Michael Löwy sobre Nicos Poulantzas

Por Eric Alexis Cukier, Razmig Keucheyan e Fabio Mascaro Querido, via Contretemps, traduzido por Daniel Alves Teixeira

A ocasião do colóquio internacional consagrado a obra de Nicos Poulantzas que ocorreu na Sorbonne em 16 e 17 de Janeiro de 2015, Contretemps publicou uma entrevista com aquele que, durante sete anos, foi o assistente de Poulantzas na Universidade de Paris-8 Vincennes: Michael Löwy, em que este comenta também parte de sua própria trajetória intelectual.


Contretemps: Você poderia voltar às circunstâncias de seu encontro com Nicos Poulantzas?

Michael Löwy: Meu amigo brasileiro Emir Sader, que é hoje um dos marxistas latino-americanos mais importantes, vivia em exílio na França durante os anos 60[1]. Um dia, quando eu mesmo já havia me instalado na França em 1968, eu o encontrei, e ele me disse: eu devo partir para o Chile – isso foi poucos meses antes da chegada ao poder, em 1970, da Unidade popular de Salvador Allende – você quer tomar meu lugar de assistente de Nicos Poulantzas na universidade de Vincennes? Eu respondi sim, com certeza ….. Foi então que ele me apresentou a Nicos, que por sua vez aceitou igualmente.

Nicos não sabia nada à época de meu pedigree teórico e político. Como eu tinha sido recomendado por Emir, ele não tinha razão para desconfiar. Nós pertencíamos, entretanto, a tribos muito diferentes do marxismo: ele era althuseriano, e eu lukácstiano, ele era maoísta e depois eurocomunista, enquanto que eu era trotskista. E no entanto nós nos entendemos maravilhosamente. Durante anos nós ministramos cursos sobre a Terceira Internacional, a questão nacional, a teoria do Estado, Lenin, Gramsci ….. Desde o início, nós havíamos também decidido fazer os cursos juntos. Os estudantes adoraram, pois eles ouviam dois pontos de vista diferentes sobre cada um dos temas. Nosso pequeno dueto durou durante anos.

Contretemps: Que tipo de pessoa era Nicos Poulantzas? 

Michael Löwy: Nicos era alguém caloroso. Um caráter mediterrâneo, como nós imaginamos ser os gregos ….. Ele tinha bastante humor, estava sempre a caminho de brincadeiras. Ele era generoso, em particular com os estudantes, com os quais era muito popular. Nossos cursos eram lotados, centenas de estudantes os assistiam. Nicos Poulantzas era o contrário de um sectário, ele era um marxista alegre! Seu suicídio em 1979 pode dar a impressão retrospectiva que ele tinha um caráter sombrio, mas esse não era o caso.

Perto de 1974, eu lhe pedi que participasse de meu júri de tese, que se concentrou em Lukács. Ele se mostrou gentil comigo, mas eu não me esqueço de uma observação que ele me fez durante a defesa: Michael, você que é tão inteligente, por que você está perdendo seu tempo com Lukács? Aos seus olhos esse era um esquerdista insuportável….

Do meu lado, eu achava seus livros interessantes, e os li com certeza, mas ele era muito althusseriano, muito estruturalista, para mim. Nós nos aproximamos no fim, pois em seus últimos textos, o estruturalismo do início deu lugar a um tratamento mais político da questão das classes sociais e do Estado.

Contretemps: Vocês tiveram a oportunidade de debater fora dos cursos propriamente ditos?

Michael Löwy: Sim, eu me lembro principalmente que em meados dos anos 1970, nossos camaradas da New Left Review nos haviam convidado para participar de um debate em Londres. Nicos devia apresentar as teses de seu último grande livro, O Estado, o poder, o socialismo, do qual a New Left Review publicou a famosa conclusão concernindo a “via democrática em direção ao socialismo”[2]. Eu deveria lhe fazer o contraditório. Eu ainda devo ter as notas que eu havia feito nesse debate em algum lugar….

Lembro-me notadamente de ter dito que o uso que Nicos fazia do pensamento de Rosa Luxemburgo nessa obra me parecia particularmente fecundo. De minha parte, eu sempre foi luxemborgista. A ideia apresentada por Rosa, e que Nicos retoma e elabora a sua maneira, concerne a necessidade de combinar democracia representativa e democracia direta durante o processo revolucionário. É uma ideia que parece continuar importante hoje.

Contretemps: Como você percebia seu posicionamento político, suas evoluções?

Michael Löwy: Politicamente, Nicos foi verdadeiramente inclassificável. Ele era membro do Partido Comunista “do interior” na Grécia, uma cisão “eurocomunista” no seio do movimento comunista, que havia rompido com Moscou na época da Primavera de Praga. De passagem, o Partido comunista do interior é uma das matrizes do Syriza, o partido da esquerda grega radical atual. Neste sentido, Nicos era um comunista aberto, mas também mostrou algumas inclinações que eu qualificaria de “reformistas”. Em 1974, o restabelecimento da democracia na Grécia foi efetuado sob a égide da direita, em torno da figura de Constantin Karamanlis. Ora o Partido Comunista do interior tinha decidido apoiar Karamanlis com a palavra de ordem: “Karamanlis ou os tanques”, subentendendo que Karamanlis é a única alternativa a ditadura. Isso era muito discutível….

Nicos não viveu a ditadura dos coronéis, ele já estava instalado em Paris naquela época. Mas ele seguia com atenção a situação na Grécia, e seu livro sobre a crise das ditaduras se refere particularmente a Grécia[3]. Eu me lembro dos debates que ele teve com os estudantes gregos membros do Pasok estabelecidos em Paris. Ele era extremamente crítico relativamente a esse último, e retrospectivamente, o mínimo que podemos dizer é que ele tinha razão.

Dito isso, Nicos tinha também simpatia – como é verdade acerca de muitas pessoas à época – com o maoísmo e a revolução cultura chinesa. Então sua posição política era sui generis…

Contretemps: Qual era a discordância entre vocês nessa época?

Michael Löwy: No debate organizado pela New Left Review que eu venho de evocar, eu defendi uma posição leninista clássica, segundo a qual todo processo revolucionário supõe a destruição do aparelho de Estado. Ele era muito mais reservado sobre esse ponto. Sendo o Estado uma entidade composta, fruto das lutas entre forças sociais, algumas de suas seções podem ser mantidas no processo revolucionário.

Com o fim da ditadura na Grécia, a questão do aparelho de Estado, a maneira que as forças revolucionárias deviam agir com relação a ele, se colocava de forma diferente aos seus olhos. Outros fatores fizeram que seu leninismo do início mudasse. A União da esquerda na França implicava uma concepção da transformação social que não era mais aquela do “duplo poder” que se manifestou quando da revolução russa, teorizada principalmente por Trotski em seu História da revolução russa. Ela suponha também que a relação com a social-democracia, com o Partido Socialista, se colocasse de forma diferente. A experiência da Revolução dos Cravos em Portugal em 1974, mas também do Chile de Allende (1970-1973), influenciaram também sobre sua evolução. O contexto estratégico de meados dos anos de 1970 não era mais aquele de imediatamente após 1968, onde a pulsão revolucionária nos quatro cantos do mundo parecia irresistível …..

Contretemps: A Liga Comunista Revolucionária, da qual você era membro, leu as obras de Poulantzas? Suas teses eram discutidas?

Michael Löwy: Daniel Bensaid levava-o bastante a sério, nós encontramos no site que reuni os escritos de Daniel vários artigos consagrados a ele, e que polemizam em linhas gerais com o movimento eurocomunista ao qual Nicos pertenceu[4]. Antes de aderir ao Partido socialista, Henri Weber leu Poulantzas, e a revista teórica da Liga, Crítica comunista, publicou uma entrevista com Poulantzas realizada em 1977 por Weber[5]. Antoine Artous também dialogou, de maneira crítica, com as ideias de Poulantzas até os dias de hoje. Mas nos círculos militantes da Liga em geral, eu não penso que ele foi muito lido.

Contretemps: Sua colaboração na Paris 8 durou até a metade dos anos 1970…..

Michael Löwy: Isso mesmo. Eu não cheguei a obter o posto de titular na Paris 8, e então em 1977, eu entrei para CNRS. O conselho do departamento de sociologia da universidade não desejou que eu conservasse horas de ensino, então nesse momento eu parti, e nossa colaboração cessou.

E algum tempo depois, em 1979, vem o suicídio…..

Contretemps: Como você percebe esse gesto? Seu suicídio está ligado na sua opinião ao contexto de derrota política dos movimentos revolucionários da época?

Michael Löwy: Nicos estava em depressão a mais de um ano. Ela havia tido em 1978 isso que ele apresentou como um “acidente”, mas do que nós duvidamos que já se tratasse de uma tentativa. Eu não creio que ele tinha um sentimento de derrota da esquerda, então eu não formularia de minha parte a hipótese de que seu ato esteja ligado a uma derrota política. Havia certamente uma crise da União da esquerda, sobre a qual se direcionava o essencial de sua atenção à época, mas nada de irreversível ou de trágico em si.

O grande amigo de Nicos, Constatin Tsoukalas, que é também meu amigo, estava com ele no momento da passagem ao ato. Ele conta que Nicos começou a jogar seus livros pela janela, dizendo que aquilo que ele havia escrito não valia nada, que ele havia falhado em sua empreitada teórica, e em seguida ele se jogou pela janela. Existe portanto certamente um sentimento de fracasso pessoal. Mas ninguém nunca vai saber, é uma tragédia inexplicável ….

Contretemps: O contexto da Paris 8 na época era bastante particular, não somente com professores que reivindicavam diferentes variantes do marxismo, mas também com pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard ,,,, Você tinha qualquer interação com esse meio intelectual mais vasto?

Michael Löwy: Não realmente, a compartimentação disciplinar já era muito forte, nós estávamos no departamento de sociologia, e eles em filosofia. Às vezes acontecia encontrarmos François Châtelet, por exemplo, que tinha responsabilidades institucionais na universidade. Mas as discussões teóricas e políticas tinha lugar principalmente no departamento de sociologia, e muito mais com os estudantes do que com outros colegas. Era um meio apaixonante, bastante internacional, com estudantes vindos de todas as partes.

Isso dito, como aparece especialmente em seu último livro, Nicos tomava os filósofos e sociólogos não marxistas bastante a sério. Nós tivemos por exemplo trocas concernindo Max Weber, frente a quem ele foi realmente mais crítico que eu. Ele afirmou que Weber estava errado em insistir sobre a violência – o famoso “monopólio da violência legítima” – como critério de definição do Estado. Eu lhe repliquei que para Weber não é somente o monopólio da violência, mas o monopólio da violência legítima, que defini o Estado, a questão da legitimidade é então essencial para ele …..

Contretemps: Poulantzas evocava com você os debates internos no meio dos althuserrianos, com o próprio Althusser, ou com Etienne Balibar, por exemplo?

Michael Löwy: Não, não comigo, como eu disse, eu pertencia a outra tribo ….. Além disso, eu escrevi artigos altamente críticos contra Althusser. Eu tinha lhe dados esses escritos para leitura, ele respeitava meu trabalho crítico, sem certamente estar de acordo …..

Contretemps: Poulantzas tinha conhecimento e seguia os debates sobre sua obra que ocorriam em outros países, especialmente fora da Europa?

Michael Löwy: Ele certamente seguia o que se escrevia na Grã-Bretanha, na “nova esquerda”. Seu debate com Ralph Miliband, principalmente, é um momento importante dos debates marxistas sobre a natureza do Estado capitalista. Fora isso, eu acho que não. A América Latina, principalmente, onde seus escritos eram influentes, estava bastante distante de suas preocupações, com exceção da experiência chilena. Aquele que mais tarde se tornaria presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, tinha consagrado alguns artigos às suas ideias.

Nicos pensava antes de tudo em termos europeus, a Europa era para ele o lugar onde era preciso conceber as condições da transformação social.

Contretemps: Qual influência que Poulantzas tem em sua própria obra? Você foi estudante de Lucien Goldmann, um pensador cujo marxismo é o oposto daquele de Poulantzas ….

Michael Löwy: Poulantzas foi próximo de Goldmann e de Sartre em seus anos de juventude, antes de descobrir Althusser. Então ele não é completamente estranho a isso que Ernst Bloch chamava de “correntes quentes” do marxismo.

Em uma colóquio sobre a obra de Poulantzas na Grécia há 10 anos, eu apresentei um trabalho que dizia que a experiência do “orçamento participativo” no Brasil, em Porto Alegre, é um exemplo de combinação de democracia representativa e democracia direta no sentido de Poulantzas. Eu ainda acho que esta tese é justa. Recentemente, eu voltei a esta ideia em um pequeno livro escrito com Olivier Besancenot sobre a relação entre o marxismo e o anarquismo[6]. Ele inclui um capítulo onde nós discutimos as teorias anarquistas sobre a democracia direta, e onde nós mostramos que, na prática, os anarquistas sempre implementam formas de delegação ou representação.

Contretemps: A América Latina “bolivariana” também é hoje um lugar de hibridação de formas diretas e representativas de democracia …..

Michael Löwy: De fato, este é o caso notadamente da Bolívia, onde o poder dos movimentos sociais forçou a criação, através do governo do MAS de Evo Morales, de formas de democracia de base. É interessante notar a este respeito que Emir Sader, que eu mencionei no início, é alguém próximo de Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia e o principal teórico do regime. Claro, o contexto latino-americano atual é muito diferente daquele em que pensava Nicos: a Europa do fim dos Trinta gloriosos. Mas nós podemos dizer contudo que existe uma “afinidade eletiva” entre essas tentativas de entender e transformar o mundo…


[1] Sociólogo brasileiro (nascido em 1943) trabalhou como assistente de Nicos Poulantzas entre 1968 e 1969, quando viveu em exilio na França, antes de partir para o Chile. Ele á autor de numerosas obras sobre as sociedades brasileiras e latino-americanas, das quais A vingança da História e A nova Toupeira: Os Caminhos da Esquerda Latino-Americana (traduzidas para o inglês pela Verso em 2011). Ele é atualmente secretário executivo do Conselho Latino-Americano das Ciências Sociais (CLACSO).

[2] Ver Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo, reedição, Paris, les Prairies ordinaires, 2013.

[3] Ver Nicos Poulantzas, A crise das ditaduras, Portugal, Grécia, Espanha, Paris, Maspero, 1975.1975.

[4] Ver o site http://danielbensaid.org/

[5] “O Estado e a transição ao socialismo. Entrevista de Nicos Poulantzas por Henri Weber”, em Crítica Comunista (revista da Liga Comunista revolucionária), nº 16, junho de 1977.

[6] Ver Olivier Besancenot e Michel Lowy, Afinidades Revolucionárias: Nossas estrelas vermelhas e negras, para uma solidariedade entre marxistas e libertários, Paris, Mille et une nuits, 2014.

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