O vento e suas direções: notas sobre O vento do Leste (Grupo Dziga Vertov, 1970)

Por Alexandre Marinho Pimenta

“Há um ditado chinês que diz: ‘Ou o vento do Leste predomina sobre o do Oeste, ou o vento do Oeste predomina sobre o do Leste.'” Mao Tsé-Tung, discurso de 1957.


Em recente retrospectiva do cinema de Jean-Luc Godard que percorreu o país [i], pudemos de novo entrar em contato com a obra do grupo Dziga Vertov. Tal grupo, que incluía artistas militantes europeus como Jean-Pierre Gorin, é um dos maiores símbolos do cinema político de perspectiva revolucionária do ocidente e produziu obras como O vento do Leste, de 1970 [ii].

O filme é uma espécie de perlaboração [iii] política do grupo. Segue assim a máxima de outra artista militante daquela época, Nina Simone: “O dever do artista é refletir seu tempo”. Aqui o verbo refletir aparece em dois sentidos, ser reflexo de um meio, em primeiro lugar. Mas, também, meditar, produzir teses sobre esse meio, visando posicionamento e intervenção. A arte como veículo de protesto e possibilidade de reflexão.

Em psicanálise, perlaboração é o labor do aparelho psíquico que visa a apropriação e retranscrição das experiências. Labor invisível, com tempo próprio, mas fundamental para o destino das pulsões e excitações do sujeito. Retrabalhando o passado e o traumático se impede a repetição doentia e se sustenta a possibilidade de superação. Para Freud, esse mecanismo “efetua as maiores mudanças no paciente”[iv].

O que não se labora ameaça retonar, tanto para o sujeito, quanto para a história. Adorno falava que não elaborar o passado é viver à sua sombra. O desejo de obliterar esse trabalho é reacionário por si só: “O gesto de tudo esquecer e perdoar, privativo de quem sofreu a injustiça, acaba advindo dos partidários daqueles que praticaram a injustiça”.[v]

Perlaborar é necessariamente intervir; perlaboração histórica é também perlaboração prática. Novamente Adorno: “O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou”.

Pois bem, qual objeto dessa perlaboração em forma de filme? Arriscaríamos dizer: toda uma época. Época na qual o vento do Leste soprava forte sobre o Oeste do globo e que nos anos de 1968-9 francês e italiano entrou em uma de suas mais sérias catarses.

É preciso falar de 68 e de seu fracasso, eis o motivo de existência do filme. É preciso falar e integrá-lo ao todo: refletir e debater coletivamente sobre os acontecimentos e desafios. Fazer análise concreta da situação concreta, fazer com isso luta ideológica, ciência do processo revolucionário em curso – e seus inevitáveis reveses.

Sistematizar, repetir, testar, citar, didaticamente, até o limite das cartolinas e pincéis já habituais de Godard. Quais elementos da conjuntura? A greve. O delegado sindical pelego. As “minorias agitadas”. A assembleia geral. A repressão. A greve ativa. O Estado de Exceção. A autogestão. A teoria. Tudo está lá, traçado no papel. Para cada um deles uma encenação e uma rememoração: falas de patrões, militantes; cartas, panfletos. E depois retificar todo o movimento numa segunda parte do filme, questionando-se o ponto fundamental: a relação com as massas e o esquerdismo, lugares comuns na análise do movimento europeu da época… E que o próprio grupo não escapou (e descambou).

Há algo da ordem da saturação no filme. O grupo participou da rebelião e por isso mesmo não é possível capturar tudo de uma vez. A perlaboração é um labirinto sinuoso, cheio de entradas e saídas. No próprio ano de 68, Godard e outros já haviam explicitado isso no curta Cine-Track nº 1968: as fotos da rebelião urbana aparecem em silêncio. Só a imagem, parada, sem som, num estranho artesanato de recortes de jornal e anotações. Ouvir de novo os sons seria demais naquele momento. Já em O vento do Leste o que vemos é uma espécie de exílio do cenário urbano, já que a maior parte do filme se dá num pacato meio rural (um “western” ao avesso). Os personagens que ali atuam rememoram não só os fatos ocorridos há pouco, mas buscam integrá-los a toda história da rebelião e ilegalismo proletário e daí apontar para os desafios futuros – por isso suas roupas de várias épocas e lugares diferentes.

Foi preciso ir para o campo por uma necessidade subjetiva, mas também objetiva: filmar a greve de mineiros italianos como proposto inicialmente por Cohn-Bendit era impossível, pois ela já se findara. Foi preciso parar história para fazê-la continuar depois.

O embate entre som e imagem é constante, elemento que marcará definitivamente a obra de Godard [vi]. O grupo e Godard (como se diz explicitamente nos filmes Câmera-Olho, de 1967, ou em Sons Britânicos, de 1969) combatem principalmente o cinema americano, a estética do imperialismo, ou a própria imagem burguesa em si. No filme vemos o torcer da técnica, ou como se dizia à época, uma constante revolucionalização das forças produtivas. Elevar a política ao posto de comando: “fazer um filme politicamente e não um filme político” (Gordard citado por Miranda, 2010, p. 40)[vii]. Uma luta de/pela uma forma que ainda não é capaz de chegar às massas – e talvez nunca tenha alcançado seu objetivo.

Ao mesmo tempo que o filme pergunta onde estamos na luta de classes atual, onde nos inserimos, quais lições tiramos, pergunta também: onde nos inserimos na história do cinema revolucionário, qual seu papel, que nós, intelectuais, podemos fazer.

Uma das cenas mais famosas do filme é a participação de Glauber Rocha. O cineasta brasileiro, numa encruzilhada aponta os caminhos possíveis para o cinema. Aquele foi um momento de encontro e relação entre o grupo e Glauber, que representa o “terceiro-mundo”. Mas o transcorrer dos anos elevou sua presença ao patamar de algo desconfortável no filme. Pois Glauber se tornou cada vez mais um crítico feroz dos integrantes do grupo. Hoje ao assistirmos o filme, a imagem de Glauber anuncia e materializa os limites daquele grupo que depois viriam à tona quando do vento do Leste se recuou.

Em sua Autocrítica de um condenado da terra, sem data e escrito originalmente em francês, Glauber fala:

Godard, depois do maoísmo dziga-vertovista, virou pesquisador. Agora ele tem uma câmera de vários olhos da CIA. Nós não precisamos disso. O Cinema Novo veio para destruir Hollywood e a Nouvelle Vague. […] Godard, surpreendido por Solanas, tentou comer o Cinema Novo dizendo (com o grupo Dziga Vertov): Glauber Rocha é um cineasta progressista. […]. Em 1969, Godard vem me ver na casa de Gorin e me diz, como se ele fosse o chefe de uma revolução (ele dava uma de Trotzky traído): é preciso destruir o cinema!! É, Jean-Luc, é preciso destruir o Cinema Novo. [viii]

Olhar tudo nisso em momento que o vento do Oeste quase toca seu próprio rabo pode parecer um pouco distante. Mas não foi por nostalgia que muitos foram às salas de cinema. Elas sentem que mais do que nunca há perlaboração histórica a ser feita e que os ventos ainda mudam de direção.


[i] http://culturabancodobrasil.com.br/portal/retrospectiva-jean-luc-cinema-godard/

[ii] O filme teve colaboração também de Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil da rebelião de 68.

[iii] Perlaboração, segundo Roudinesco e Plon, é um neologismo introduzido por psicanalistas franceses para traduzir o verbo alemão durcharbeiten (elaborar, trabalhar com cuidado) usado por Freud. Ver Dicionário de Psicanálise, Zahar.

[iv] http://www.freudonline.com.br/livros/volume-12/vol-xii-7-recordar-repetir-e-elaborar-novas-recomendacoes-sobre-a-tecnica-da-psicanalise-ii-1914/

[v] http://adorno.planetaclix.pt/tadorno14.htm

[vi] Ver: http://www.contracampo.com.br/75/grupodzigavertov.htm

[vii] http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000778313

[viii] http://www.tempoglauber.com.br/t_autocritica.html

 

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