Uma filosofia para militantes

Por Aaron Hess, via International Socialist Review, traduzido por Daniel Alves Teixeira

Entrevista a Alain Badiou de 11 de Dezembro de 2014, pouco antes dos recentes assassinatos nos escritórios do Charlie Hebdo e em um supermercado judeu. Em resposta a esses eventos, e a onda de islamofobia e repressão que o seguiu, Badiou escreveu um artigo no jornal francês Le Monde, “O vermelho e o tricolor”, que chama a atenção para a hipocrisia do nacionalismo francês e argumenta que o ciclo de violência entre o imperialismo e as correntes extremistas do islamismo somente pode ser superada através do “verdadeiro universalismo” de uma nova política comunista.


ISR: Vamos começar com a política? Recentemente temos visto grandes protestos em todo o Estados Unidos provocados pelas repetidas ocorrências de policiais que assassinam Americanos Africanos desarmados e saem impunes. Você tem sido há tempos uma voz oponente do racismo e da violência policial na França. Você vê paralelos entre a situação nos dois países?

Alain Badiou: Existe certamente algo similar entre as duas situações, porque na França, também, existe uma dimensão racista nas ações da polícia. Nos nossos largos subúrbios fora das grandes cidades, muitos trabalhadores e suas famílias vêm da África, são negros e Árabes, e foi provado estatisticamente que se você é negro ou árabe é seis ou sete vezes mais provável que você seja preso pela polícia do que se você é branco, muitas vezes pela mesma infração.

Algumas observações. O presidente do seu país é negro. Agora, claramente, não há ligação direta entre Obama e os recentes assassinatos policiais – eu não estou sugerindo isso. Mas me parece que existe talvez uma relação simbólica. Mas também isso é contraditório. De um lado, nós podemos interpretar o fato de que os assassinatos ocorrerem em um lugar em que o presidente é negro como a expressão de um racismo fundamental contra as pessoas negras. De outro lado, este não é o caso, a eleição de Obama aponta para uma realidade diferente. E então minha convicção é que existe uma necessidade estrita de grandes manifestações, de mobilização e revolta contra esses insultos. Na França a resposta tem sido muito fraca. Eu espero que nos Estados Unidos a reação seja muito mais forte. É isso que eu espero.

ISR: Outra dimensão do racismo contemporâneo em ambos os países é a Islamofobia. Na França isto tem tomado ambas uma forma legal e política – por exemplo, a lei banindo o hijab aprovada em 2010 e,  mais recentemente, maio passado, uma votação substancial para a extrema-direita da Frente Nacional nas eleições parlamentares europeias. Quais são suas visões sobre isso? Você vê a Frente Nacional como uma ameaça real?

Alain Badiou: Você sabe, a existência na França de uma forte corrente contra muçulmanos é o resultado de muitos fatores. O primeiro é o colonialismo. Em um passado não muito distante, nós tivemos a Guerra da Argélia, uma guerra colonial contra o povo algeriano. Então a primeira causa do racismo contra Árabes e Muçulmanos tem uma natureza ideológica. É um racismo que pode ser rastreado até o colonialismo, esse sentimento de superioridade do mundo Ocidental. Da mesma forma a superioridade do “nativo” contra o imigrante, e na França existe também uma dimensão religiosa da superioridade cristã sobre a Muçulmana. E intelectuais franceses, incluindo intelectuais bem conhecidos, participam dessa campanha contra os Muçulmanos. No Le Figaroe em outros lugares você pode ler isso; esta é uma tendência intelectual.

As leis de que você falava são em minha visão leis ilegais, porque elas são leis de perseguição, segregação, e apartheid. Elas são o resultado desta forte tendência ideológica vinda do passado colonial e também dessa confusão ideológica na França nos últimos tempos.

Mas existe outra coisa, que é a contradição social. Depois da guerra, nós tivemos um grande número de trabalhadores vindo para as fábricas na França, e esses trabalhadores são em sua maioria Árabes e Muçulmanos. A grande maioria dos trabalhadores Árabes e Africanos são pessoas pobres que vivem em condições muito difíceis nos subúrbios. Eles são segregados porque a maioria dos trabalhadores brancos não vive – e normalmente se recusa a tanto – nos mesmos bairros. Nós temos então uma mistura de algo de natureza racista e ideológica com algo de natureza social: uma mistura de tradição ideológica no sentido reacionário, e algo que toma a forma clássica da luta de classes. E é essa mistura que cria uma situação muito difícil para Árabes e Muçulmanos. Então eu acredito que é necessário organizar uma resistência muito forte não somente contra o estado, mas também contra as correntes ideológicas, incluindo a Frente Nacional.

Quanto à Frente Nacional, eu penso que eles são muito mais o resultado do que causa do problema. Naturalmente, os militantes da Frente Nacional estão ativos em qualquer forma que eles possam. Mas sua força hoje é o resultado de muitos, muitos anos de campanha oficial contra os Muçulmanos: as leis contra o hijab, as condições segregadas de vida para muitos, e a campanha contra os Muçulmanos enquanto tal. Em adição a tudo isso há também, é claro, essa noção de que o mundo Ocidental da “liberdade” é superior aos “bárbaros”.

ISR: Na França existe também uma articulação particular desse chauvinismo racial e religioso, não há? A tradição republicana é frequentemente invocada para legitimar isso.

Alain Badiou: Absolutamente. Esse é um ponto especificamente francês. O termo francês é “laicidade”. Na tradição republicana, a tradição do iluminismo do século XVIII, a palavra era usada em sua forma clássica contra a religião. Ela é usada agora para criar uma posição neutra “secular”. Mas é claro que ela não é uma posição neutra porque ela é usada contra os Muçulmanos. Não existem leis direcionadas enquanto tal a Cristãos ou Judeus. Mas existem muitas leis, decretos e decisões dirigidas especificamente contra os muçulmanos. E o Islã, você deve lembrar, é em nosso país a religião dos pobres.

Temos que defender a verdadeira tradição republicana deste mau uso inaceitável. Devemos insistir no fato de que a educação é para todos. Você pode ter a educação religiosa, é claro, mas o primeiro princípio é que a educação deve ser para todos. Portanto, que a tradição republicana seja usada para privar as jovens mulheres de qualquer forma de educação é absolutamente inaceitável. Mesmo se você tomar a tradição republicana em seu sentido preciso a exclusão da educação é um escândalo. Uma lei que exclui uma mulher ou menina da educação por causa de uma peça de roupa que ela veste, sob o fundamento de que ela “paralisa” a educação, pode isso ser a tradição republicana? Não, é uma lei de apartheid e repressão social.

ISR: Você escreveu um pequeno livro publicado em Inglês no ano passado intitulado Filosofia para militantes. Por que os ativistas políticos radicais de hoje devem prestar atenção à filosofia?

Alain Badiou: Você sabe, tem havido uma longa história. Se você pensar a situação no século XIX, você tinha muitos filósofos que eram intelectuais públicos, que tomavam posições públicas sobre muitas questões: contra a tortura e repressão, em apoio dos presos, e muitos outros. Então a ideia de que existe uma relação entre as convicções filosóficas e a ação política tem sido verdade desde o século XIX até hoje.No legado marxista, sempre houve uma relação, mesmo se por vezes dificultosa e contraditória, entre a filosofia dialética – vinda de Hegel e Marx – e a determinação política. E eu penso que esse ponto é especialmente importante hoje, pois no momento presente existe uma fraqueza geral de ideias revolucionárias. E então, quando homens e mulheres se engajam hoje na ação política eles estão em busca de uma orientação.

O que é uma orientação política hoje? Com o fracasso do velho comunismo, com o desenvolvimento do neoliberalismo, com a ascensão de uma China capitalista-autoritária, isso continua a ser uma questão em aberto. As novas guerras de hoje, as ocupações imperialistas do Iraque e do Afeganistão, também, são complexas – não há nenhum caso claro do “bom” contra o “mal”. Nesta situação, encontrar alguns pontos claros de orientação, alguns princípios comuns para a ação, é uma necessidade. É por isso que muitas pessoas interessadas em filosofia hoje estão à procura de uma orientação geral em relação à vida política, e que a questão de uma orientação geral seja obscura não é surpreendente.

Não é tanto a questão das lutas imediatas que é obscura. Em muitos casos, não é. Por exemplo, que você deve lutar contra a violência policial racista é claro. Mas é claro que a longo prazo não é suficiente defender uma indignação puramente negativa. Você deve ter alguns princípios, alguma vontade positiva, uma determinação afirmativa. Então, finalmente, na presente obscuridade, a busca pela luz por meio da filosofia é normal. Obviamente pode ser difícil para a filosofia dar uma resposta clara a essas demandas, mas isso é problema seu.

ISR: Sobre o tema da orientação política, você tem defendido uma renovação da ideia do comunismo, e por uma nova política comunista. Por que você escolheu fazê-lo, dadas as contradições e, ainda, os terríveis crimes associados com o termo?

Alain Badiou: É claro que eu estou bem ciente de todas as desvantagens da palavra comunismo. Mas, por outro lado, o comunismo foi a única tentativa histórica de unificar uma visão do futuro de uma maneira que é claramente e absolutamente contrária ao capitalismo. E depois de tudo, o mundo como ele é hoje existe sob o domínio do capitalismo, um capitalismo globalizado. E como sabemos, todas as diferentes formas políticas neste mundo, incluindo os Estados democráticos, existem sob o domínio do capital.

Então, eu estou ciente das desvantagens, mas todos os nomes políticos estão em um sentido comprometidos, por último mas não menos a democracia. George W. Bush chamou a si mesmo um democrata. Sarkozy era um democrata. Todo mundo finge ser um democrata. Assim em seu sentido aceito a democracia não é de forma alguma mais clara do que comunismo. Mas renovar o comunismo significa começar a renovar a oposição política contra o sistema capitalista. Comunismo é um nome correto para isso.

Nós temos o que eu chamo de os três estágios na história do comunismo. O primeiro estágio é a invenção do conceito e sua formalização com o surgimento do Marxismo; a segunda, a história dos Estados comunistas do último século – a revolução na Rússia, a revolução na China. E proponho dizer que estamos começando um terceiro estágio do comunismo que não é nem o nascimento da ideia, nem o fracasso da primeira tentativa de realizar a ideia.

Quando você diz que comunismo, muitas pessoas dizem imediatamente, “isso significa Stalinismo!” Mais uma vez a questão dos nomes comprometidos! O presidente francês chama a si mesmo de socialista, mas como sabemos não há absolutamente nada socialista sobre ele. A palavra comunismo possui as vantagens de sua dificuldade, isto é, o fracasso radical das tentativas passadas. Mas mesmo em seu fracasso, você tem a impossibilidade de confudir entre o comunismo e o capitalismo. E eu não sei qualquer outra palavra que pode significar algo assim. Portanto proponho esse nome como uma orientação muito geral, que inclui muitas formas diferentes de ação política, que não estejam sob a lei da propriedade privada, da oligarquia financeira, e assim por diante. Eu sei o risco. Se alguém propuser um nome melhor, sem problema, eu estou disposto a aceitar um nome diferente se isso significar um movimento em total oposição ao capitalismo.

ISR: Há também uma dissidência comunista, uma tradição socialista revolucionária que sempre manteve uma oposição de princípio à ambos o capitalismo ocidental e o stalinismo em suas várias formas. Você acha que esta tradição dissidente pode nos ajudar a renovar uma política revolucionária relevante hoje?

Alain Badiou: Absolutamente. Eu acho natural que se vamos pensar através de uma nova definição do comunismo hoje, nós temos também, no passado, todas as tentativas feitas sob o nome do comunismo – e,  finalmente, todos aqueles que estiveram associados com organizações comunistas – para dar à palavra comunismo outro significado, um outro sentido do que a tradição Stalinista.

Você tinha, por exemplo, a organização Socialismo ou Barbárie na França. Também o trotskismo, e interpretações do maoísmo. E também algumas figuras dentro do anarquismo que resistiram à hegemonia da tradição dominante do comunismo no século XX. Eles estão todos dentro do escopo da nossa meditação.

ISR: Muitas pessoas que radicalizadoras de hoje, especialmente os jovens, suspeitam da política, da forma partido, mas também da representação política e da liderança enquanto tal. Porém é óbvio para muitos que existe uma necessidade de uma estratégia maior e coerência tática nos movimentos. Como nós começamos a abordar esse problema?

Alain Badiou: Se eu soubesse! É uma questão em aberto. Mas nós podemos desenvolver uma noção clara do problema. E hoje o problema não é uma questão de revolta, ou do movimento de massa em si mesmo. Nós tivemos ao longo dos últimos anos muitos levantes, muitas revoltas, vários movimentos de massa: no Egito e em todo o Oriente Médio, na Coréia do Sul, na Turquia, Brasil, China, até mesmo hoje nos Estados Unidos. Existe uma nova situação planetária. Para mim é algo como os anos 60: isso é, o começo dos anos 60. O movimento contra a Guerra do Vietnã, por direitos civis, o próprio começo das greves nas fábricas, etc, etc. Nós tínhamos o mesmo sentimento da possibilidade de grandes revoltas e movimentos de massa que nós temos hoje.

A dificuldade em política hoje não é que as pessoas não fazem nada; esse não é o caso. Nós certamente continuamos em um tempo muito reacionário. Mas não é verdade dizer que em um senso prático todo mundo está inerte. Ocorreram movimentos de massa reais. Portanto, a questão para nós hoje não é uma questão de revolta, de negação, ou levante contra o mundo tal como ele é. A nova geração, em particular, mostrou-se capaz disto.

O problema é que aquilo que chamamos de “política” no sentido clássico, isso é, o mundo dos partidos e das instituições políticas clássicas, parece, para os jovens em particular, pertencer a um mundo velho, não realmente ativo no mundo contemporâneo. E isso levanta dois pontos difíceis. O primeiro é a ideologia. Nós não temos uma ideia clara e comumente compartilhada do que nós queremos. Claro é o que nós não queremos, menos claro é o que queremos. Então uma discussão de natureza ideológica tem lugar entre a filosofia e a determinação política, entre princípios éticos e engajamento político. É uma discussão muito similar com a discussão que teve lugar no século XIX. Eu digo frequentemente que nós retornamos a uma situação que lembra os meados do século XIX mais do que o século passado. É uma sequência em que precisamos de ideias políticas novas, novas maneiras de analisar a situação, esse é o primeiro ponto. Nós precisamos de novos estudos no campo da economia e da ecologia. Mas esta discussão vai criar uma luz em tempos obscuros, nesse ponto eu sou otimista.

O segundo ponto diz respeito à forma de organização política. Muitas pessoas concordam que precisamos de uma organização que é “próxima” ao movimento, uma organização política. E esta organização é necessária não só para organizar a revolta, mas para organizar o tempo, um novo tempo político. Porque diante de nós ergue-se o Estado, e o Estado tem em um sentido todo o tempo de que Precisa. Assim, uma questão importante hoje é: Como podemos organizar um novo tempo político?

ISR: No “Filosofia para Militantes” você parece desconsiderar, eu acho, o que você chama de “tradição revolucionária clássica.” Mas não é a tarefa para os revolucionários de hoje não abandonar essa tradição, com o seu objetivo de abolir o capitalismo e o estado, mas renová-la tanto em nível teórico quanto prático?

Alain Badiou: A questão da organização política parece ser realmente uma questão obscura e difícil. Isso é dizer: como é possível proceder, além da revolta e do levante dos movimentos de massa – com sua demanda por estruturas horizontalizadas e seu gosto por grandes assembleias – para a organização do tempo político, para a capacidade de saber como fazer progressos no campo político.

A questão da organização política é e provavelmente sempre foi a mais difícil em política. Nós podemos estudar sua história, essa história das revoltas espontâneas, dos partidos políticos, de partidos leninistas, dos partidos lutando pela libertação nacional, etc, etc. Quando se fala de tradição revolucionária clássica, pensa-se geralmente na convicção de que o centro de qualquer atividade política é na verdade a revolução, o que quer dizer tomar o poder, destruir o antigo poder.

ISR: Uma ideia bastante fora de moda na esquerda hoje.

Alain Badiou: Sim. E nós sabemos agora, o que nós não sabíamos no fim do século XIX, que a dificuldade está não simplesmente na revolução enquanto tal, mas no que vem depois. É uma lição profunda e decisiva. Quando eu critico a tradição revolucionária clássica não é da perspectiva de que seria ruim tomar o poder e destruir a potência do inimigo. Não mesmo, naturalmente. Mas eu sei que a dificuldade se encontra depois, na falha geral em estabelecer uma nova vontade política pelos estritos meios políticos do poder de Estado. No seu conjunto, nós somos contemporâneos de um novo fato: as revoluções existiram, revoluções vitoriosas ocorreram, sem dúvidas quanto a isso, mas nós sabemos também que a construção de uma nova sociedade por meio de novas formas de poder tem sido historicamente um fracasso.

Nós não podemos simplesmente repetir o passado. Nossa tarefa é repensar novamente o mesmo problema: como é possível destruir o poder estatal do inimigo e produzir um novo poder? Na verdade essa foi uma formulação original da ideia marxista, encontrada no próprio Marx, de que nós devemos tomar o poder. Mas após a Comuna de Paris o próprio Marx afirmou que nós precisamos destruir todo o poder estatal, não somente aquele do inimigo, mas toda forma de poder estatal. Então deve-se organizar o desaparecimento, o apagamento do Estado. O que nós aprendemos agora e que é impossível organizar um fim progressivo do Estado através dos meios do Estado. E é por isso que é agora, e não depois, que nós devemos imaginar esse novo poder.

Como ele poderia parecer? O novo poder precisa desenvolver uma relação próxima entre o poder do estado e o movimento de massa, algo como isso. E essa nova forma de dialética positiva entre o poder do estado e o movimento de massa é a questão da organização. Porque para fazer dele uma realidade, a política do futuro precisa ter três termos: o poder estatal, o movimento de massa, e organização política, que não seja redutível nem ao movimento de massa – pois ela precisa também construir um novo tempo político – nem ao Estado.

Portanto eu penso que nós temos que criar uma situação política em que sejamos capazes de ter um movimento, um movimento dialético, dos três termos. E eu sou desconfiado de todas as formas políticas que envolvam a redução de qualquer dos três termos. Por exemplo, um movimento de massa sem nenhum estado leva a anarquia clássica, ou se o estado é reduzido a algo sem o movimento de massa você tem de novo o partido “clássico”. Então formalmente a questão é como propor uma dialética que não é uma dialética entre um ou dois termos, mas entre os três termos do campo político.

ISR: Em Uma Vida Impaciente, o maravilhoso livro de memórias de seu amigo, o falecido Daniel Bensaïd, ele discute como uma campanha política tem sido travada em França contra o legado radical de maio de 1968 – um esforço para difamar e caricaturar os acontecimentos daquele ano. Qual é, na sua opinião, o legado autêntico de 1968, e por que os radicais orientados para o futuro deveriam estar interessados em defendê-lo?

Alain Badiou: Eu posso responder explicitamente a sua pergunta. A novidade de 1968 não era simplesmente a existência de movimentos fortes na educação e entre os jovens. Porque algo parecido existia em praticamente todos os países do mundo no mesmo tempo. Nem era a existência da greve geral de trabalhadores mais importante no país. Porque, por exemplo, nós tínhamos visto na França algo parecido em 1936. A novidade foi a conexão entre os dois. Isso era completamente novo, porque até mesmo o Partido Comunista se opunha à coexistência dos dois movimentos. No Partido Comunista os trabalhadores foram organizados absolutamente apartados dos intelectuais radicais, e só o partido podia mediar a relação entre os dois.

ISR: A sua participação significou uma ruptura com o partido, e de seu mentor Louis Althusser?

Alain Badiou: Sim, com certeza, e foi uma separação violenta. A novidade de 1968 foi a possibilidade da organização e da realização – e eu participei dos eventos muito concretamente – de uma relação direta entre os dois movimentos. Isso significava ir às fábricas, discutir com os trabalhadores, e criar uma forma de unidade popular de um tipo realmente novo, que não tinha existência no país antes. E depois disto houve a tentativa de criar, neste novo elemento, uma nova forma de política que não deixasse o partido enquanto tal ter o monopólio da conexão social. Pelo contrário, a nossa tentativa foi a de tornar possível que tal conexão social fosse a base para uma nova forma de organização.

Finalmente, nós fizemos tudo isso com entusiasmo, mas historicamente não foi um sucesso. Mas isso não é o problema depois de tudo. Era como o início do século XIX, foi uma experimentação fundamental. E a minha ideia hoje continua a mesma. Se quisermos encontrar o caminho para uma nova forma de organização, isso não será alcançado nem por alguns meios puramente intelectuais, nem pelas ações separadas da juventude educada, nem por revoltas da juventude popular nos subúrbios, nem por greves de trabalhadores sozinhas. Isso deve ser criado através de uma nova relação entre todas essas lutas sociais. E temos de estar confiantes de que através desta nova relação as novas formas de tempo político e organização podem ser criadas.

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1 comentário em “Uma filosofia para militantes”

  1. Republicou isso em Tempus fugite comentado:
    Alain Badiou: Você sabe, tem havido uma longa história. Se você pensar a situação no século XIX, você tinha muitos filósofos que eram intelectuais públicos, que tomavam posições públicas sobre muitas questões: contra a tortura e repressão, em apoio dos presos, e muitos outros. Então a ideia de que existe uma relação entre as convicções filosóficas e a ação política tem sido verdade desde o século XIX até hoje.No legado marxista, sempre houve uma relação, mesmo se por vezes dificultosa e contraditória, entre a filosofia dialética – vinda de Hegel e Marx – e a determinação política. E eu penso que esse ponto é especialmente importante hoje, pois no momento presente existe uma fraqueza geral de ideias revolucionárias. E então, quando homens e mulheres se engajam hoje na ação política eles estão em busca de uma orientação.

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