Slavoj Žižek: Precisamos falar da Turquia

Por Slavoj Žižek, via Newstatesman, traduzido por Daniel Alves Teixeira.

A assim chamada “guerra ao terror” se tornou uma batalha dentro de cada civilização, na qual todo lado pretende lutar contra o ISIS para atingir seu verdadeiro inimigo. 


Existe algo de estranho acerca das solenes declarações de que nós estamos em guerra com o Estado Islâmico – todas as superpotências do mundo contra uma gangue religiosa controlando um pedaço de uma terra praticamente deserta … Isso não quer dizer que nós não devemos nos focar em destruir o ISIS, incondicionalmente, sem nenhum “mas….”. O único “mas” é que nós devemos REALMENTE focar em destruí-lo, e para isso é preciso muito mais do que as patéticas declarações e apelos de todas as forças “civilizadas” contra o demonizado inimigo fundamentalista.

O que não se deve fazer é engajar-se nessa ladainha habitual da esquerda liberal de “não se pode lutar terror com terror, violência somente gera mais violência”. O tempo chegou para começar a levantar questões desagradáveis: como é possível para o Estado Islâmico sobreviver? Como todos nós sabemos, a despeito de condenações formais e rejeições de todos os lados, existem forças e estados que silenciosamente não só o tolera, mas também o ajuda. Recentemente com os violentos enfrentamentos entre o exército russo e os terroristas do ISIS atravessando a devastada Síria, um número incalculável de soldados feridos do ISIS entrou no território Turco e foi admitido nos hospitais militares.

Como David Graeber apontou recentemente, se a Turquia tivesse colocado o mesmo tipo de bloqueio absoluto do território do ISIS como eles fizeram com as partes curdas da Síria, se tivesse mostrado o mesmo tipo de “negligência benigna” com o PKK e o YPG que eles estiveram oferecendo ao Estado Islâmico, o Estado Islâmico poderia há muito ter colapsado, e os ataques de Paris poderiam provavelmente não ter acontecido. Ao contrário, a Turquia estava não só discretamente ajudando o IS ao tratar seus soldados feridos, e facilitando a exportação de petróleo dos territórios controlados pelo IS, mas também atacando brutalmente as forças curdas, a ÚNICA força local engajada em uma batalha séria com o IS. Mais ainda, a Turquia até mesmo abateu um avião russo que atacava posições do ISIS na Síria. Coisas similares estão acontecendo na Arábia Saudita, o aliado chave dos EUA na região (que deram boas vindas a guerra do IS aos Xiitas), e até mesmo Israel está suspeitosamente silente em sua condenação do ISIS fora do cálculo oportunista (o ISIS está lutando com as forças pró-iranianas xiitas que Israel considera sua maior inimiga).

O acordo entre a União Europeia anunciado no fim de Novembro (através do qual a Turquia irá conter o fluxo de refugiados na Europa em troca de uma generosa ajuda financeira, inicialmente 3 bilhões de Euro) é um ato vergonhoso e nojento, um desastre ético-político propriamente dito. É assim que a “guerra ao terror” tem de ser conduzida, sucumbindo à chantagem turca e premiando um dos principais culpados pela ascensão do ISIS na Síria? A justificação oportunista-pragmática desse acordo é clara (não é subornar a Turquia o caminho mais óbvio para limitar o fluxo de imigrantes?), mas as consequências de longo prazo serão catastróficas.

Esse fundo obscuro torna claro que a “guerra total” contra o ISIS não deve ser tomada seriamente – eles não querem dizer isso realmente. Nós definitivamente não estamos lidando com um choque de civilizações (o ocidente Cristão versus o Islã radicalizado), mas com um choque dentro de cada civilização: no espaço cristão são os Estados Unidos e a Europa Ocidental contra a Rússia, e no espaço muçulmano são os Sunitas contra Xiitas. A monstruosidade do Estado Islâmico serve como um fetiche cobrindo todas essas lutas na qual cada lado pretende lutar contra o ISIS para atingir seu verdadeiro inimigo.

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