A legalização da classe operária: uma porta de entrada para a crítica marxista do direito

Por Marcus Orione, Jorge Luiz Souto Maior, Flávio Roberto Batista e Pablo Biondi [1]

No presente texto, os tradutores da obra “A legalização da classe operária”, de Bernard Edelman, desenvolvem importantes elementos da crítica marxista do direito.

A obra, inédita em português, será lançada no dia 31 de março de 2016, às 19h. O lançamento será precedido por um debate promovido pelos tradutores. Ambas atividades ocorrerão no 1o. andar do prédio histórico da Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, n. 95, Centro, São Paulo/SP.


  1. A crítica marxista do direito no século XX

Engels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito “ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em primeiro plano “a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34). Em Marx, portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim, mesmo tangenciando o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as indicações necessárias para uma compreensão científica e materialista do direito, sobretudo em O capital. Isto porque a crítica da economia política, ao consistir numa crítica do cerne da sociedade burguesa, de sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47), permite um vislumbre mais acurado sobre os outros aspectos da vida social do capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.

A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.

Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique. Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é, de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para os marxistas como um tema a ser aprofundado.

Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive, custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo que

O momento mais alto do pensamento jurídico marxista se dá com Evgeny Pachukanis. Num notável aprofundamento das teses de Marx, Pachukanis se põe a identificar a específica relação social que dá base à manifestação jurídica. Para além de Stutchka – que, se identificava o direito à luta de classes, não lhe apontava os mecanismos íntimos –, Pachukanis se põe a identificar a especificidade do direito (MASCARO, 2009, p. 48)

Enquanto Stucka (1988, p. 16) pensava o direito como um “sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta classe”, qualquer que fosse o caráter do modo de produção dominante (feudal, capitalista, socialista etc.), Pachukanis propôs que o direito seria uma manifestação própria das formações sociais capitalistas, consistindo numa forma social gerada pela estrutura mercantil da ordem social burguesa.

Para Pachukanis, não é suficiente identificar a divisão de classes no seio de uma sociedade para se determinar a presença do direito. Isto porque o direito, tal como o valor, a mercadoria, o capital etc., é uma categoria social que diz respeito a um determinado modo de produção e organização da vida material. Não se pode, assim, imaginar que os traços distintivos do fenômeno jurídico estariam presentes em sociedades muito distintas entre si (feudal, capitalista, socialista), apenas modificando-se a classe dominante favorecida (aristocracia, burguesia, proletariado). Esta seria uma maneira de se eternizar a forma jurídica, o que impede o conhecimento de suas características peculiares. Eis a ponderação de Pachukanis contra a formulação de Stucka:

O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a regulamentação jurídica como forma histórica determinada.” (PACHUKANIS, 1988, p. 21).

As incursões de Pachukanis na sua mais famosa obra, “A teoria geral do direito e o marxismo” são frutos do materialismo histórico-dialético, em que o autor situa o direito na perspectiva histórica, destacando um período, o capitalismo, que lhe atribui elementos próprios que o caracterizam. Portanto, a noção de forma jurídica, que não se confunde com o conteúdo jurídico, é a mais perfeita tradução de como componentes específicos do capitalismo moldam determinadas categorias econômico/sociais e lhes dão conotação específica. A forma social somente é possível, dadas determinações históricas, observadas características típicas de um modo de produção. Em outro modo de produção distinto, a forma também assume outra conotação. Assim, as especificidades do capitalismo moldam a forma jurídica, assim como essa última é moldada por aquele. A respeito de tais especificidades, que permitem o perfeito acoplamento da forma jurídica ao capital, trataremos no decorrer do artigo.

Antes de aprofundarmos ainda mais no tratamento dado a Pachukanis ao direito, algumas palavras sobre conceitos básicos marxistas se fazem necessárias.

A obra de Marx considera o trabalho como dado central para se entender o processo econômico de produção e circulação do capital. Ao discutir em especial com os economistas clássicos, como Ricardo e Adam Smith, o trabalho aparece como o único meio de produção capaz de valorizar o valor.

Aqui é importante perceber que todas as mercadorias possuem valor de uso e valor de troca.

O valor de uso da mercadoria é qualidade intrínseca, inerente a ela, no sentido de que, conforme a sua natureza, atenda às necessidades humanas. Uma cadeira serve para se sentar, assim como uma faca para cortar os alimentos. Esses são os valores de uso de uma cadeira e de uma faca. É claro que o valor de uso deve ser visto historicamente, mas o ponto do qual se parte é da coisa em si mesma.

O valor de troca faz aderir uma qualidade extrínseca às mercadorias no sentido de que, segundo a natureza das relações sociais (e não somente à sua própria) marcadas pela exploração do trabalho alheio, passam a ser mensuradas no mercado. Aqui não bastam as qualidades específicas de que são dotadas, mas também as qualidades sociais de que passam a ser dotadas, determinadas pela quantidade de trabalho despendido para a sua produção. No mercado, realiza-se uma troca de equivalentes. Uma faca, observada a quantidade de trabalho necessário para que fosse produzida, poderia valer duas cadeiras, e assim por diante. No entanto, para evitar que todos precisem ir com facas e cadeiras para o mercado, o que seria impossível, constituiu-se mercadoria considerada o equivalente universal: o dinheiro.

Perceba-se: troca de mercadorias e dinheiro já existiam antes do capitalismo. O que então faz com que sejam percebidas como forma específica do capital? A resposta está exatamente na mercadoria chamada força de trabalho. Ou seja, de novo o trabalho como central na teoria de Marx.

Sendo o trabalho o único meio de produção que produz valor, no capitalismo, a grande sacada é a sua dominação e expropriação por outro que detém os demais meios de produção, como forma de acumulação de sua riqueza. Prestem atenção: o trabalho enquanto fator de riqueza das nações, no lugar de coisas inanimadas, como os metais ou a terra (para os fisiocratas), o que já havia sido percebido por autores como Adam Smith (A riqueza das nações). No entanto, a percepção de sua expropriação como forma de acúmulo de riqueza de uma classe e montagem de todo um sistema (o capitalismo) é obra do engenho de Marx.

Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor.

Uma pedra, na natureza, é apenas uma pedra. Descoberto que se trata de uma jazida de plutônio, trata-se de matéria-prima importantíssima. No entanto, acreditar que a jazida ou os instrumentos utilizados no seu processamento é que geram a riqueza se trata de uma ingenuidade.

Sem o trabalho de alguém que, devidamente preparado, descobrisse as propriedades daquela jazida ou mesmo sem a descoberta, pelo trabalho humano, das formas de processamento, aquela jazida seria, na natureza, uma como tantas outras. Mas não apenas o trabalho intelectual é importante aqui. Esse de nada valeria sem o esforço de operários que realizam, com a força de seus músculos, o processamento.

Portanto, nem matéria-prima e nem máquinas, como se costuma pensar, produzem a riqueza do capitalista. O que produz a sua riqueza é a apropriação do trabalho alheio, para gerar valor (mais-valia). Assim, detendo os outros meios de produção, o capitalista quer agregar valor a esse capital e somente pode fazê-lo por meio da exploração do trabalho alheio.

O trabalho, nessa fase da obra de Marx, que culmina com O Capital em seus três livros, assume uma conotação menos ontológica e passa a estar mais ligado às relações sociais de produção e reprodução da vida material.

Logo, dinheiro ou troca de mercadorias aqui somente têm sentido com a apropriação da força de trabalho alheia, esta também considerada agora no capitalismo como mercadoria. Essa a grande sacada do capitalismo em relação aos outros modos de produção. Para que se possa aumentar a extração da mais-valia, diversamente de outras expropriações que já ocorreram anteriormente no seio da sociedade, é importante que o possuidor desta mercadoria (força de trabalho) se sinta livre e igual a qualquer proprietário, para operar no mercado a sua troca.

Essa nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais.

Retornando a Pachukanis, é imprescindível, pois, conceber-se o direito enquanto forma social, e uma forma que se distingue por trazer em si o chamado princípio da subjetividade jurídica, entendido como “o princípio formal da liberdade e da igualdade; da autonomia da personalidade etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 10). O que caracteriza o direito, então, não é uma normatividade organizada, como supõem os juristas tradicionais, ou interesse de classe inscrito na dominação de uma classe sobre a outra, qualquer que seja o caráter da formação social, como quer Stucka, mas sim a figura do sujeito de direito, a consagração do indivíduo como uma pessoa abstrata, desgarrada de vinculações estamentais.

Ora, esse indivíduo abstrato só tem lugar na história num período bastante determinado, é dizer, a época das relações de produção capitalistas. Foi com o entranhamento da relação de capital na produção material da vida que a sociedade burguesa erigiu-se como tal. Isto se deu, sobretudo, com a subsunção real do trabalho ao capital e com o surgimento da grande indústria capitalista, organizada em torno do trabalho produtivo do trabalhador coletivo e do ciclo do capital industrial. Nessa perspectiva, compreende-se a emergência do sujeito abstrato, e que reflete a abstração do trabalho na troca de mercadorias e também na própria produção do valor. O teórico pachukaniano Márcio Bilharinho Naves (2014, p. 55-56) nos traz uma elaboração muito profícua a este respeito:

Ao revestir-se da forma de um sujeito – nas condições de um modo de produção especificamente capitalista, isto é, sob as condições da subsunção real do trabalho ao capital –, o indivíduo se transmuta em vontade pura, abstraída de qualquer determinação. […] Assim, a constituição do sujeito de direito está vinculada ao processo de abstração próprio da sociedade do capital, de tal modo que podemos dizer que ao trabalho abstrato vai corresponder à abstração do sujeito, ou seja, o processo de equivalência mercantil derivado do caráter abstrato que toma o trabalho em certas condições sociais determina o processo de equivalência entre os sujeitos, que só é possível se as pessoas perderem qualquer qualidade social que possa diferenciá-las.”

Como se nota, a linha de raciocínio apresentada por Pachukanis, e que está centrada no papel distintivo do princípio da subjetividade e do nexo necessário entre capitalismo e direito – tanto no sentido de que não há capitalismo sem direito quanto no sentido de que só pode haver direito, em sua expressão mais acabada, sob o capitalismo –, é a que melhor diferencia o fenômeno jurídico de outras instâncias da vida social. Aliás, como bem identificou o jurista soviético, esta diferenciação é condizente com um processo histórico real que, com o advento da ordem social burguesa, separou a forma jurídica da moral, da religião [2], dos costumes etc., permitindo um desenvolvimento singular de suas categorias:

Não devemos nos esquecer que a evolução dialética dos conceitos corresponde à evolução dialética do próprio processo histórico. A evolução histórica não implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação das instituições jurídicas, mas também um desenvolvimento da forma jurídica como tal. Esta, depois de haver surgido num estágio determinado da civilização, permanece, durante longo tempo, num estado embrionário com uma leve diferenciação interna e sem delimitação no que concerne às esferas próximas (costumes, religião). Foi apenas desenvolvendo-se progressivamente que ela atingiu o seu supremo apogeu, a sua máxima diferenciação e precisão. Este estágio de desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e sociais determinadas. Ao mesmo tempo este estágio caracteriza-se pelo aparecimento de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o sistema jurídico como totalidade orgânica.” (PACHUKANIS, 1988, p. 35-36).

Por conta da repressão stalinista, a teoria pachukaniana foi brutalmente interrompida no seu desenvolvimento. Pachukanis foi executado em 1938, no contexto dos famigerados Processos de Moscou [3]. Desse modo, a produção teórica marxista sobre o direito sofreu um revés muito grande. Sob o stalinismo, inclusive, predominou a doutrina de Andrei Vichinsky, que identificada o direito à legalidade posta e fazia a mais completa apologia ao regime stalinista e à deformação burocrática do Estado nascido com a revolução de outubro.

E com o trágico desfecho da revolução russa, que acabou enterrada pela degeneração stalinista, o impulso teórico que colocou em foco o problema do direito se perdeu. A transição socialista na URSS foi abortada, de modo que a ditadura revolucionária do proletariado, o regime dos soviets, foi substituída pela ditadura burocrática de um partido bolchevique irreconhecível, dirigido por uma camarilha que aniquilou moral e fisicamente a vanguarda e as lideranças da revolução. No campo de estudo do direito, esse retrocesso colossal se manifestou no fim das pesquisas mais profundas. O fenômeno jurídico voltaria a ter uma dimensão marginal nas obras marxistas.

Com efeito, encontramos considerações sobre o direito em autores clássicos do marxismo do século XX, como, por exemplo, Louis Althusser em seu Sobre a reprodução (1995). Todavia, faltavam estudos de fôlego que se debruçassem direta e prioritariamente sobre a questão do direito. Faltava um sopro renovador que pudesse retomar o caminho trilhado por Pachukanis e avançar nas elaborações. Este sopro não foi dado por Althusser, mas alguns de seus seguidores tomaram para si, de certa maneira, esta tarefa. Dentre eles, Bernard Edelman mostrou-se o mais brilhante.

  1. A obra de Bernard Edelman

A denúncia dos crimes de Stalin e a poderosa vaga revolucionária de 1968, a última em solo europeu, enfraqueceram o prestígio e a hegemonia do aparato stalinista na esquerda francesa. Desenhou-se, assim, um cenário de oportunidade para uma renovação do marxismo, tanto em relação à dogmática oficial patrocinada por Moscou quanto em relação a algumas tendências reformistas.

Não houve na França, como na Rússia de 1917, uma insurreição proletária que culminou com o início de uma transição socialista. Contudo, a vaga revolucionária de 1968 colocou a classe operária em movimento, num ascenso fortíssimo que se enfrentou não apenas com o governo conservador de Charles De Gaulle, mas também com a linha política do PCF, que canalizou a força espetacular do levante operário e popular para o terreno reformista das negociações econômicas – o que deu sobrevida a um governo que estava prestes a cair, e que de fato poderia cair se houvesse uma decidida direção revolucionária à frente do movimento de massas.

A frustração de um ascenso revolucionário que terminou em negociações econômicas conduzidas por uma direção política conciliatória colocou a questão do “terreno” da luta de classes, ou seja, do espaço social em que ela se realiza. Provou-se novamente na prática a tese leninista de que, no confronto econômico, prevalece a consciência sindicalista, “tradeunionista”, “uma convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias aos operários etc.” (LÊNIN, 2010, p. 89), mas sem se colocar em causa a dominação do capital e a questão do poder. Isso porque a luta econômica e sindical se limita a barganhar o preço da força de trabalho, deixando intocado o problema da sua comercialização, é dizer, o cerne do modo de produção capitalista.

Ora, um conflito que se encerra na sua pauta econômica, que não ultrapassa as determinações mercantis do capitalismo, é um conflito que se dá no interior da arena do direito, e com pleno respeito às suas linhas de demarcação. Prevalecem, nessas condições, tanto a forma jurídica em sua generalidade quanto o seu arcabouço institucional sindical, o qual instrui e dá sustentação à permanência da relação capital-trabalho. Não se pode esquecer que a estrutura sindical é um componente necessário de um regime social em que a força de trabalho é uma mercadoria, e que, como tal, precisa passar por foros de negociação do seu preço. E dado o liame intrínseco entre direito e mercadoria no capitalismo, como bem demonstrou Pachukanis, a forma jurídica demonstra todo o seu peso ao envolver e disciplinar o mercado de trabalho.

Na conjuntura inaugurada em 1968, portanto, restou escancarada a influência do direito sobre a luta de classes. Apesar do ímpeto revolucionário inicial, o movimento de massas se viu prisioneiro das armadilhas do terreno jurídico, as quais necessariamente o conduziriam à conciliação de classes, à restauração da ordem e à reprodução da sociabilidade do capital. Discutir o direito sob um ponto de vista marxista, então, tornou-se uma necessidade urgente naquele contexto. Neste contexto é que surge o marxismo que assenta bases nas proposições de Louis Althusser, em sua posição de afastamento contínuo do stalinismo e de crítica implacável ao reformismo, logrou produzir obras de enorme importância para a crítica do fenômeno jurídico. E é exatamente no contexto da crítica althusseriana que se deve conceber a obra de Bernard Edelman.

Em 1973, Edelman inicia esse movimento de crítica radical do direito com a obra O direito captado pela fotografia (2001). Três anos depois, Michel Miaille lança a sua Introdução crítica ao direito (2005), igualmente partindo das premissas pachukanianas. E, em 1978, outras duas obras desses autores foram publicadas: O Estado do direito, de Michel Miaille (1980), e A legalização da classe operária, de Bernard Edelman (2016).

Em que pese a importância dos textos de Miaille, colocaremos nosso foco no trabalho de Edelman. Neste autor, encontramos uma teoria do direito que parte decididamente dos pressupostos pachukanianos, e que se propõe a sofisticá-los por meio da teoria do sujeito – e de sua interpelação ideológica – em Althusser. Segundo Louis Althusser (1995, p. 23), “não há ideologia que não seja pelo sujeito e para sujeitos” [4], no sentido de que o indivíduo é “sempre já” (isto é, desde sempre) sujeitado pela ideologia, constituído por ela concretamente por meio das práticas materiais que a instituem e dos aparelhos ideológicos que cuidam da sua reprodução. Em uma apertada síntese, desde o instante em que qualquer sujeito vem ao mundo já se encontra sujeito a uma ideologia na qual estará inserido, sendo que, individualmente, não terá condições de superá-la. Na realidade, mais do que isto há aparelhos que reforçam esta ideologia, tais como a escola, o sindicato, a mídia (para usar um exemplo mais atual) e outros.

Em seu livro O direito captado pela fotografia, Bernard Edelman mostra-se caudatário desta concepção althusseriana, indicando um caminho de diálogo com a linha teórica de Pachukanis:

Os “indivíduos” são interpelados como sujeitos pelo direito. Essa interpelação é constitutiva de seu ser jurídico mesmo, no sentido de que é esta interpelação “tu és um sujeito de direito” que lhes dá o poder concreto, que lhes permite uma prática concreta. “Já que tu és o sujeito de direito, tu és capaz de adquirir e de (te) vender.” (EDELMAN, 2001, p. 26).

Coerentemente com a crítica pachukaniana, Edelman identifica o mercado como o espaço de realização das práticas materiais que ensejam a figura do sujeito de direito. A forma mercantil engendra um indivíduo à imagem e semelhança do portador de mercadorias, um sujeito formalmente livre, igual aos outros e potencialmente proprietário. E dentre os três aspectos centrais desse sujeito de direito, destaca-se a propriedade, ou seja, a sua característica de ser “um proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens”, para usarmos a expressão pachukaniana (1988, p. 78). É com referência na propriedade que as categorias jurídicas de liberdade e igualdade se estabelecem. Uma vez que a liberdade e a igualdade são categorias derivadas da esfera mercantil do valor e da troca, elas se colocam em função dos proprietários de mercadorias. É por meio da realização contratual delas que a propriedade se transfere de mãos em mãos no processo incessante de permutas. Edelman (2001, p. 110) conclui que “a movimentação da propriedade privada cria, de fato, uma liberdade e uma igualdade, mas esta liberdade e esta igualdade são aquelas mesmas da propriedade privada”. Na perspectiva do mercado, o trabalhador deve estar apto para vender a sua força de trabalho, como proprietário dela. Não pode ser tratado de forma distinta dos que possuem o capital, que da força de trabalho extraem o principal elemento de concentração de suas riquezas. Caso contrário, não passaria de um escravo ou de um servo. No entanto, como não estamos mais na antiguidade ou na idade média, a expropriação da força de trabalho precisa contar com a aquiescência do próprio trabalhador. Portanto, ao se conceber a figura do sujeito de direito como homem livre, igual e proprietário, para a circulação da principal mercadoria que deve ser expropriada pelo capital, a força de trabalho, há a consolidação concomitante de uma ideologia jurídica – a que qualquer indivíduo se encontra submetido, e que corresponde a categorias estudadas por Althusser, como a de que o sujeito é interpelado pela ideologia, no sentido de que não tem condições, individualmente, de a ela resistir, nela já se inserindo desde o instante em que passa a existir como ser vivente.

Assim, consagra-se uma imagem abstrata do homem na sociedade burguesa, um indivíduo que é nivelado pelo mercado, e que dele participa independentemente da sua ascendência social. Os indivíduos se apresentam como portadores não apenas das mercadorias que oferecem, mas também das relações sociais que dão base às trocas. Personificando a equivalência do trabalho abstrato, eles são postos como “equivalentes vivos”, de tal sorte que “o processo do valor-de-troca torna-se o processo do sujeito, e o processo do sujeito, o processo do valor-de-troca” (EDELMAN, 2001, p. 111).

Esmiuçando a relação entre a forma jurídica e a forma mercantil, Edelman explicita as funções concretas e ideológicas do direito, postulando que ele, em sua vivência, “fixa as formas de funcionamento do conjunto das relações sociais, torna eficaz, no mesmo momento, a ideologia jurídica, que é a relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”, assumindo a “dupla função de fixar concretamente e ‘imaginariamente’ – e seria melhor dizer que a fixação concreta jurídica é ao mesmo tempo ideológica – o conjunto das relações sociais” (EDELMAN, 2001, p. 104). E nisto, inclusive, se vê mais uma apropriação do pensamento de Althusser acerca da ideologia, concebendo-a como uma “relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais em geral”.

Como síntese da crítica de Edelman à forma jurídica em sua generalidade, vale citar a seguinte passagem:

O que me proponho a demonstrar ao deixar voluntariamente de lado o que se passa “alhures”, no “laboratório secreto da produção”, é que o direito toma a esfera da circulação como dado natural; que esta esfera, tomada em si como absoluta, não é nenhuma outra senão a noção ideológica que porta o nome hobbesiano, rousseauniano, kantiano ou hegeliano, de sociedade civil; e que o direito, ao fixar a circulação, não faz senão promulgar os decretos dos direitos do homem e do cidadão; que ele escreve sobre a fronte do valor-de-troca os signos da propriedade, da liberdade e da igualdade, mas que estes signos, no secreto “alhures”, lêem-se como exploração, escravidão, desigualdade, egoísmo sagrado.” (EDELMAN, 2001, p. 107).

Foi sob esta perspectiva de crítica radical que Edelman desvendou como o direito, introduzindo categorias charmosas na vida social, chancela a exploração capitalista e seus desdobramentos. Em sua investigação implacável, nem mesmo noções como liberdade e igualdade foram poupadas. A base dos direitos humanos, tidos como um dos maiores marcos da civilização, restou desmistificada. O passo seguinte do autor seria levar esta concepção aos domínios do direito do trabalho, o que elevaria sua contribuição ao marxismo a um novo patamar.

  1. A crítica do processo de legalização da classe operária

Em A legalização da classe operária, Edelman apresenta uma crítica do direito do trabalho, em especial do direito coletivo do trabalho. E por meio dessa crítica, ele demonstra como a forma jurídica incide sobre a luta de classes, inclusive nos momentos em que esse conflito aparece mais claramente, como nas greves operárias. A grandeza dessa obra reside, assim, não apenas no rigor metodológico e na extensão do campo de análise, mas também no fato de ela conjugar dois elementos muito caros ao marxismo: as formas sociais do capitalismo (no caso, o direito) e a luta de classes, esta contradição fundamental que tem colocado a história em movimento até dos dias de hoje.

O conteúdo da obra consiste num desvelamento profundo das ilusões da doutrina jurídica acerca do direito do trabalho e de seu papel na sociedade. Na contramão desta tradição que vê no ramo juslaboral apenas um inventário de conquistas obreiras históricas, ou mesmo um sinal de triunfo da dignidade humana, Edelman (2016, p. 18) alerta que “a classe operária pode ser ‘desviada’, precisamente por suas próprias ‘vitórias’, que podem apresentar-se também como um processo de integração ao capital”, lembrando, ainda, que “a ‘participação’ nunca esteve ausente da estratégia da burguesia, e há veneno em seus ‘presentes’”.

Edelman não despreza as medidas de bem-estar que foram obtidas sob pressão do movimento operário. Contudo, seu esforço é o de salientar o outro lado da moeda, ou, se quisermos, o “preço” que foi pago por essas concessões do capital. Esse preço, por certo, não foi a supressão da luta de classes. Em sua filiação althusseriana, Edelman seguramente entende que “a luta de classes e a existência das classes são uma só e mesma coisa”, uma vez que a divisão da sociedade em classes “não se faz post festum; é a exploração de uma classe por outra e, portanto, a luta de classes que constitui a divisão em classes. Pois a exploração já é luta de classes” (ALTHUSSER, 1978, p. 27). É por isso que nosso autor fala em desvio desse conflito, e não na sua abolição. Ocorre que, com as conquistas econômicas da classe operária e sua

integração política (e jurídica, pelo reconhecimento de direitos) à sociedade burguesa, o enfrentamento entre capital e trabalho desloca-se para o âmbito institucional dos partidos da ordem e do sindicalismo oficial, ou seja, para o campo do Estado em sua concepção ampliada, de maneira que “as próprias lutas operárias são travadas nesses aparelhos, elas se desenvolvem nessas estruturas e essas estruturas provocam efeitos sobre o combate” (EDELMAN, 2016, p. 19).

Eis aí o cerne da questão. O terreno sobre o qual se realiza o embate está longe de ser indiferente para o seu resultado. Enquanto uma forma, o direito envolve o seu conteúdo e o submete às constrições necessárias para moldá-lo em favor da reprodução da sociabilidade do capital – de tal sorte que as posições jurídicas conquistadas pela classe operária não traduzem o seu poder de classe propriamente, mas antes o poder da ordem social que se organiza juridicamente. Isto porque a relação entre capital e trabalho é uma relação jurídica entre sujeitos, é um antagonismo social expresso num liame entre contratantes.

Todos os avanços do movimento operário que foram contemplados legalmente são concretizados a partir das categorias jurídicas que instruem a sociedade burguesa e o direito como uma de suas formas sociais. Logo, não é possível imaginar que a classe operária possa se amparar no direito para questionar o modo de produção capitalista. Tampouco é possível que ela construa no interior da forma jurídica qualquer estratégia de poder, pois o poder, nessa sociedade, só pode ser aquele que corresponde à sua estruturação capitalista.

Para o direito do trabalho, as consequências desse raciocínio são tremendas. Visto como uma espécie de direito de resistência pelos juristas progressistas, ou mesmo como o embrião para um novo direito, como uma possibilidade de renovação geral da ordem jurídica e do seu liberalismo tradicional, o direito do trabalho se revela, graças à inquirição implacável de Edelman, como mais um espaço de consagração do domínio burguês. Transcrevamos as palavras do autor em toda a sua crueza:

Devemos nos livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um “direito operário” que manteria distância do direito burguês, que seria um tubo de ensaio em que se elaboraria um “novo direito”. Tradicionalmente, os especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É necessário, dizem esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus títulos, reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos – a ver com o direito “comum”, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu o “socialismo dos juristas”, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e técnicas das relações entre direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do trabalho/direito comercial, direito do trabalho/direito público…

Como se o trabalho estivesse “do lado” do capital e do Estado! Como se o “direito operário” não fosse o direito burguês para o operário! E como se, enfim, milagrosamente, o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente “protegida”!

Não existe o “direito do trabalho”; existe um direito burguês que se ajusta ao trabalho, ponto final.” (EDELMAN, 2016, p. 19).

É claro que, para chegar a um diagnóstico tão “drástico” como esse, Edelman não se limitou a construções simplórias ligadas à metáfora marxiana da relação entre estrutura e superestrutura. O autor guiou-se pela compreensão acerca das formas sociais e de suas consequências. Uma vez que tais formas cristalizam as relações de produção que as engendram, delas não se pode esperar qualquer tipo de subversão contra a ordem existente. Nessa ordem de considerações, não se poderia conceber o direito do trabalho como um direito do trabalhador contra a classe capitalista, ou então imaginá-lo como um ramo jurídico “menos burguês”. Ao longo de sua obra, Edelman demonstra à exaustão que as relações entre capital e trabalho, ao serem mediadas juridicamente pelo direito coletivo do trabalho, encontram um ponto de sustentação bastante sólido, e que a forma jurídica aplicada ao embate capital-trabalho sofistica a supremacia burguesa a partir da “captura” do movimento operário, do seu enredamento.

Ao dizer que não existe um direito do trabalho que “pertença” ao trabalhador, ou que possua uma substancialidade distinta daquela que compõe o direito burguês em geral, Edelman recupera a radicalidade de Pachukanis, já que este, coerentemente com o caminho teórico que trilhou, propôs que o direito é sempre o direito burguês, não podendo prestar-se ao serviço de construção de um outro tipo de sociedade, ou mesmo de contraposição aos interesses da classe capitalista. O pensador russo compreendia que “o aniquilamento de certas categorias (precisamente de certas categorias e não de tais ou quais prescrições) do direito burguês, em nenhum caso significa a sua substituição pelas novas categorias do direito proletário”. E é assim pelo mesmo motivo que a supressão “das categorias do valor, do capital, do lucro etc., no período de transição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias do valor, do capital etc.” (PACHUKANIS, 1988, p. 26-27). Portanto, por mais que o direito do trabalho apresente figuras alternativas àquelas do direito civil, mais liberal em sua compleição, daí não se infere que elas atentem contra a lógica da sociedade burguesa.

Em acréscimo, a sutileza da função cumprida pelo direito do trabalho está no seu modo de envolver o proletariado em sua oposição face à burguesia. A “legalização da classe operária” consiste nesse expediente de subsunção de uma classe potencialmente revolucionária, e que traz em si uma negatividade ínsita em relação à burguesia e ao capitalismo, aos ditames da forma jurídica. Significa fazer com que o confronto de classe se realize numa arena segura, onde os limites do enfrentamento estejam bem delimitados, impedindo-se uma radicalização que ultrapasse as margens de tolerância das relações de produção. Para tanto, o capital tem a “astúcia” de dar à classe operária “uma língua que não é a sua, a língua da legalidade burguesa, e é por isso que ela se exprime gaguejando, com lapsos e hiatos que às vezes rasgam o véu místico (Maio de 1968 na França)” (EDELMAN, 2016, p. 22). Observe-se, inclusive, que Edelman não é um fatalista, que ele prevê a possibilidade de rupturas com a ordem burguesa. A diferença é que, contrariamente aos adeptos do “socialismo jurídico”, ele vislumbra essa possibilidade nos processos revolucionários, e não no direito ou nos demais aparatos institucionais do capitalismo.

A tarefa assumida por Edelman, pois, é a de decodificar a “linguagem” da legalidade burguesa, entender como ela aprisiona o movimento operário nas molduras da sociabilidade capitalista, como se processa o enquadramento jurídico da classe operária e de sua luta contra o capital.

O primeiro passo para o entendimento desse processo é o correto dimensionamento da relação capital-trabalho. Edelman esmiúça a unidade dialética desse par, pondo em relevo o fato de que, no capitalismo, trabalho e capital se determinam mutuamente. Esta unidade, com efeito, é basilar ao modo de produção capitalista, e não há um único conflito trabalhista que coloque em causa a natureza desse vínculo. Ao contrário, o direito do trabalho reproduz as condições sociais da produção capitalista e conforma a exploração de classe:

Podemos compreender agora como o contrato de trabalho reproduz o direito de propriedade, e como o direito de propriedade reproduz o contrato de trabalho. De um lado, o contrato de trabalho aparece como uma técnica de venda do “trabalho”, que só dá direito a um salário; de outro, o proprietário dos meios de produção compra a força de trabalho sob a forma de salário e a incorpora juridicamente a sua propriedade.

No final das contas, a relação capital/trabalho resolve-se numa relação de título: título de trabalho em oposição ao título de propriedade.

Assim, quando combinam contrato de trabalho e propriedade privada, os tribunais reproduzem de fato a separação do trabalhador de seus meios de produção.” (EDELMAN, 2016, p. 31).

Há, pois, uma simetria entre o contrato de trabalho e o direito de propriedade, ou melhor, uma correlação necessária, e que instrui o que Edelman chama de poder jurídico do capital. A dominação do capital sobre o trabalho é exercida sob a forma de um vínculo contratual que atribui direitos e deveres para as partes envolvidas num arranjo aparentemente igualitário, destoante do perfil estamental da sociedade feudal, por exemplo. Mas é essa igualdade entre polos contratantes que abriga a coleta do mais-valor e que dá a dinâmica da exploração capitalista.

A incidência da igualdade jurídica sobre a relação capital-trabalho traz efeitos sobre o modo como esse antagonismo imanente se desenvolve, e Edelman faz uma imersão nessas implicações. O teórico francês aponta, primeiramente, a contratualização das greves: o confronto entre as classes é enquadrado como um confronto entre sujeitos munidos de direitos, de sorte que os antagonistas guardam obrigações entre si mesmo quando entram em choque. E mesmo o alcance e a intensidade desse choque são submetidos a uma disciplina jurídica, a uma avaliação de licitude e ilicitude dos atos praticados. Dessa maneira, “a greve é lícita na medida do contrato de trabalho; quando há abuso contratual, há greve abusiva”, o que significa dizer que “a greve, quando se torna extracontratual, torna-se, por consequência, ilícita ou ilegal, segundo sutilezas que não nos interessam por ora” (EDELMAN, 2016, p. 38).

O intuito último dessa contratualização é a defesa da produção. O critério aferidor da abusividade ou não da greve é o seu potencial lesivo à normalidade da produção capitalista. Não sendo dado à classe burguesa, em condições de normalidade política, simplesmente proibir as greves – ao menos não na época de maturidade do capitalismo –, a política oficial para essas formas de luta proletária é a de contenção segundo regras dedicadas a poupar a produção capitalista de maiores abalos. Nesse sentido, admite-se a prática grevista, mas com a condição de que o empregador seja avisado previamente, que um mínimo do processo produtivo seja mantido em funcionamento, que a posse do capital sobre os meios de produção não seja afrontada e que as reivindicações do movimento paredista não ultrapassem o âmbito sindical, quer dizer, a seara econômico-profissional da categoria mobilizada.

Com tudo isso, a forma jurídica não só preserva a fluidez da produção, como também pretende forçar os trabalhadores a adotarem uma estratégia de luta previsível e admissível, tolerável para os padrões capitalistas. Merece destaque, dentre os requisitos usuais para a licitude da greve, o perfil econômico-profissional que se espera das reivindicações do movimento operário. Trata-se simplesmente de se reproduzir a separação formal entre Estado (política) e sociedade civil (interesses econômicos) que caracteriza o capitalismo, além de se interditar a politização da luta operária e a formação de mobilizações que superem a divisão do proletariado em categorias profissionais. Pois é da superação desse fracionamento em interesses profissionais que depende a unificação do proletariado na sua oposição inconciliável perante o capital. Somente assim a luta de classes pode atingir um patamar superior, comportando uma disputa não mais em torno do preço de venda da força de trabalho, e sim das relações de propriedade que transformam a força de trabalho em mercadoria.

Pelo aspecto ideológico do direito estudado por Edelman, logo se percebe que a forma jurídica conspira contra qualquer tentativa de se por em causa as relações de produção capitalistas. Ela se empenha, ao revés, em naturalizar tais relações e dissimular seu caráter de classe por meio de um discurso humanista muito difundido pelos juristas, e que, apropriado pelos tribunais, fundamenta decisões repressivas contra os trabalhadores em greve, exercendo uma disciplina férrea contra eles sempre que suas mobilizações ameaçam sair da esfera sindical-profissional. Daí se entende a visão do autor quanto à impossibilidade de uma ordem jurídica admitir, a título ilustrativo, as greves políticas ou as ocupações dos locais de trabalho.

Tendo em vista todas essas circunstâncias, Edelman não exagera em nada ao sintetizar suas reflexões sobre o direito de greve, tido como um triunfo absoluto da classe operária pelos juristas progressistas e humanistas, da seguinte maneira:

“O direito de greve é um direito burguês. Entendamos: não digo que a greve é burguesa, o que seria um absurdo, mas que o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer, muito precisamente, que a greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.” (EDELMAN, 2016, p. 48).

  1. A atualidade d’A legalização da classe operária perante o direito coletivo do trabalho brasileiro

Como visto nas seções anteriores, A legalização da classe operária pode ser considerada a principal obra de Edelman do ponto de vista teórico, uma vez que consuma seu projeto crítico do direito e consubstancia o momento em que ele dá o passo decisivo além da elaboração pachukaniana. Por isso, é com estranhamento que se constata que a obra permaneceu por quase quatro décadas inédita em língua portuguesa, sequer tendo recebido traduções em outros idiomas latinos como espanhol ou italiano. Entretanto, sua publicação no Brasil pela Editora Boitempo, em 2016, não poderia se dar em oportunidade melhor: o país encontra-se em momento político ímpar para que o público leitor possa verificar em sua própria vida cotidiana a insuperável atualidade da obra. Mais do que isso, como o próprio Edelman, a despeito de ter abandonado o projeto d’A legalização da classe operária [5], reconheceu no prefácio que elaborou a pedido dos tradutores para a publicação no Brasil, a obra pode ser considerada quase profética, depois de ter sido rejeitada à época de sua publicação:

Devo dizer que esta abordagem suscitou verdadeira revolta. Lembro-me que quando expus minhas teses na Escola Normal Superior, onde lecionava na época, a companheira de Althusser, antigo membro da resistência e cegetista ardorosa, interpelou-me violentamente e me chamou de reacionário, de traidor e de mercenário da burguesia… Louis Althusser manteve prudentemente o silêncio. Em resumo, este livro foi retirado de cena, e apenas um jornal anarquista lhe fez apologia. Então, o que se pode dizer dele hoje? Que ele era premonitório, mas que a realidade o ultrapassou? Sim e não. Sim, porque o desmoronamento do comunismo se produziu com uma rapidez que me surpreendeu. (…). Mas, sobretudo, parece-me que minha decodificação jurídica da realidade político-econômica conservou todo o seu valor.” (EDELMAN, 2016, pp. 9-10).

Com efeito, em 1978, no momento de sua publicação original, a obra talvez não fizesse tanto sentido deste lado do Atlântico. Naquele instante, depois de uma década e meia de uma violenta ditadura militar, em que o movimento sindical foi sufocado de todas as formas possíveis pelo direito e pela força e substituído por uma atuação meramente assistencial sem qualquer conteúdo de classe [6], o operariado retomava suas lutas a partir de uma organização de base totalmente independente da organização sindical oficial:

Mas nem só de adesismo vivia o movimento. Se as greves por categoria e a chegada de grupos políticos de esquerda às direções sindicais eram impossíveis dado o alcance da repressão, os ativistas mais combativos não desistiram do trabalho de organização dos trabalhadores nas empresas.” (MATTOS, 2009, p. 113).

O paciente e clandestino trabalho de base efetuado ao longo de toda a década de 70, auge da repressão, começou a mostrar seus resultados na fábrica da Scania, em São Bernardo do Campo, em 12 de maio de 1978: ali irrompia uma greve, organizada inicialmente sem a presença do sindicato, que desencadearia uma onda de greves que varreria a região do ABC paulista até 1980. Há inúmeros relatos disponíveis, entre os quais o de Mattos, acima citado, o brilhante trabalho de Antunes (1988) e o estudo de Abramo (1999). Em todos eles, com variados níveis de detalhamento, é possível perceber inúmeras características do movimento operário de que já falava Lênin em seu clássico Que fazer? (2010): o espontaneísmo, a vanguarda operária e sua relação com a base, a consciência “tradeunionista” em contraposição à consciência social democrata, o ganho organizativo da greve por vezes superando os ganhos materiais para os trabalhadores e o ganho individual de consciência pelos operários a partir de seu engajamento na luta. Tratava-se, em suma, de um período de “ilusão”, para dialogar com Edelman, que já noticiava em 1978 terem sido as “ilusões perdidas”, especialmente a ilusão da existência da classe operária (2016, p. 145).

A história do “novo sindicalismo”, nome que recebeu o movimento inaugurado em 1978, e de sua captura pelo Estado, consumada pela Constituição de 1988 [7] e cada vez mais aprofundada desde então, é a crônica da legalização da classe operária brasileira e justifica o crescente ganho de interesse da obra de Edelman a partir de então.

Com efeito, não se pode esquecer a inarredável contribuição de Althusser no sentido de que, na sociedade capitalista, a dominação de classe é exercida por meio de uma multiplicidade de aparelhos, repressivos e ideológicos, que conjuntamente formam o que se convencionou chamar de Estado [8]. O que permite a Edelman apontar o sindicato como um aparelho ideológico de Estado (2016, p. 123) no sentido althusseriano é uma estratégia de controle que deve ser exercida de acordo com a configuração do aparelho repressivo de Estado [9]. Com o enfraquecimento do aparato militar do Poder Executivo a partir da redemocratização em 1988, desenhou-se a estrutura para que o controle sobre o aparato sindical no direito brasileiro fosse exercido na modalidade de um controle judicial (CORREGLIANO, 2013). As elaborações críticas de Edelman a decisões judiciais e manifestações da doutrina francesa sobre diversos aspectos do direito sindical ajustam-se perfeitamente ao processo observado no Brasil pós-1988.

Um primeiro ponto interessante diz respeito à questão da representação sindical. A Constituição de 1988 fez-nos persistir convivendo com o modelo oriundo do Decreto n. 19.770, de 19 de março, de 1931, integrado, posteriormente, à CLT de 1943, que, embora tivesse sido revogado em duas ocasiões, foi revigorado, sobretudo, por iniciativa dos governos militares de Dutra e do golpe de 64, modelo este em que, de maneira atrelada à unicidade sindical, é atribuída ao sindicato a exclusividade da representação de sua categoria nos limites territoriais em que ele estiver constituído. A exclusividade de representação resolve um problema antigo da organização do movimento operário na forma sindical, e que Edelman ironicamente aborda na forma de uma pergunta: a quem pertence a classe operária? (2016, p. 109). Sua resposta a esta questão, ao mesmo tempo em que aponta a representação sindical como solução jurídica apresentada pelo Estado, expõe seus limites e tece sua crítica:

“A burguesia contaminou a organização operária, intimou-a a transformar-se em burocracia, funcionando segundo o modelo do poder burguês; intimou-a a “representar” a classe operária segundo o esquema burguês da representação; impôs-lhe uma língua, um direito, uma ideologia do comando da hierarquia que fariam das massas um sujeito submisso, sensato e “responsável”. (…). Entretanto, as coisas não são tão simples. Investidos do poder legal de representar a classe trabalhadora, os sindicatos são excedidos por sua própria legalidade. Por quê? Simplesmente porque a classe operária não é “representável”: não constitui um corpo – como o eleitorado, por exemplo –, não constitui uma soberania abstrata – como a nação ou o povo –, é uma classe que conduz a luta de classes. Sua existência de classe é “extralegal”, “inapreensível”. Ela não pertence a “ninguém”, senão a ela mesma, ou a sua própria liberdade.” (EDELMAN, 2016, pp. 111-112).

O problema da representação sindical no Brasil é especialmente sensível porque, como já constatado em outra oportunidade (BATISTA, 2012, pp. 245-255) ocorre em um duplo nível. Além de o sindicato, por si só, operar por meio de dirigentes eleitos, atraindo o problema apontado por Edelman de buscar adequar ao esquema burguês de representação a classe operária, que não é passível de tal submissão, o sistema de exclusividade de representação organizado em torno do sindicato único por categoria pressupõe a existência de uma configuração uniforme dos membros de tal categoria. Embora esta questão não se coloque da mesma maneira na França, Edelman também debruçou-se sobre ela ao investigar as restrições impostas pelo Poder Judiciário francês à prática de atividades políticas no seio da empresa. Sua percepção elucida o que se encontra por trás da exclusividade de representação da categoria:

Isso quer dizer que, do ponto de vista da empresa, a comunidade de trabalhadores é uma comunidade “social”, cuja homogeneidade encontraria seu sentido no humano. Isso quer dizer também que a empresa capitalista aparece como o único lugar onde os homens são ligados pelo humano, o único lugar onde não se opera nenhuma discriminação, já que o trabalho torna os homens iguais; portanto, o único lugar onde eles realizam sua liberdade de trabalhador.” (EDELMAN, 2016, p. 96).

É claro que há um sentido para que a crítica do autor francês, debruçando-se a tema diverso, caiba tão perfeitamente à exclusividade de representação do direito sindical brasileiro. Em nenhum dos casos, não se está diante de um ato de vontade arbitrário do Estado, mas de uma disposição essencial da própria função do direito na ordem capitalista, em seu duplo viés de mascarar a exploração do trabalho e assegurar a continuidade da reprodução. Revelando o pano de fundo desta elaboração, Edelman profere algumas de suas mais fortes palavras:

Apenas a ordem jurídica coloca, concretamente, o homem no lugar das classes, o “trabalho” no lugar da força de trabalho, o salário no lugar do mais-valor; apenas a ordem jurídica considera a exploração do homem pelo homem o produto de um livre contrato, o exercício da liberdade; e somente ela considera o Estado de classe a expressão da “vontade geral”.” (EDELMAN, 2016, p. 87).

Eis a questão da representação sindical descortinada. O assim chamado “interesse da categoria”, tido como dado e, por isso, considerado unitário, é tratado juridicamente na mesma chave rousseauniana de uma vontade geral da nação que moveria a atuação do Estado. Se, entretanto, seria cabível imaginar que a política seja a forma adequada de encontrar a vontade geral em meio à multiplicidade de vontades no Estado como pensado por Rousseau, o mesmo não se dá em relação à categoria profissional – colocando-se a questão nestes termos apenas para dialogar com o aspecto normativo do direito brasileiro, já que Edelman entende que o raciocínio estende-se à classe operária de forma geral – em que a política não teria espaço, reeditando-se na organização sindical a separação entre Estado e sociedade civil na forma de uma oposição entre o âmbito profissional e o âmbito político:

Os juristas forjaram uma arma extremamente eficaz: o trabalho, dizem, é profissional. À primeira vista, o termo parece bem anódino, e é antes uma tautologia. Não se deixem enganar: ele exprime, de fato e apesar das aparências, a própria estrutura do poder político burguês. Com efeito, quando dizemos que o trabalho é profissional, exprimimos a simples ideia de que ele se manifesta numa relação estritamente privada. E exprimimos também essa outra ideia de que, por esse motivo, ele não tem nada a ver com a política. Aqui, profissional se opõe ao político. O resultado é que a noção de trabalho está ela própria sujeita a uma distinção tão velha quanto a burguesia, a uma distinção da constituição do poder político burguês, a saber, a distinção sociedade civil/Estado.” (EDELMAN, 2016, p. 48).

O principal efeito dessa separação entre âmbito profissional – em que estão colocadas as relações de classe entre capital e trabalho – e âmbito político – em que não há coletivos, mas cidadãos operando enquanto indivíduos perante o Estado – é o mascaramento do caráter de classe do Estado, que, no modo de produção capitalista, assume a aparência de um terceiro imparcial que media a relação entre as classes (MASCARO, 2013). Assim, o capital pode, ao mesmo tempo em que exerce sua dominação por meio do conjunto de aparelhos de Estado, colocar-se no nível das aparências como mais um ator da disputa de interesses que ali se trava, exclusivamente por meio dos indivíduos que o personificam, os capitalistas. Na fina ironia que caracteriza a obra de Edelman, lê-se uma formulação poderosa desta questão:

Lindo, não? O capital não é “responsável” por sua política, não é “responsável” por “seu” Estado! De um lado, a extorsão de mais-valor, de outro, o Estado, e se pode ver, concretamente, a eficácia da separação sociedade civil/Estado.” (EDELMAN, 2016, p. 52).

Ou, de forma ainda mais sintética: “Em nome do direito, os trabalhadores não podem vincular sua luta contra o capital a sua luta contra o Estado” (EDELMAN, 2016, p. 57).

A separação, por assim dizer, “filosófica” entre o profissional e o político desemboca, do ponto de vista prático, em trabalho que, na França como no Brasil, foi elaborado pela reiteração de decisões judiciais tratando dos limites de conteúdo a animar o exercício do direito de greve. Tais limites passam por diversos aspectos. No Brasil, tem ganhado proeminência em tempos recentes a questão do atendimento às necessidade inadiáveis da comunidade em caso de greve em serviços essenciais, nos termos definidos pelos artigos 9º, § 1º, da Constituição, e 10 e 11 da Lei nº 7.783/89, tema este abordado apenas de passagem por Edelman, quando registra que o prejuízo inerentemente causado pela greve é um dos pontos a ser levado em conta na discussão de sua contratualização promovida pelo direito. Edelman aponta, a esse respeito, a moralização inerente à imposição de limites materiais ao exercício da greve [10].

Uma das principais preocupações de Edelman no que tange aos limites do direito de greve é a possibilidade do uso deste meio de ação sindical em defesa de interesses políticos. O problema também se coloca aqui no Brasil, tendo sido inclusive objeto de recente pesquisa de pós-graduação (BABOIN, 2013) que aponta por aqui fenômeno semelhante ao descrito por Edelman: a construção jurisprudencial de um conceito de direito de greve, moldado na forja da oposição entre profissional e político, que exclui por si só qualquer pauta de reivindicações que extrapole a relação imediata entre capital e trabalho e o conteúdo do contrato de trabalho peculiar aos grevistas. Confira-se:

No interior mesmo do direito de greve, o trabalho dos tribunais traçou as linhas demarcatórias que lhe permitem tê-lo bem na mão. Releia o leitor o acórdão da Corte de Cassação: o direito de greve é uma “modalidade de defesa dos interesses profissionais”. Está tudo aí. Isso permitirá distinguir as greves lícitas – entenda-se aquelas que respondem à defesa dos interesses profissionais, isto é, que têm em vista apenas uma melhoria das cláusulas do contrato de trabalho (salário, condições de trabalho etc.) – das greves ilícitas ou abusivas – entenda-se aquelas que excedem o bom funcionamento do contrato de trabalho, as greves políticas, ditas “políticas”.” (EDELMAN, 2016, p. 42-43).

A consequência jurídica de uma greve ser tida como política e, portanto, ilícita ou abusiva, é bastante simples: o peso da força do Estado se abate contra o movimento operário. O aparelho repressivo será movimentado e recolocará tudo em seu devido lugar, como convém ao direito, de modo geral. Por isso, interessam mais de perto a Edelman, e também às reflexões deste texto, as consequências teóricas do eventual aspecto político de uma greve. Como se verá, este debate recolocará a questão com que foi aberta esta seção, demonstrando o limite, bastante estreito, das possibilidades de legalização da classe operária.

E a greve política? Muito simples. Uma vez que a greve é usada para fins de poder, ela se torna política. Em poucas palavras, a classe operária “não tem o direito” de usar seu poder fora dos limites da legalidade burguesa, que é, evidentemente, a expressão do poder de classe da burguesia. Como podemos ver, não se trata mais, de modo algum de um conflito de direito. Trata-se de luta de classes: de um lado, o direito, inclusive o direito de greve; de outro, o “fato” das massas, isto é, a greve; de um lado, um poder legal; de outro, um poder bruto, elementar, inorganizado.” (EDELMAN, 2016, p. 56).

A greve política, portanto, devolve à classe operária seu caráter “de fato”, seu aspecto de “massa”, sua desorganização. Retira-a do direito, em que foi mutilada, para colocá-la de volta a seu lugar de origem: a luta de classes. Outro fenômeno que voltou a ocupar a pauta de preocupações do movimento de trabalhadores, recentemente apresenta um desafio ainda maior ao direito: a questão das greves conduzidas espontaneamente a partir da base, sem a participação dos sindicatos, que Edelman apelida de greves selvagens (2016, p. 116). Sua preocupação com este tema assume, também, um tom premonitório, antecipando o problema em que se enredam hoje os tribunais brasileiros. Em termos althusserianos: como interpelar o grevista não organizado em sindicato como sujeito? Em termos jurídicos: quem representa a coletividade de trabalhadores em greve? A tática tem animado o movimento de trabalhadores brasileiro desde o bem sucedido movimento grevista dos trabalhadores de limpeza urbana do Rio de Janeiro, em março de 2014, em razão da catatonia que atingiu os operadores do direito que, atônitos, ainda não sabem como reagir ao fenômeno.

Muito ao contrário de se animar com as greves selvagens, Edelman identifica que o descolamento entre base e representação sindical é o que permite que a classe burguesa atue para dividir a classe operária, incentivando parte dos trabalhadores a não aderir ao movimento e, com isso, enfraquecendo-o. Sua sentença, embora controversa, é categórica: “Ora, uma representação sindical de todos os grevistas derrotaria essa tática” (EDELMAN, 2016, p. 117).

  1. A recuperação das ilusões perdidas

Edelman encerra sua obra fazendo a ponte para o jamais desenvolvido tratamento da legalização da classe operária sob a perspectiva do Estado – que constaria de volume posterior da obra que, como vimos, nunca veio à lume. Ele atribui à conclusão o título de “ilusões perdidas”. Parafraseando-o, este texto será encerrado com outra leitura sobre a atualidade de sua obra, que buscará transbordar suas poucas indicações sobre a direção do tratamento da questão do Estado para refletir um fenômeno recente e bastante relevante no Brasil: a multiplicação de movimentos sociais reivindicativos de direitos.

Antes de tudo, é importante observar que os movimentos sociais reivindicativos de direitos vêem recair sobre si várias das estratégias de legalização discutidas por Edelman em seu texto. Para ficar em apenas dois exemplos, pode-se observar como o Movimento Passe Livre, embora difuso e horizontal, é interpelado pelo Estado a tornar-se sujeito de direito por meio da submissão à estapafúrdia obrigatoriedade de informar previamente à polícia o trajeto de suas manifestações, sujeitando-se à severa repressão policial em caso de recusa ou de alteração imprevista do trajeto; ou a recente declaração do Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, que buscava desqualificar o movimento de ocupação de escolas por estudantes secundaristas com a observação de que seu movimento apresentava “nítido cunho político”. Assim, bastaria aplicar ipsis litteris as ideias da obra a tais realidades, para constatar que tudo faz parte de uma mesma luta de classes, empreendida com as mesmas armas pelo lado da burguesia e do Estado. É possível, entretanto, ir além da pura e simples justaposição das reflexões sobre os sindicatos aos movimentos sociais reivindicativos.

É que está cada vez mais claro que tais movimentos recuperaram as duas ilusões mencionadas por Edelman: a ilusão da existência da classe operária – em tempos de discursos “pós-modernos” que apontam o fim da luta de classes, os integrantes de movimentos sociais que constituem uma das últimas trincheiras de resistência capitularam apenas parcialmente ao se crerem a expressão contemporânea do que é a classe trabalhadora – e a ilusão jurídica, “a crença obstinada de que a liberdade se transforma em direitos” (EDELMAN, 2016, p. 149). É essa recuperação das ilusões que coloca duas questões, diferentes mas complementares, que se relacionam diretamente com a conclusão de Edelman e demonstram a manutenção de sua importância: as tais ilusões mantêm seu caráter ilusório mesmo após serem contemporaneamente retomadas? É negativo que tais ilusões sejam retomadas?

A resposta, a partir de Edelman, parece ser afirmativa para ambas as questões.

Quanto à primeira, basta retomar seu já mencionado prefácio, em que sustenta que “minha decodificação jurídica da realidade político-econômica conservou todo o seu valor” (EDELMAN, 2016, p. 10). Seria possível acrescentar que esta decodificação não somente conservou seu valor como o conservará enquanto a humanidade viver sob a égide do modo de produção capitalista. Isso significa que a ilusão da existência da classe operária não perde seu caráter ilusório nesta retomada, antes o aprofunda. A pulverização dos movimentos sociais em pautas específicas, normalmente orientadas em torno do acesso a bens como saúde, educação, moradia, transporte etc., afasta ainda mais a possibilidade de existência concreta da classe operária – que jamais operará como classe enquanto estiver organizada em torno de demandas tão restritas – e sua aparência de existência, consubstanciada nesta já consagrada expressão, sempre utilizada no plural, “movimentos sociais”. Ao lado da ilusão da existência de uma “classe trabalhadora” onde operar a legalidade burguesa, é possível antever a ilusão da existência de um “movimento negro” ou de “um movimento feminista” e assim por diante. Aliás, é difícil constatar mesmo, se a legalidade burguesa continuar a reger os fatos, a noção do que seja negro ou do que seja gênero – na medida em que a raça e o gênero, por exemplo, têm a sua conformação indicada por este sistema legal. De certa forma e de maneira premonitória, este fato se emerge, através do espelho, da frase que encerra “A legalização da classe operária” de Bernard Edelman.

A segunda questão, especialmente no que toca à retomada da ilusão jurídica já havia sido objeto de reflexão crítica de Edelman: “Este é o sonho da burguesia: um capitalismo garantido de uma vez por todas pelo direito. Este é também o sonho de um certo ‘socialismo’: um socialismo de uma vez por todas garantido pelo direito” (EDELMAN, 2016, p. 61) [11]. A retomada da ilusão jurídica parece fazer bastante sentido num momento histórico em que uma terceira ilusão, não abordada por Edelman, vem sendo perdida: a ilusão da transformação social revolucionária.

Duas advertências de Edelman parecem ter sido escritas para serem lidas pelos movimentos sociais de quatro décadas mais tarde. De um lado, sua crítica pontual e poderosa, derivada de Lênin, à reivindicação de direitos como estratégia da classe operária: “Hegemonia burguesa, isso sim, pois, uma vez que a ‘liberdade’ se transforma em direitos, esses direitos são reapropriados no sistema dos espaços” (EDELMAN, 2016, p. 150).

Sua segunda advertência é bem mais profunda. Antes mesmo que ela fosse cogitada, coloca em xeque a recuperação das ilusões perdidas como horizonte estratégico da atuação da classe operária na luta de classes e aponta o caráter revolucionário da perda de tais ilusões. Sua colocação como palavras finais deste texto deve ter muito menos o sentido de uma citação e muito mais o sentido de sua nova enunciação com a mesma força, mas em um outro momento político e jurídico. São também essas palavras que parecem demonstrar que, ao contrário do que possa sugerir uma leitura apressada, seu prefácio à tradução não representa uma negação de suas convicções, mas uma sólida manifestação de sua revolucionária desilusão:

O fim da grande mitologia política se anuncia no horizonte. A “esquerda” está morta, seguindo de perto o “socialismo”. Nossa herança foi dilapidada. As velhas aspirações políticas estão morrendo. Quem lamentaria? As doenças do marxismo devoraram a si mesmas, e o marxismo hoje, e talvez pela primeira vez, pode ser liberado de seu triunfalismo. E o “impossível” revolucionário, o impossível de todas as revoluções, pode começar a nascer de nossas ilusões perdidas.” (EDELMAN, 2016, p. 147).


[1] Os autores são tradutores da obra de Bernard Edelman, “A legalização da classe operária” (Editora Boitempo, 2016) e, com exceção de Pablo Biondi, que é Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, são professores da Faculdade de Direito da USP.

[2] “O direito é forma que vai se sofisticando na medida em que se separa das outras manifestações da humanidade, como, por exemplo, a religião. Assim, por exemplo, em períodos mais remotos da humanidade, quando o direito não tinha a mesma função atual (…), a sua convergência com a noção de religião era muito mais comum. Por exemplo: nos primórdios, o sistema de provas era determinado pelo chefe religioso. Aliás, sequer havia o que se provar se o deus/homem que governasse determinasse a solução do conflito, prescindindo até mesmo de provas. Em momento posterior, as ordálias ou juízos de deus eram também um bom exemplo de como a prova estava (…) ligada à questão religiosa. Aquele que ultrapassasse as limitações impostas (como passar incólume por um chão de brasas, por exemplo) contava com a aquiescência divina, já que a verdade estaria ao seu lado. Com o tempo, admitiu-se o sistema de prova legal (…), (que) corresponde a uma necessidade do nascituro capitalismo, envolvido com a ideia liberal da legalidade em seu sentido estrito.” (CORREIA, 2013, p. 556).

[3] Em 1938, a pretexto do assassinato de Kirov, um quadro do partido bolchevique, desencadeou-se na URSS uma onda de perseguições contra antigos militantes do partido, e que consistiu num recrudescimento da burocratização e da repressão política que assolavam o país desde o final da década de 1920. Figuras históricas do partido bolchevique como Kamenev, Zinoviev, Bukharin e muitas outras foram forçadas a confessarem crimes que não cometeram, o que resultou em sua condenação e execução – muitos desses, inclusive, haviam integrado blocos com Stalin antes de serem renegados. A maioria da antiga direção bolchevique foi fisicamente eliminada nos Processos de Moscou. Trotsky foi condenado, mas se encontrava no exílio. Em 1940, foi assassinado por um agente da GPU.

[4] Todas as citações de obras em idioma estrangeiro serão traduzidas por nós livremente.

[5] A esse respeito, é interessante notar que o original em francês trazia como subtítulo a indicação “Tomo I”, sugerindo que haveria continuidade da obra em outros tomos, que, entretanto, jamais vieram a existir. A leitura do prefácio à edição brasileira é bastante elucidativa das razões de tal abandono, já que a rejeição à obra foi bastante frustrante ao autor, que a viu realizar-se anos mais tarde, como se pode verificar na transcrição que segue.

[6] “Os instrumentos já estavam dados pela própria CLT, que facultava ao Ministério do Trabalho o poder de intervir nas entidades sindicais, destituindo diretorias eleitas e substituindo-as por interventores. (…). A cassação dos direitos políticos e a instauração de inquéritos policiais militares contra os principais dirigentes sindicais cassados criaram, para os que conseguiram escapar à prisão imediata, a alternativa da clandestinidade e do exílio. (…). Após nova leva de intervenções, a ditadura, em inícios dos anos 1970, tratou de valorizar um ‘novo’ modelo de atuação sindical, pautado pela ação exclusivamente assistencial e afinado com as ideias de crescimento econômico como pré-requisito para uma posterior política redistributiva” (MATTOS, 2009, pp. 101-111).

[7] “A redemocratização do país, com a aprovação da Constituição de 1988 e as eleições presidenciais de 1989 encerra, em certo sentido, a ‘era’ do novo sindicalismo brasileiro. O fim do controle do Ministério do Trabalho sobre os sindicatos, do ‘estatuto-padrão’ e da proibição de sindicalização do funcionalismo público foram conquistas inscritas naquela carta. Porém, a manutenção da unicidade sindical, do monopólio da representação, do imposto sindical e do poder normativo da Justiça do Trabalho indicou que o programa do novo sindicalismo não se concretizou completamente na legislação, pois a estrutura oficial, com a herança corporativista, continuou pesando” (MATTOS, 2009, p. 125).

[8] “No entanto, teremos de nos dar conta um dia de que a hegemonia burguesa somente triunfa por seu recorte social, que lhe permite governar por aparelhos interpostos” (EDELMAN, 2016, p. 148).

[9] Nesse contexto, é importante apontar que Edelman vê nos sindicatos instrumentos de colaboração entre as classes e não de luta: “Dito de outro modo, quanto mais fora o sindicato está de sua base, mais ele é descentrado das lutas, mais escapa da ‘espontaneidade’ operária e mais é eficaz. A institucionalização da negociação supõe uma ‘máquina’ sindical ‘concentrada’ no mesmo modo da concentração estatal ou capitalista. (…). Quando substituímos a luta de classes por uma negociação, conduzida por um ‘poder’ concretizado em aparelhos que funcionam com base na representação, na hierarquia, na disciplina, não há dúvida de que estamos em plena colaboração de classe” (EDELMAN, 2016, p. 140).

[10] Esta moralização é pressuposta ao conceito do direito brasileiro de necessidade inadiável da comunidade, uma repaginação sindical do antigo brocardo romano alterum non laedere. Edelman também percebeu essa relação entre os modelos de comportamento pressupostos no direito de forma bastante perspicaz: “A luta de classes, de acordo, mas ‘com lealdade’. Como se a luta de classes fosse leal! E o que é a ‘lealdade’? A ideologia contratual, a boa-fé, o respeito das convenções etc. É por isso que o operário não deve aproveitar-se de sua posição na produção para trapacear patrão. Não. Ele deve comportar-se como um parceiro responsável, ‘fair play’. (…). O ‘grevista normal’ é a tradução ‘ousada’ do ‘bom pai de família’, e eis aí a moral burguesa transferida para o direito de greve!” (EDELMAN, 2016, p. 44). Como nota de curiosidade, não é incomum encontrar em manuais didáticos destinados ao ensino do direito sindical a informação de que os sindicatos carregariam uma “função ética” (BRITO FILHO, 2009, p. 140).

[11] Muito ilustrativo de tal situação é o mote utilizado recentemente por uma manifestação de rua que aglutinou diversos movimentos sociais: “Contra a direita, por mais direitos”.

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