Democracia e suas vicissitudes

Por Daniel Alves Teixeira, membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia

Desde a modernidade tem-se a impressão de que a democracia e o capitalismo andam juntos, como se fossem dois fenômenos concomitantes e necessários um ao outro. Existe verdade nesta afirmação, mas, se assim o é, também podemos afirmar que nem sempre o foi, que sua relação foi marcada por profundos conflitos que se fazem presentes até hoje. Na história do capitalismo, encontramos também momentos marcados por regimes de exceção e totalitarismo, como as ditaduras no América do Sul, os regimes fascistas da Europa e, mais recentemente, o capitalismo de Estado chinês. Essa certa oscilação, entre regimes democráticos e outros totalitários, é uma demonstração das contradições e conflitos estruturais que acompanham a disseminação do modo de produção capitalista pelo mundo.


Assim, diante de tal histórico de “exceções” que  acompanha a evolução da democracia moderna, a situação atual de nossa conjuntura política, em que a normalidade democrática que vigorou desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 se vê novamente “suspensa” pelo poder político e econômico dominante, não deveria nos surpreender tanto, como também a simples afirmação da repetição do mesmo pode impedir uma análise mais crítica da situação.

Primeiramente, é importante notar como a democracia moderna segue, em muitos aspectos, as mesmas estruturas ideológicas e conceituais que serviram de alicerce para a formação do Estado burguês, sendo assim pautada pelos mesmos princípios e interesses. A separação do privado e do público, do político e econômico, da sociedade civil e do Estado, como também a formalidade jurídica e a propriedade privada são os elementos que configuram também a democracia moderna. A ideologia de mercado vai servir então como verdadeiro espelho para a configuração do espaço político burguês, de sorte que a democracia moderna será a forma política que servirá com maior precisão aos seus anseios de liberalismo econômico, ao menos em seus momentos mais “prósperos”, e somente na medida em que esteja de acordo com tais anseios.

“Nas condições capitalistas, a igualdade formal de todos os indivíduos – ou mais precisamente, dos cidadãos – enquanto proprietários de mercadoria em concorrência no mercado, torna-se pela primeira vez na história uma realidade material. Liberdade e igualdade adquirem assim uma base econômica e proporcionam às ideias do Iluminismo uma eficácia geral. A separação em curso entre o ‘Estado’ e a ‘sociedade’, entre ‘política’ e ‘economia’ torna-se a condição decisiva para a instauração de relações de representação democráticas. Somente quando o Estado, como aparelho de força política centralizado, separa-se formalmente da sociedade, e de suas relações de desigualdade e poder, quando o poder econômico e social não é mais diretamente idêntico ao poder político, pode submeter-se a dominação a um controle político democrático.” [1]

É por razões estruturais, oriundas dos próprios mecanismos de exploração do trabalho pelo capital e de sua ideologia mercadológica que a democracia será em um primeiro momento a forma política “ideal” para a burguesia. A universalização do sujeito de direito e das liberdades civis, com a concomitante separação entre o Estado e a sociedade civil, permite que as relações sociais e as subjetividades assim constituídas se voltem para a troca de mercadorias e a busca do ganho privado, relegando o espaço político para os representantes eleitos e concursados do Estado e seus aparelhos. Neste ponto, a separação ideológica entre o econômico e o político é essencial. Enquanto naquele reina o liberalismo de mercado e a exploração da mais-valia, neste o Estado democrático se torna um regulador dos conflitos e desigualdades sociais resultantes do sistema capitalista de produção, ao mesmo tempo em que legitima a ordem dominante através de eleições “livres” e “independentes”.

“Os agentes econômicos são tornados sujeitos de direito e, como extensão dessa subjetividade para o plano político, cidadãos. Tal qualificação dos direitos políticos granjeia o acesso ao Estado segundo direitos, deveres, garantias, poderes e obrigações estatuídos juridicamente. Trata-se de um investimento à vida política nos termos da atribuição jurídica para tanto. Seu locus fundamental é o direito, desdobrado no plano eleitoral e no plano da constituição e do resguardo da subjetividade mínima suficiente à reprodução do capital. Sendo cidadãos, os sujeitos de direito se tornam aptos a votar e a serem votados. Na amarra jurídica necessária ao capital, a liberdade negocial, a igualdade formal e a propriedade privada formam o esteio da ação política.” [2]

O neoliberalismo encontra então na democracia uma de suas principais ferramentas ideológica. As movimentações e contestações sociais passam a ter que obedecer ao processo democrático como condição de legitimidade, mas neste mesmo processo perdem seu caráter subversivo ao terem que se submeterem aos valores ditos “democráticos”, como a propriedade privada e a lei estatal. A separação entre o público e o privado opera também neste momento como ponto de separação e proteção da esfera mercantil privada dos conflitos políticos e sociais a ela subjacentes, apartando-os das relações materiais e levando-os ao espaço “neutro” do Estado, formando assim um processo de resolução contínuo e fragmentado dos conflitos sociais que impede uma verdadeira contestação das formas capitalistas. “A democracia, do modo como a palavra é usada hoje, diz respeito, acima de tudo, ao legalismo formal: sua definição mínima é a adesão incondicional a um determinado grupo de regras formais que garantem que os antagonismos sejam totalmente absorvidos pelo jogo agônico.” [3] Alysson Mascaro chega à conclusão semelhante em Estado e forma política:

“A democracia, lastreada no direito e nas formas de sociabilidade capitalista, representa tanto um espaço de liberdade da deliberação quanto um espaço interditado às lutas contra essas mesmas formas. Por isso, a democracia representa o bloqueio da luta dos trabalhadores mediante formas que não sejam aquelas previstas nos exatos termos jurídicos e políticos dados. Exclui-se, com isso, a possibilidade da luta que extravase o controle e o talhe do mundo estatal e de suas amarras jurídicas. A ação revolucionária é interditada.” [4]

Por outro lado, os mecanismos eleitorais, como o financiamento privado das eleições, que submete a maior parte dos candidatos aos interesses das grandes forças econômicas, garantem que somente ocuparão o Estado os indivíduos compromissados com os valores e instituições do capital, ao mesmo tempo em que criam uma aparência de “liberdade de escolha” e “participação popular” no poder. Embora as eleições democráticas realmente alterem as correlações de força e modifiquem os direcionamentos básicos dos governos em alguma medida, deixam incólumes as estruturas fundamentais de exploração do capital. Slavoj Žižek vai ainda mais longe e demonstra a aproximação existente entre a forma democrática eleitoral atual e a forma mercadoria em que se fundamenta, ainda que inconscientemente, a sociedade liberal.

“Entretanto, a maior ameaça à democracia nos países democráticos de hoje não reside nesses dois extremos, mas na morte do político por meio da ‘mercantilização’ da política. O que interessa aqui não é, em primeiro lugar, o fato de que os políticos são embalados e vendidos como mercadorias nas eleições; um problema muito mais profundo é o fato de que as próprias eleições são concebidas como compra de mercadoria (no caso, o poder): envolvem uma competição entre partidos-mercadoria diferentes e nossos votos são o dinheiro que compra o governo que queremos. O que perdemos nessa visão da política como apenas mais um serviço que compramos é a política como um debate público partilhado das questões que dizem respeito a todos nós.” [5]

É costume e parte substancial de nossa ideologia cotidiana opor a democracia aos regimes totalitários do século XX, como o fascismo, o nazismo e o stalinismo. Enquanto aquele é o reino da liberdade e igualdade, onde todos os indivíduos são igualmente sujeitos de direito e autônomos em suas decisões, estes foram o horror das tentativas de imposição de uma ordem institucional hierárquica, culminando assim em regimes de exceções responsáveis pelas piores atrocidades da história da humanidade. Como se não fossem os belos regimes democráticos do ocidente responsáveis também por grande parte dos mesmos acontecimentos e muitos outros que ainda persistem até os dias de hoje.

Uma análise mais atenta pode demonstrar o que fica obliterado nesta oposição muito abrupta entre a democracia e o totalitarismo. Na democracia os conflitos são colocados “em segundo plano”, entendidos como questões pontuais e contingentes dos movimentos de expansão e contração econômica em si neutros ou “naturais”, a serem resolvidas através dos ordenamento e instituições estatais ou para-estatais. Desta forma institucionaliza-se o conflito para torna-lo inócuo e evitar investigações mais profundas acerca de seus fundamentos sociais na forma capitalista. O fascismo, pelo contrário, admite a existência do conflito, mas desloca-o das contradições do capitalismo para inimigos exteriores, tais como outros Estados ou nações, ou em casas mais extremos em credos e raças, como a figura do judeu para os nazistas, criando assim uma falsa harmonia social.

“(…)se a proposta da democracia (institucionalizada) é integrar a própria luta antagônica no espaço institucional/diferencial, transformando-a em agonismo regulamentado, o fascismo segue o sentido oposto. Embora o fascismo, da maneira como age, leve a lógica antagônica a extremos (falando de ‘luta até a morte’ contra os inimigos e sempre mantendo, mas não concretizando, a ameaça mínima e extrainstitucional de violência, de ‘pressão direta do povo’, contornando os complexos canais legais e institucionais), ele postula como meta político exatamente o oposto, um corpo social hierárquico e extremamente ordenado (não admira que sempre recorra a metáforas corporativistas e organicistas). Este contraste pode ser habilmente explicado nos termos da oposição lacaniana entre o ‘sujeito do enunciação’ e o ‘sujeito do enunciado (conteúdo)’: embora a democracia admita a luta antagônica como meta (em lacanês, como enunciado, conteúdo), seu procedimento é sistêmico-regulado; o fascismo, ao contrário, tenta impor a meta da harmonia hierarquicamente estruturada por meio de um antagonismo desregrado.” [6]

De tal sorte que os regimes totalitários não são exceções ao funcionamento “normal” do capitalismo e do liberalismo econômico, que seriam em si democráticos e ou “neutros”, mas consequências mesmo do avanço do modo de produção capitalista e das contradições dele resultantes. Em todos os momentos que as reivindicações sociais e as lutas políticas ameaçam as estruturas da exploração capitalista, as amarras jurídicas e estatais são acionadas para a proteção destas mesmas estruturas políticas e ideológicas. As ditaduras não são as exceções ao regime capitalista de produção, mas momentos por vezes necessários, e sempre potenciais, em sua contraditória trajetória de consolidação global.

“Por isso, não há de se pensar que o modelo político democrático seja uma regra que comporta uma eventual exceção ditatorial ou fascista. O capitalismo se estrutura necessariamente nessas polaridades, incorporando a exceção como regra. Não há experiência de superação das explorações capitalistas granjeada por meio democrático-eleitoral. Toda vez que a sociabilidade capitalista pode ser superada, mecanismos políticos antidemocráticos se apresentam e interferem nesse processo. As formas necessárias à reprodução do capitalismo têm peso estrutural determinante contra as eventuais formas políticas democráticas destoantes. Se o capitalismo porta a democracia como forma política típica, porta no mesmo grau e do mesmo modo a ditadura e os fascismos como suas formas políticas típicas para o caso de disfunção de algum de seus mecanismos.” [7]

Assim, em que pese as substanciais diferenças entre os regimes democráticos e os totalitários, ambos são igualmente mistificadores do conflito que envolve as relações sociais no capitalismo. De um lado, o jogo agônico e a falsa atividade da democracia. De outro, o antagonismo exacerbado da paranoia fascista. O que fica obliterado nesta oposição é exatamente a luta de classes, em torno da qual se estruturam, dinamicamente, a política, a economia e os conflitos sociais. Para melhor explicar esta relação entre a luta de classes e os processos políticos, devemos nos voltar para a questão da separação entre o econômico e o político operada pelo liberalismo, mas que talvez tenha sua versão marxista na tentativa de separação superestrutura ideológica “ilusória” e a infraestrutura da produtividade “real”. Isto porque, para Slavoj Zizek, a política e a economia não são dois pares opostos ou isolados, com determinações próprias. Muito antes, ambas relacionam-se e determinam-se reciprocamente.

“A política, portanto, é nome da distância entre a ‘economia’ e ela mesma. Seu espaço se abre com a lacuna que separa o econômico, como Causa ausente, da economia em sua ‘determinação oposicional’, como um dos elementos da totalidade social: há política porque a economia é ‘não-todo’, porque o econômico é uma pseudocausa impossível e ‘impotente’. O econômico, portanto, inscreve-se duplamente aqui, no sentido exato que define o Real lacaniano: é o núcleo duro ‘expresso’ em outras lutas por meio de deslocamentos e outras formas de distorção e, ao mesmo tempo, o princípio estruturante dessas distorções.” [8]

Diante desta relação intrínseca entre o a economia e a política, podemos dizer que se a democracia e o totalitarismo possuíam formas políticas diferentes, tal se dava mais em relação aos dilemas da representação estatal e da legitimidade do poder instituído. No nível econômico, seguia-se a mesma estrutura de exploração capitalista como política de produção e organização social. Assim, se na democracia temos a despolitização da vida social e a consequente fetichização ideológica do mercado, entendido como algo natural ou “auto-regulado”, o totalitarismo provoca uma falsa superpolitização da sociedade (contra “inimigos exteriores”) para obliterar e permitir a continuidade da forma capitalista de produção. Dois lados da mesma moeda que não dão conta dos problemas estruturais oriundos da sociabilidade capitalista.

“Por outro lado, a política ‘pura’, ‘descontaminada’ pela economia, é igualmente ideológica: o economicismo vulgar e o idealismo político-ideológico são dois lados da mesma moeda. A estrutura aqui é a de uma volta para dentro: a ‘luta de classes’ é a política no âmago do econômico. Ou, para explicar de maneira paradoxal, pode-se reduzir todo o conteúdo político, jurídico cultural à ‘base econômica’, ‘decifrando-o’ como sua ‘expressão – tudo, exceto a luta de classes, que é a política no econômico em si.” [9]

A quase completa naturalização da economia capitalista nos tempos de neoliberalismo levará Slavoj Zizek há afirmar que é hora de “devolver ao domínio ‘econômico’ a dignidade de Verdade, o potencial para Eventos.” [10]. Para pensarmos então uma intervenção política no domínio econômico, teremos de pensar uma democracia para além da simples representação parlamentar, que intervenha concretamente nas formações das decisões coletivas, políticas e econômicas, dando corpo e voz direta aos excluídos e explorados como protagonistas na política.  Mas a lição de Zizek é clara. A inclusão dos excluídos no espaço político não pode se dar pelas vias “normais” do Estado e do direito, sob pena de perder seu valor subversivo. A presença direta dos excluídos nos domínios do poder só pode ocorrer na forma de terror revolucionário igualitário.

 “O problema, portanto, é: como regulamentar/institucionalizar o próprio violento impulso democrático igualitário, como impedi-lo de afogar-se na democracia no segundo sentido da palavra (procedimento regulamentado)? Se não houver meio de fazê-lo, então a democracia ‘autêntica’ continua a ser uma explosão utópica momentânea que, no famoso dia seguinte, tem de ser normalizada. Aqui, a dura consequência que se deve aceitar é que esse excesso de democracia igualitária sobre o procedimento democrático só pode ‘institucionalizar-se’ sob o disfarce de seu oposto, como terror democrático-igualitário.” [11]

Ou seja, o aspecto “terrorístico” da democracia-igualitária está na suspensão das hierarquias e instituições estatais comuns para que aqueles que normalmente tem como única subjetividade política reconhecida a condição de votante exerçam diretamente o poder, contornando os mecanismos de representação. Esta possibilidade de torção ou ruptura do espaço político ordinário é justamente a dimensão “excessiva” da democracia que sua forma representativa e institucionalizada estatal visa continuamente sufocar. Não à toa os políticos parlamentares sempre gostam de nos lembrar sua condição de “representantes” do “povo”, pelo que desnecessária a criação de quaisquer tipos de mecanismos que busquem possibilitar o exercício direto do poder pelos representados.

Nossa tarefa hoje não seria, portanto, ao invés de lamentar as reiteradas “exceções” ao regime democrático, o desenvolvimento de uma teoria crítica que elabore melhor a relação da democracia com esta dimensão “excessiva”, em verdade constituinte do poder político e econômico enquanto tal?


[1] Hirsch, Joachim. Teoria Materialista do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renavan, 2010, p. 91.

[2] Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.85.

[3] Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 267.

[4] Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.87.

[5] Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 286.

[6] Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 284.

[7] Mascaro, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, Ed. Boitempo, 2013, p.88.

[8] Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 293.

[9] Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 295.

[10] Zizek, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo, Ed. Boitempo, 2008, p. 431.

[11] Zizek, Slavoj. Em defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Ed. Boitempo, 2011, p. 269

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