O marxismo como teoria “finita”

Por Louis Althusser*, via Marxist.org, traduzido por Márcio Bilharinho Naves.

Em novembro de 1977, na reunião de Veneza sobre Poder e oposição na sociedade pós-revolucionária, Louis Althusser afirmava que não há uma teoria do Estado em Marx. Em março do ano seguinte, Il Manifesto [1] propôs a Althusser que aprofundasse esta questão, deixada em suspenso em Veneza, levando em conta particularmente a discussão em curso na Itália no âmbito da esquerda e, particularmente, o debate ocorrido em Mondoperaio [2] , a entrevista de Giuliano Amato a Pietro Ingrao e os últimos escritos de Biagio De Giovanni em Rinascità. [3]

Com esse objetivo foram enviados a Althusser dois blocos de perguntas. O primeiro ainda dizia respeito à questão do Estado nas experiências revolucionárias já ocorridas; o segundo se referia mais de perto à discussão italiana, particularmente, à discussão teórica na esfera política. Foi perguntado ao filósofo francês o que ele pensava sobre a tese segundo a qual necessariamente “o partido se torna Estado” e sobre a relação que nesse caso se cria entre Estado, partido e sujeitos do conflito social e suas formas de luta. Trata-se de pensar, agora e sobretudo na transição, tanto a questão da ditadura do proletariado — e a “crítica da política” que esta comporta — como a questão, não resolvida historicamente, da extinção do Estado. Uma sociedade fundada, mesmo depois da mudança da classe dominante, no princípio do “desequilíbrio” e da revolução ininterrupta, como afirmava Mao, pode viver sem uma “regra do jogo”, uma norma, um direito que se formam e se quebram no momento do conflito, sob pena de não conseguir exprimir nem o “centro”, nem a “direita”, nem a “esquerda”, isto é, não exprimir a dialética social real? O direito, o Estado, não são afinal a forma do compromisso social que ocorre em todo período, mesmo no período da transição? Mas, se isso é verdade, como e quando o Estado se extingue? O que leva a crer que no comunismo os “produtores” não terão necessidade de uma mediação política geral? (Apresentação por Rossana Rossanda)


As perguntas que você me submete são enunciadas de um modo e, sobretudo, com uma terminologia que contém toda uma série de pressupostos sobre a teoria marxista, sobre o Estado e a sociedade civil, sobre o desaparecimento do Estado, assim como sobre a política. Para tornar explícitos todos esses pressupostos, é necessário começar com uma série de observações preliminares, já que, de um ponto de vista marxista, eles nada têm de óbvios.

1. Na leitura dos textos de Ingrao e de Giovanni encontramos, não por acaso, o adjetivo “complexo” — que se repete incessantemente nos textos destes companheiros (e de outros) —, e esta noção de “globalidade” que me parece estar relacionada com o termo, por outro lado, corrente, de “generalidade” (o “momento geral”, etc.). Por trás destas expressões, assim como por trás de uma certa concepção a que elas se filiam, creio reconhecer a idéia de que a teoria marxista é capaz de “englobar” a totalidade do processo que conduzirá do capitalismo ao comunismo, quando, na verdade, ela apenas designa as tendências contraditórias que estão em ato no processo atual. Tão logo se liberta dos tons proféticos dos seus escritos de juventude e do socialismo utópico (que, diga-se de passagem, ainda permanecem, de certo modo, em O capital), Marx pensa o comunismo como uma tendência da sociedade capitalista. Essa tendência não é uma resultante abstrata. Existem já, concretamente, nos “interstícios da sociedade capitalista” (assim como existiam as trocas mercantis nos “interstícios da sociedade escravista e feudal”) formas virtuais de comunismo: como nas formas de associação que, guardadas as devidas proporções, tendem a escapar das relações de mercado.

Por trás dessas questões há um problema teórico muito importante. Eu creio que a teoria marxista é “finita”, limitada: que ela é limitada à análise do modo de produção capitalista, e de sua tendência contraditória, que abre a possibilidade da passagem para a abolição do capitalismo e sua substituição por “outra coisa”, que se delineia já “como um vazio” e positivamente, na sociedade capitalista. Dizer que a teoria marxista é “finita” significa sustentar a idéia essencial de que a teoria marxista é totalmente distinta de uma filosofia da história, que pretenda “englobar” todo o devenir da humanidade pensando-o efetivamente, e que seria, portanto, capaz de definir, antecipadamente e de modo positivo, o seu fim: o comunismo. A teoria marxista (se se deixa de lado a tentação de uma filosofia da história, à qual o próprio Marx às vezes cedeu, e que dominou de modo esmagador a Segunda Internacional e o período staliniano) está inscrita na fase atual existente, e é limitada a ela: a fase da exploração capitalista. Tudo que ela pode dizer do futuro é o prolongamento alusivo e em negativo da possibilidade objetiva de uma tendência atual, a tendência ao comunismo, que pode ser observada em toda uma série de fenômenos da sociedade capitalista (da socialização da produção às formas sociais “intersticiais”). É preciso observar que é a partir da sociedade atual que pode ser pensada a transição (ditadura do proletariado, sob a condição de não se desvirtuar instrumentalmente esta expressão) e a extinção ulterior do Estado. Tudo o que se diz sobre a transição só pode ser uma indicação induzida por uma tendência atual que, como toda tendência em Marx, é contraposta a outras tendências e só pode se realizar por meio de uma luta política. Porém, esta realidade não pode ser prevista já na sua forma positiva determinada: é apenas no curso da luta que as formas positivas podem aparecer à luz do dia, se descobrir, se tornar realidade.

Conseqüentemente, a idéia de que a teoria marxista é “finita” exclui totalmente a idéia de que ela seja uma teoria “fechada”. Fechada é a filosofia da história, na qual está antecipadamente contido todo o curso da história. Somente uma teoria “finita” pode ser realmente “aberta” às tendências contraditórias que descobre na sociedade capitalista, e aberta ao seu devenir aleatório, aberta às imprevisíveis “surpresas” que sempre marcaram a história do movimento operário; aberta, portanto atenta, capaz de levar a sério e assumir em tempo a incorrigível imaginação da história.

Creio, assim, que devemos recusar completamente a idéia, que se encontra ainda em certas expressões de Lenin, e também de Gramsci, de que a teoria marxista é uma teoria “total”, similar a uma filosofia da história que culmina em uma prática do Saber absoluto, e capaz de pensar problemas que “não estão na ordem do dia”, antecipando arbitrariamente as condições de sua solução. Se a teoria marxista é verdadeiramente “finita”, é a partir da profunda consciência de sua finitude que é possível colocar a maior parte dos nossos grandes problemas.

A isto se acrescenta, ademais, o fato de que, também a propósito da sociedade capitalista e do movimento operário, a teoria marxista quase não diz nada sobre o Estado, nem sobre a política, nem sobre a ideologia e as ideologias, nem sobre as organizações da luta de classes (estruturas, funcionamento). É um “ponto cego” que testemunha, sem dúvida, alguns limites teóricos contra os quais Marx se chocou, como se estivesse paralisado pela representação burguesa do Estado, da política, etc., a ponto de reproduzi-la sob uma forma apenas negativa (crítica de seu caráter jurídico). Ponto cego ou zona proibida, o resultado é o mesmo. E isso é importante, porque a tendência ao comunismo se encontra como que bloqueada (ou inconsciente de si) em tudo o que diz respeito a essas regiões ou a esses problemas.

2. O segundo pressuposto diz respeito à política. Parece-me que Gramsci, malgrado o seu profundo senso da história, obscurece mais do que ilumina este ponto cego que há em Marx, quando recupera a velha distinção burguesa entre sociedade política e sociedade civil, mesmo se ele dá um outro sentido à noção de sociedade civil (organizações “hegemônicas” privadas, portanto, fora da “esfera do Estado” que é identificada com a “sociedade política”, o que implica em apoiar-se de novo na distinção jurídica entre “público” e “privado”). Eu creio que na problemática que se discute na Itália há um nexo entre as noções de sociedade política, de Estado e a função de “generalidade”, contraposta ao “privado” (o que não é exatamente a mesma coisa que o “particular”, e muito menos o “setorial”, a que se refere De Giovanni, o qual todavia também fala do “privado”). Penso que este agregado de noções que se comunicam entre si reenvia, apesar de tudo, tanto à ideologia, à concepção e à prática burguesa da política, como, por fim, ao idealismo latente de uma “universalidade do Estado” como o lugar onde se realiza o “universal”, ou a generalidade de uma humanidade enfim libertada da exploração, da divisão do trabalho e da opressão (dirigentes/dirigidos), que Marx conserva durante muito tempo em suas obras de juventude, como herança de Feuerbach, mas também posteriormente: no fundo, a essência humana reside no Estado, que exprime a sua universalidade de forma alienada; basta tomar consciência disso e realizar conseqüentemente uma boa “universalidade”, não alienada. No final deste caminho se encontra o reformismo.

Ora, eis o ponto que me parece essencial: o fato de que a luta das classes (burguesa e proletária) tenha como objeto o Estado (hic et nunc) não significa de modo algum que a política deva definir-se em relação ao Estado. É preciso, portanto, distinguir atentamente a política proletária de seu objetivo imediato. Assim como Marx apresentou conscientemente O capital como “crítica da economia política”, nós devemos chegar a pensar o que ele não pôde: uma “crítica da política” tal como ela é imposta pela ideologia e pela prática da burguesia. É somente do ponto de vista da burguesia que se pode fazer a distinção entre a “sociedade política” e a “sociedade civil”: esta distinção é constitutiva da ideologia e da luta de classe burguesas e se impõe como uma evidência através do aparelho ideológico-político de Estado (a vontade geral como resultante da vontade individual, expressa no sufrágio universal e representada no Parlamento). Do mesmo modo pode-se dizer que somente do ponto de vista da burguesia se pode representar o Estado como uma “esfera” distinta do resto, distinta da sociedade civil (seja no sentido de Hegel, seja no sentido de Gramsci), fora da sociedade civil. É necessário observar que esta concepção ideológica, que serve a interesses precisos, não corresponde nem de longe à simples realidade. O Estado sempre penetrou profundamente a sociedade civil (nos seus dois sentidos), não só através do dinheiro e do direito, não só através da presença e intervenção dos seus aparelhos repressivos, mas também através dos seus aparelhos ideológicos.

Após uma longa reflexão, creio poder, apesar da sutileza das análises de Gramsci, manter o conceito de aparelho ideológico de Estado, não somente porque me parece mais preciso do que o conceito gramsciano de aparelho hegemônico — que é definido apenas através do seu efeito (a hegemonia) e não por sua funcionalidade ideológica —, mas também para deixar claro que a hegemonia se exerce sob formas que, ainda que tenham uma “origem” espontânea e “privada”, são integradas e transformadas em formas ideológicas que têm uma relação orgânica com o Estado. O Estado pode encontrar essas formas já prontas, mais ou menos elaboradas e — como ocorreu sempre historicamente — “encontrá-las” sem que tenham sido produzidas por ele, que não cessa de integrá-las e unificá-las nas formas que asseguram a hegemonia. Nesta integração-transformação, que coincide com a constituição da ideologia dominante, o papel determinante é jogado por uma específica região da ideologia, estreitamente ligada à prática da classe dominante: para a hegemonia burguesa, é a ideologia jurídica que desempenha esta função de agregação e síntese. Processo que não deve ser entendido como completo, mas como contraditório, já que a ideologia dominante não existe sem a ideologia dominada, que é, por sua vez, afetada por esse domínio.

Assim, sendo o Estado o objetivo último da luta de classes (o que é justo), tudo se passa como se a política fosse reduzida à “esfera” compreendida por esse objetivo. Contra essa ilusão, diretamente inspirada pela ideologia burguesa e por uma concepção que reduz a política ao seu próprio objetivo, Gramsci compreendeu muito bem que “tudo é político”, portanto que não existe uma “esfera do político”, portanto que, se a distinção entre sociedade política (ou Estado) e sociedade civil define bem a forma imposta pela ideologia e pela prática burguesa da política, o movimento operário deve acabar com essa ilusão e com esse ocultamento, e elaborar uma outra idéia da política e do Estado.

No que respeita ao Estado, trata-se antes de tudo de não reduzir as suas funções somente à esfera visível de seus aparelhos, dissimulados atrás da cena do aparelho ideológico-político de Estado (o “sistema” político). O Estado sempre foi “ampliado”, e é preciso deixar isso bem claro, contra o equívoco daqueles que fazem dessa “ampliação” um acontecimento recente e fundamental, que mudaria os dados do problema. São as formas dessa ampliação que mudaram (sem dúvida, e como!) mas não o princípio da ampliação. Simplesmente, até há pouco tempo, permanecemos cegos à ampliação efetiva do Estado, que já era visível na monarquia absoluta (para não ir mais atrás ainda) e do Estado do capitalismo imperialista.

No que concerne à política, trata-se, antes de mais nada, de não reduzi-la às formas oficialmente consagradas como políticas pela ideologia burguesa: o Estado, a representação popular, os partidos políticos, a luta política pelo poder do Estado existente. Entrando-se nessa lógica e nela permanecendo, corre-se o risco de cair não só no “cretinismo parlamentar” (expressão discutível), mas sobretudo na ilusão jurídica da política, já que a política passa agora a ser definida através do direito, e este direito consagra (apenas) as formas da política definidas pela ideologia burguesa, incluindo a atividade dos partidos. Um simples exemplo local, menos importante que aqueles que ocorrem na Itália: alguns empresários industriais processaram na França os comunistas que foram conversar com os operários nos locais de trabalho; os patrões tinham o direito do seu lado. Naturalmente, esse direito político e “social” corresponde a uma ideologia jurídica que distingue cuidadosamente a política da não-política. Esta ideologia não é apenas um conjunto de idéias; ela se realiza, por exemplo, no aparelho ideológico sindical de Estado: quantos sindicatos recrutam os trabalhadores com a ideologia do sindicato apolítico? (mesmo quando eventualmente o façam explorando a recusa dos trabalhadores em relação à política, como no caso do anarco-sindicalismo).

Tampouco se trata aqui de “ampliar a política” existente, mas de apreender a política ali onde ela nasce e se realiza. Esboça-se, atualmente, uma tendência importante de despojar a política de seu estatuto jurídico burguês. A velha distinção partido/sindicato é submetida a uma dura prova, iniciativas políticas totalmente imprevistas nascem fora dos partidos e do próprio movimento operário (feminismo, formas do movimento juvenil, correntes ecológicas, etc.), em uma grande confusão, é verdade, mas que pode ser fecunda.

A “politização generalizada” da qual fala Ingrao é um sintoma que deve ser interpretado como um questionamento, um tanto selvagem mas profundo, das formas burguesas clássicas da política. Essas diversas iniciativas tendem a unificar-se, mas com contradições agudas que são geralmente “contradições no seio do povo”, mesmo quando não são reconhecidas desse modo pelos seus protagonistas. Nesse sentido, a Itália está à frente. Eu tenderia a interpretar as grandes dificuldades do Partido Comunista Italiano [4] em integrar ou mesmo entrar em contacto com alguns movimentos novos como o índice de que a concepção clássica da política e o papel dos partidos estão sendo colocados em questão, e as iniciativas dos sindicatos, que algumas vezes surpreendem o partido, como um sinal de alarme para que o partido abandone essa sua velha concepção. E, naturalmente, todo esse movimento acaba por colocar em causa a forma de organização do próprio partido, o qual percebemos (um pouco tarde!) que é construído exatamente sobre o modelo do aparelho político burguês (com o seu “Parlamento” que discute, a base dos militantes e uma direção “eleita” que, aconteça o que acontecer, tem os meios de se manter em seus cargos e de assegurar, através do aparelho de funcionários e em nome da ideologia da unidade do partido, que sanciona o seu consenso, o predomínio de sua “linha”). É evidente que esta profunda contaminação da concepção da política pela ideologia burguesa é o ponto em torno do qual se jogará (ou se perderá) o futuro das organizações operárias.

3. Por essas razões não me agradam fórmulas como: “Admito que a forma teórica da esfera política na fase de transição deva passar pelo partido que se torna Estado”. Parece-me, justamente, impossível admitir essa idéia (defendida, se não me engano, por Gramsci na sua teoria do moderno príncipe, que de fato retoma o tema mais amplo, que Maquiavel exprime bem, da ideologia burguesa da política). Se o partido “se torna Estado”, temos a União Soviética.

Há muito tempo, escrevi a alguns amigos italianos que nunca, por princípio, o partido deveria se considerar como um “partido de governo”, mesmo que em algumas circunstâncias ele pudesse participar do governo.

Por princípio, coerentemente com a sua razão de ser política e histórica, o partido deve estar fora do Estado, não só do Estado burguês, mas com mais razão ainda, do Estado proletário. O partido deve ser o instrumento número um da “destruição” do Estado burguês, antes de se tornar, prefigurando-o, um dos instrumentos do desaparecimento do Estado. A exterioridade política do partido em relação ao Estado é um princípio fundamental que se pode encontrar nos raros textos de Marx e de Lenin sobre essa questão. (Arrancar o partido do Estado para entregá-lo às massas: essa foi a desesperada tentativa de Mao na revolução cultural). Sem essa autonomia do partido (e não da política) em relação ao Estado, não se sairá jamais do Estado burguês, por mais que ele seja “reformado”.

É essa autonomia do partido em relação ao Estado que permite pensar a possibilidade (ou a necessidade) do que formalmente se chama de “pluralismo”. Só pode ser vantajoso que existam diversos partidos na fase de transição: pode ser uma das formas da hegemonização da classe operária e de seus aliados, mas com a condição de que o partido operário não seja como os outros, isto é, apenas um pedaço do aparelho ideológico-político de Estado (o regime parlamentar). É preciso que ele permaneça fundamentalmente fora do Estado por meio de sua atividade entre as massas, para impulsioná-las à ação de destruição-transformação dos aparelhos do Estado burguês e de extinção do novo Estado revolucionário, se este já existe. A armadilha número um é o Estado: seja sob a forma política da colaboração de classe ou da gestão da “legalidade” existente, seja sob a forma mítica do partido “se transformando no Estado”. Digo mítica do ponto de vista teórico, pois ela é, infelizmente, muito real nos “países socialistas”.

Sei que é extremamente difícil sustentar uma posição como essa, mas, se ela não for mantida, a autonomia do partido está irremediavelmente comprometida, e não há qualquer possibilidade de se escapar do risco, seja de uma colaboração de classe, seja do Estado-partido, com todas as conseqüências que isso acarreta.

Mas, se essa posição for mantida, os problemas levantados pelos socialistas italianos parecem-me estar devidamente situados. Naturalmente, é preciso que o Estado de transição estabeleça, respeite e faça respeitar uma “regra do jogo” jurídica, que proteja tanto os individuos como os opositores. Porém, se o partido é autônomo e permanece autônomo, respeitará as “regras do jogo” no espaço que os seus interlocutores consideram, segundo a ideologia jurídica clássica, a “esfera do político” — mas fazendo política lá onde tudo se decide: no movimento de massas. A destruição do Estado burguês não significa a supressão de todas as “regras do jogo”, mas a transformação profunda dos seus aparelhos, alguns dos quais serão suprimidos, outros criados, todos revolucionarizados. Não é limitando a “regra do jogo”, ou suprimindo-a, como na União Soviética, que será possível a expressão das massas, a não ser de modo selvagem, que pode levar a desfechos trágicos. A regra do jogo, tal como é concebida pelos ideólogos clássicos, é somente uma parte de um outro jogo, bem mais importante do que aquele do direito, como diz o próprio Bobbio. Se o partido mantém a autonomia, tem tudo a ganhar e nada a perder respeitando e propondo a regra do jogo. E se esta deve mudar, só pode ser para estender a liberdade, no sentido do desaparecimento do Estado. Mas se o partido perde a sua autonomia de classe, de iniciativa e de ação, então a mesma “regra do jogo” servirá a outros interesses, em tudo diversos daqueles das massas populares.

E como estamos falando de “regra do jogo”, depois que considerei o comunismo como uma tendência e realidade “intersticiais”, talvez seja necessário dizer algumas palavras sobre este futuro distante, que talvez nunca se realize, mas que aparece como um “vazio” na nossa sociedade. Geralmente a questão permanece limitada a algumas fórmulas idealistas, como aquelas de Marx sobre o “reino da liberdade” que sucederia ao “reino da necessidade” (!), sobre o “livre desenvolvimento dos indivíduos” ou de sua “livre associação”. Admito que o comunismo seja o advento do indivíduo finalmente libertado da carga ideológica e ética que faz dele “uma pessoa”. Mas não estou tão seguro de que Marx entendesse assim essa questão, como o atesta a constante vinculação que ele estabelece entre o livre desenvolvimento do indivíduo e a “transparência” das relações sociais finalmente livres da opacidade do fetichismo. Não é por acaso que o comunismo aparece como o contrário do fetichismo, o contrário de todas as formas reais nas quais aparece o fetichismo: na figura do comunismo como o inverso do fetichismo, o que aparece é a livre atividade do indivíduo, o fim da sua “alienação”, de todas as formas da sua alienação: o fim do Estado, o fim da ideologia, o fim da própria política. No limite, uma sociedade de indivíduos sem relações sociais. Mesmo que se trate apenas de uma antecipação, que deve ser pensada como tal e com extrema prudência, não podemos aceitar esta imagem paradisíaca da transparência dos seres humanos, dos seus corpos, das condições de sua vida e de sua liberdade. Se uma sociedade comunista chegar a existir, ela terá as suas relações de produção — única denominação possível para esta “livre associação dos homens” — e, portanto, as suas relações sociais e as suas relações ideológicas. E se esta sociedade estará finalmente livre do Estado, isso não significa que a política também será extinta: ela conhecerá certamente o fim das últimas formas burguesas da política, mas esta política (a única que Marx pôde ver no limite mesmo de seu “ponto cego”) será substituída por uma política diferente, uma política sem Estado, o que não é tão difícil de conceber se levarmos em conta que mesmo em nossa sociedade o Estado e a política não se confundem.

Pode parecer gratuito nos deixarmos levar por esses jogos teóricos. No entanto, a experiência demonstra que a representação do comunismo que os homens — e especialmente os comunistas — fazem, por mais vaga que seja, não é estranha ao seu modo de conceber a sociedade atual e as suas lutas imediatas e futuras. A imagem do comunismo não é inocente: ela pode nutrir ilusões messiânicas que garantiriam as formas e o futuro das ações presentes, desviá-las do materialismo prático da “análise concreta da situação concreta”, alimentar a idéia vazia de “universalidade” — que se encontra em algumas expressões equívocas similares, como o “momento geral”, no qual uma certa “comunidade” de interesses gerais será satisfeita, como se fora a antecipação daquela que poderá ser um dia a universalidade do “pacto social” em uma “sociedade regulada”. Esta imagem alimenta, enfim, a vida (ou a sobrevivência) de conceitos dúbios, com os quais, sob o modelo imediato da religião, da qual não forneceu nenhuma teoria, Marx pensou o fetichismo e a alienação, conceitos que, depois de 1844, retornarão com força nos Grundrisse e deixarão ainda os seus vestígios no Capital. Para decifrar o enigma é necessário retornar à imagem que Marx fazia do comunismo e submeter esta imagem problemática a uma crítica materialista. É através desta crítica que se pode perceber o que ainda resta em Marx de uma inspiração idealista do Sentido da história. Teórica e politicamente, vale a pena fazê-lo.

4. É difícil para mim entrar na interessante discussão que está ocorrendo na Itália (Amato, Ingrao, De Giovanni), ao menos por razões de semântica política… — estes companheiros pensam em uma terminologia muito elaborada e abstrata, a partir de algumas indicações conceituais de Gramsci, coisa que coloca para nós, provincianos franceses, temíveis problemas de comunicação.

Posso dizer, no entanto, que me sinto muito próximo de Ingrao quando ele sublinha a necessidade de se considerar o máximo possível todos os movimentos originais que se desenvolvem fora dos partidos, quando ele chama a atenção para as mudanças de atitude dos partidos (recusando toda visão totalizante) e quando ele declara que a questão do partido político se coloca em termos novos. Ingrao me convence menos (mas talvez eu não o tenha compreendido bem) quando, por exemplo, parece falar do Estado e da esfera política como constitutivos, de certo modo, de toda a política; quando ele fala de “socialização da política”, [5] quando seria mais apropriado (como ele mesmo o diz) falar de uma “politização do social”, pois a “socialização da política” supõe a preexistência de uma política que seria “socializada”, e essa política a ser “socializada” se arrisca fortemente a ser a política nas suas formas dominantes. O que me parece interessante nos exemplos citados por Ingrao é que tudo se passa ao contrário: não da política para as massas, mas das massas para a política, e isto é fundamental, “para uma prática diferente da política” (Balibar). Creio que é insuficiente dizer, como o faz Ingrao, que para a conflitualidade e a diversidade dos movimentos “o momento da mediação política geral assume uma importância ainda maior”. Falar em termos tão abstratos pode dar a impressão de que se está privilegiando o Estado em geral, sem se colocar em primeiro lugar a sua transformação. Talvez seja um defeito que vem de Gramsci, o qual tinha a tendência de confundir o aparelho de Estado com as suas funções, não apreendendo suficientemente a sua materialidade.

Mesmo fazendo as mesmas reservas em relação às fórmulas análogas encontradas em De Giovanni (“socializar a política”, “difusividade da política” no “particular”, “difusão molecular da política”, etc.), assim como à sua tese sobre a “difusão do Estado” — que pode se prestar a equívocos, levando a pensar na “ampliação do Estado” e confundindo o Estado e a política (como foi dito antes) —, sinto-me muito próximo dele quando De Giovanni evoca “a crise da autonomia da política” e sobretudo quando ele define esta política como “a forma teórica e prática de organização do velho Estado”. [6] Isso porque agora ele chama a política pelo seu próprio nome: as formas de hegemonia em curso. E estou de acordo com ele quando observa muito justamente que “a exaltação da mediação política nasce dos riscos de “fraqueza” implícitos em sua mera “difusão”. [7] Este é o ponto decisivo: a política não se difunde (entenda-se: pelo alto, a partir das formas do Estado e também dos partidos) sem correr o risco do tecnicismo ou de uma “participação” que se choca com o “muro” do poder do Estado (uma vez que a sua organização pode ser realizada
pelo próprio Estado). “Não me parece que seja suficiente responder com a autogestão das autonomias ao caráter geral do poder historicamente existente (também aqui De Giovanni chama o geral pelo seu verdadeiro nome). O ponto decisivo é sempre a hegemonia, que está dada pela forma global na qual se deve exprimir a construção do Estado”. [8] Não me agrada a expressão “forma global”. Mas, hegemonia, construção do Estado (se construção do Estado quer dizer destruição do Estado burguês) são palavras que nos falam, a seu modo — pois todo o artigo de De Giovanni é cifrado e é preciso descodificá-lo —, de coisas há muito tempo conhecidas…


*A tradução foi feita tomando-se como base o texto em italiano, “Il marxismo come teoria ‘finita’”, incluído no livro: Louis Althusser et all., Discutere lo Stato. Posizioni a confronto su una tesi di Louis Althusser, Bari, De Donato, 1978. Em algumas poucas ocasiões, no entanto, deu-se preferência à versão francesa, publicada em Dialectiques, 26, 1978, com o título de “Entretien”, mas que não contém várias passagens e desdobramentos encontrados na versão italiana. O artigo, redigido em fins de 1977, foi publicado originariamente no jornal Il Manifesto, em 4 de abril de 1978. Tradução de Márcio Bilharinho Naves.

[1] Publicação de militantes e intelectuais italianos que rompem com o Partido Comunista Italiano na década de 70, vindo depois a constituir um partido mais à esquerda (Nota do tradutor).

[2] Revista do Partido Socialista Italiano (NT).

[3] Publicação teórica e cultural do Partido Comunista Italiano (NT).

[4] O Partido Comunista Italiano (PCI) transformou-se no Partido Democrático da Esquerda (PDS). Um tendência mais à esquerda do Partido preferiu fundar uma outra organização, a Refundação Comunista (NT).

[5] Pietro Ingrao, “Parlamento, partiti e società civile”, entrevista a G. Amato, in Mondoperaio, XXXI(1), 1978, p. 65.

[6] Biagio De Giovanni, “Diffusione della politica e crisi dello Stato”, in Rinascità, 9, 1978.

[7] Ibid.

[8] Ibid.

 

Compartilhe:

Posts recentes

Mais lidos

3 comentários em “O marxismo como teoria “finita””

  1. Republicou isso em Tempus fugite comentado:
    Meu primeiro contato com Louis Althusser foi no teatro. E foi mágico. A peça chamava-se “O Futuro Dura Muito Tempo” – título também de uma de suas obras . Corria o ano de 1993 e a montagem dirigida por Márcio Vianna (1949-1996) tinha em cena dois grandes: Rubens Corrêa (como o filósofo franco-argelino) e Vanda Lacerda (Helene, sua companheira). Era o palco do simpático teatro Gláucio Gil, na Praça Cardeal Arcoverde, em Copacabana. O velho ator, Corrêa, morreu em janeiro de 1996 – ganhara, em o Prêmio Shell por seu Althusser. O jovem diretor, também se foi cerca de um mês depois, aos 46 anos. Vanda Lacerda morreu em julho de 2001. Lembrei de Althusser e de Helene que Rubens e Vanda me apresentaram na peça de Vianna e preciso registrar, num impulso memorialistístico, que o humano é evanescente mas a arte é permanece. O texto que reproduzo a seguir percorre caminhos parecidos entre a finitude e a abertura histórica que a todos nos contém. É do filósofo, numa excelente tradução.
    ESTADO E POLÍTICA PARA ALTHUSSER
    “A idéia de que a teoria marxista é “finita” exclui totalmente a idéia de que ela seja uma teoria “fechada”. Fechada é a filosofia da história, na qual está antecipadamente contido todo o curso da história. Somente uma teoria “finita” pode ser realmente “aberta” às tendências contraditórias que descobre na sociedade capitalista, e aberta ao seu devenir aleatório, aberta às imprevisíveis “surpresas” que sempre marcaram a história do movimento operário; aberta, portanto atenta, capaz de levar a sério e assumir em tempo a incorrigível imaginação da história.”
    LEIA a íntegra no LavraPalavra

    Responder

Deixe um comentário