Como o feminismo se tornou subalterno ao capitalismo – e como reivindicá-lo

Por Nancy Fraser, via The Guardian, traduzido por Felipe Kantor

A pensadora feminista Nancy Fraser vem ganhando destaque ao discutir temas da atualidade à luz da Teoria Crítica da Sociedade. Seu projeto filosófico toma a justiça enquanto tema central e suas derivações segundo a mesma, são expostas nas possibilidades entre seu caráter “distributivo” e de “reconhecimento”. No presente artigo a pensadora expõe seu ponto de vista de maneira vigorosa, discutindo com o feminismo, o capitalismo e o neo-liberalismo nesta constante tensão configurada em nossa realidade.


Sendo uma feminista, sempre assumi que ao lutar pela emancipação das mulheres estava construindo um mundo melhor – mais igualitário, justo e livre. Porém, ultimamente, tenho começado a me preocupar que os ideais pioneiros das feministas estão servindo finalidades bastante diferentes. Me preocupo, especificamente, que nossa crítica do sexismo está agora fornecendo a justificativa para novas formas de desigualdade e exploração.

Em uma cruel reviravolta, temo que o movimento para a libertação das mulheres tenha se enredado em uma ligação perigosa com esforços neoliberais para a construção de uma sociedade de livre-mercado. Isso explicaria como foi aceito que ideias feministas que já fizeram parte de uma visão de mundo radical são cada vez mais expressas em termos individualistas. Feministas que certa vez criticaram uma sociedade que promoveria o carreirismo agora aconselham mulheres a “aceitarem”. Um movimento que uma vez priorizou solidariedade social agora celebra empresárias. A perspectiva que certa vez valorizou o “carinho” e a interdependência agora encoraja avanços individuais e meritocracia.

O que está por trás desta alteração é uma mudança de ares no caráter do capitalismo. O capitalismo organizado pelo Estado do pós-guerra tem dado espaço a um novo formato – “desorganizado”, globalizante, neoliberal. As feministas da segunda onda emergiram como uma crítica ao anterior, mas se tornaram as subalternas do último.

Com o benefício do olhar em retrospectiva, podemos agora ver que o movimento pela libertação das mulheres apontou simultaneamente a dois futuros possíveis. Em um primeiro cenário, se prefigurou um mundo onde cada emancipação de gênero andou de mãos dadas com a democracia participativa e a solidariedade social; em um segundo, prometeu uma nova forma de liberalismo, capaz de garantir às mulheres tanto quanto aos homens os benefícios da autonomia individual, possibilidade aumentada de escolhas e avanços meritocráticos. O feminismo da segunda onda era, desta maneira, ambivalente. Compatível com qualquer uma das duas visões de sociedade, ficou suscetível a duas elaborações históricas diferentes.

Da maneira como enxergo, a ambivalência do feminismo tem se decidido nos últimos anos a favor do segundo, o cenário liberal-individualista – mas não porque éramos vítimas passivas das seduções neoliberais. Ao contrário, nós mesmas contribuímos com três ideias importantes para este desenvolvimento.

Uma contribuição foi nossa crítica da “renda familiar”: o ideal de homem ganha-pão/ mulher dona-de-casa que era central ao capitalismo organizado pelo Estado. As críticas feministas a este ideal agora servem para legitimar o “capitalismo flexível”. Afinal de contas, esta forma depende fortemente do trabalho remunerado feminino, em especial o trabalho de baixa-renda em serviço e manufatura, realizado não apenas por jovens mulheres solteiras, mas também por mulheres casadas e com filhos; não apenas por somente mulheres de cor, mas por mulheres de virtualmente todas as nacionalidades e etnias. Na medida em que as mulheres se despejam nos mercados de trabalho ao redor do globo, os ideais de renda familiar do capitalismo organizado pelo Estado estão sendo substituídos pelas novas e mais modernas normas – aparentemente sancionadas pelo feminismo – da família de dois provedores.

Ignore que a realidade que subjaz esse novo ideal é de níveis depressivos de renda, segurança empregatícia diminuta, padrões de vida em decadência, um abrupto aumento no número de horas trabalhadas pela renda por residência, exacerbação do turno duplicado – agora comumente triplicado ou quadruplicado – e um aumento da pobreza, cada vez mais concentrado em residências encabeçadas por mulheres. O neoliberalismo transformou o patinho feio em cisne ao elaborar uma narrativa de empoderamento feminino. Invocando a crítica feminista da renda familiar para justificar a exploração, ele subordina o sonho de emancipação das mulheres ao motor de acumulação de capital.

O feminismo também fez uma segunda contribuição ao ethos neoliberal. Na era do capitalismo organizado pelo Estado, criticamos acertadamente uma constrita visão política tão intensamente focada na desigualdade de classes que não conseguia enxergar tais injustiças “não-econômicas” como a violência doméstica, o estupro e a opressão reprodutiva. Rejeitando “economicismo” e politizando “o pessoal”, as feministas ampliaram a agenda política para desafiar as hierarquias de status pressupostas nas construções culturais de diferença de gênero. O resultado deveria ter sido a expansão da luta por justiça, de forma a conter tanto a cultura quanto a economia. Todavia o resultado real foi o foco unilateral em “identidade de gênero” às custas de assuntos pão com manteiga. Ainda pior, a feminista recorreu à política identitária bem encaixada com um liberalismo crescente, que quis nada mais do que reprimir toda a memória de igualdade social. Na realidade, absolutizamos a crítica do sexismo cultural precisamente no momento em que as circunstâncias requeriam atenção redobrada à crítica da economia política.

Por fim, o feminismo contribuiu com uma terceira ideia para o neoliberalismo: a crítica do estado de bem-estar paternalista. Inegavelmente progressiva na era do capitalismo organizado pelo Estado, essa crítica tem desde então convergido com a guerra do neoliberalismo contra o “estado da babá” e sua mais recente cínica aceitação das ONGs. Um exemplo patente é o “microcrédito”, o programa de pequenos empréstimos dos bancos à mulheres pobres na parte sul do globo. Lançada como uma alternativa de empoderamento e de baixo para cima ao invés da burocrática e de cima para baixo fita vermelha dos projetos governamentais, o microcrédito é apregoado como o antídoto feminista para a pobreza e sujeição das mulheres. O que se deixou passar, contudo, é uma coincidência perturbadora: o microcrédito brotou no momento em que os governos abandonaram esforços macroestruturais de luta contra a pobreza, esforços que os empréstimos de pequena escala não conseguem substituir. Neste caso também, então, uma ideia feminista foi recuperada pelo neoliberalismo. Uma perspectiva originalmente voltada para a democratização do poder governamental de forma a empoderar cidadãos é usada agora para legitimar a mercantilização e redução do estado.

Em todos estes casos, a ambivalência do feminismo foi resolvida a favor do individualismo (neo)liberal. Mas o outro cenário solidário pode ainda estar vivo. A crise atual ganha a chance de pegar seu fio mais uma vez, reconectando o sonho de libertação das mulheres com a visão de uma sociedade solidária. Tendo em vista esta finalidade, as feministas precisam romper seu perigoso laço com o neoliberalismo e reivindicar nossas três “contribuições” para nossos próprios fins.

Primeiro, podemos quebrar nosso elo espúrio entre nossa crítica da renda familiar e o capitalismo flexível militando por uma forma de vida que descentralize o trabalho remunerado e valorize atividades não remuneradas, incluindo – e não somente – a de cuidar. Em segundo lugar, podemos romper a passagem de nossa crítica do economicismo para a política de identidade ao integrar o esforço de transformação de uma ordem de status sedimentada em valores culturais com a luta por justiça econômica. Por último, podemos cortar o adulterado vínculo entre nossa crítica da burocracia e do fundamentalismo de livre-mercado ao reivindicar o manto da democracia participativa como uma maneira de fortalecimento dos poderes públicos necessários para constranger o capital pelo bem da justiça.

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4 comentários em “Como o feminismo se tornou subalterno ao capitalismo – e como reivindicá-lo”

  1. Essa tradução, publicada ontem, é tardia. O texto original (http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/oct/14/feminism-capitalist-handmaiden-neoliberal) publicado em 14/10/2013 já havia sido traduzido e publicado praticamente no mesmo dia em http://uninomade.net/tenda/como-o-feminismo-se-tornou-a-empregada-do-capitalismo-e-como-resgata-lo/ e outros mirrors por aí.

    E mesmo este já é uma constatação tardia, por sinal mais ou menos da mesma época em que eu cheguei a conclusão similar após decidir me aprofundar no assunto até abandonar meu rótulo de ‘feminista’.

    Mas o fato é que as oligarquias norte americanas não teriam despejado bilhões de dólares no financiamento do Feminismo de Segunda Onda se isso não fosse de seu interesse, e hoje pode-se notar que todos os países tidos como mais feministas do mundo são também os mais liberais, e que por outro lado China, Rússia, Cuba, Coréia do Norte ou qualquer outro país contra hegemônico não tem sequer um traço desse Feminismo ocidental, quando muito, tendo o legítimo feminismo de base.

    Até mesmo a adesão ao Feminismo por parte dos partidos e instituições de esquerda coincide com sua progressiva adesão a agenda liberal, isso pode ser visto com clareza não apenas no PT e no PSB, mas em praticamente todos os partidos exceção de alguns menores e mais exóticos.

    No Brasil, o único partido que mantém uma linha feminista verdadeiramente de base socialista é o PCO, que não por outro motivo tem denunciado largamente esse Feminismo que é, em essência, liberal, apesar do discurso fajuto em contrário.

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