor mais dinâmico das economias dos países dependentes, ou seja, o setor manufatureiro” (BAMBIRRA, 2013, p. 126).

É a esse processo que Bambirra define como integração monopólica, uma vez que tem por consequências para os países latino-americanos a transformação das burguesias industriais em sócias menores das empresas multinacionais, levando-as a abdicar das bandeiras anti-imperialistas e nacionalistas-populistas. Isso significa que, em ambos os tipos, foram acirradas as contradições sociais, cujo modo de contenção, adotado pelas burguesias nos países de tipo A e pelas oligarquias nos tipo B, foi a adoção de governos ditatoriais instaurados por golpes militares em toda a região.

A Terceira última e parte “Contradições do capitalismo dependente” analisa as principais contradições do desenvolvimento capitalista dependente, assim como os resultados e as perspectivas que começam a se esboçar para o futuro da região. A principal conclusão da autora é que o sistema de dominação e exploração do bloco dominante nos países dependentes não pode resolver tais contradições e, para sustentar-se, apela a formas mais extremas de repressão econômica, política e social. A alternativa para esse sistema de dominação-exploração seria o socialismo.

Do ponto de vista do funcionamento da economia, em todos os países, ocorre um processo de monopolização dos setores mais dinâmicos pelo capital estrangeiro. A princípio, o processo de integração monopólica implicaria em características semelhantes para o conjunto dos países latino-americanos. Porém, não é esse o caso. Os resultados do desenvolvimento capitalista dependente nos países do tipo A – como Brasil, Argentina e México – configuram tendências específicas, que muito dificilmente se estenderiam a todos os países do mesmo tipo. Tal seria o caso das tendências subimperialistas que, de acordo com Bambirra,

(…) consistiram na exploração de um país dependente mais desenvolvido sobre outros menos desenvolvidos, em busca do controle de parte substancial de seus mercados, através não apenas de exportações, mas, sobretudo, de investimento em setores econômicos básicos – de recursos naturais ou de instalação de indústrias -, o que suporia um certo domínio político e militar por parte do país subimperialista. (p. 218)

Bambirra encerra sua obra indicando que essas novas tendências exigiriam a redefinição da tipologia proposta, uma vez que, se o processo de desenvolvimento possuiu características semelhantes em alguns países, esse mesmo processo revelou tendências distintas para um grupo reduzido de países (caso do Brasil, Argentina e México). Assim, frente à mudança de qualidade nos processos econômico-político-sociais, para que a tipologia siga tendo utilidade analítica é indispensável sua redefinição.

O estabelecimento de tipologias é algo que muitos autores dependentistas se debruçaram direta ou indiretamente, e que com maior ou menor sucesso permitiu a articulação dos níveis concretos e abstratos, no intuito de compreender o desenvolvimento do capitalismo dependente.Quarenta anos depois, nos parece urgente a reavaliação das tipologias da dependência como um importante instrumento para a reflexão sobre a nova fase do imperialismo na região, mas, sobretudo, para avaliar as possibilidades abertas de complementaridade das economias com base no reconhecimento de suas assimetrias, principalmente numa época de reorganização dos espaços de integração regional e do resgate da soberania nacional. Qualquer intento de integração latino-americano genuinamente alternativo tem de levar em conta os riscos de se reproduzirem os mecanismos da divisão regional do trabalho, que acarretaria no aprofundamento da especialização produtiva de alguns países conforme a hegemonia de um ou outro país no interior do mesmo processo.

O autor é docente da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Centro Universitário de Brasília (Uni-CEUB). E-mail: [email protected]

(BAMBIRRA, Vânia. O Capitalismo Dependente Latino-Americano. Florianópolis: Insular, 2012)

 

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