Quem é o Nuit Debout?

Por Frederico Lyra de Carvalho

A Nuit Debout critica o governo e a polícia, enquanto que o “Je suis Charlie” é um claro suporte ao governo e foi mesmo incentivado por este. Este último era uma defesa da liberdade de expressão contra os islamistas, aplaudido por chefes de Estado e pelo aparato policial. Por outro lado, o Nuit Debout se posiciona contra o medo imposto pelo estado e contra a natureza coercitiva da polícia.


Desde o dia 31 de março [1], ocorre na cidade de Paris, uma ocupação diária na Place de la République [2]. Apesar de certo atraso, podemos colocar esta ocupação na linhagem dos movimentos de 2011. O Nuit Debout nasce de um posicionamento contra a proposta de uma nova lei do trabalho (lei El-Khomri), contra o medo imposto pelo estado e contra a natureza coerciva da polícia. Podemos olhar a situação atual na França a partir de dois eventos recentes, separados por um pouco mais de um ano: o “Je Suis Charlie”, reação ao atentado de 07 de janeiro de 2015 à sede do jornal Charlie Hebdo e o Nuit Debout. Do atentado do dia 13 de novembro falaremos mais adiante.

Podemos considerar cada evento como uma posição ou categoria política: “Je Suis Charlie” e “Nuit Debout” para fazermos uma classificação da atual subjetividade política na França. Desta forma poderemos utilizar estas duas categorias para dividir o conjunto dos franceses em três grandes grupos: (1) os que são pelo Charlie e contra a Nuit Debout. (2) os que são a favor do Charlie e também a favor da Nuit Debout (3) os que são contra o Charlie e a favor da Nuit Debout. Haveria uma quarta possibilidade: ser contra o “Je suis Charlie” e também ser contra o Nuit Debout. Não iremos discutir tal posição, próxima de um certo nihilismo ou “fora todos” infelizmente ainda comum no Brasil, por, além de tudo, ela não parecer subjetivar politicamente parte significativa da população.

A primeira categoria parece englobar aqueles que dão suporte ao Front National, ao Partit Républican (ex-UMP) – partido do ex-presidente Sarkozy – e mesmo uma parte do PS, aquela mais ligada ao governo. Aquela que vem defendendo com unhas e dentes a El-Khomri. São aqueles que acreditam nesta República e nos seus valores. Aqueles que ainda guardam um certo apreço pelo colonialismo e abraçam completamente a forma neoliberal do capitalismo. Esta é, aparentemente, a subjetividade  majoritária na França. Aqui, além do ex-presidente acima evocado, convivem de mão dadas a família Le-Pen, o primeiro ministro Manuel Valls e o atual presidente François Hollande. A segunda categoria seria a que contém a parte da esquerda que ainda acredita na República. Ela integra figuras como o eterno candidato do Front de Gauche, Jean-Luc Mélenchon, o PCF e a outra parte do PS. No âmbito europeu este grupo parece convergir com Yanis Varoufakis e Thomas Piketty na busca por um capitalismo com a face humana. Por último, o terceiro grupo seriam aqueles que, de forma geral, não acreditam mais nem na República nem nos partidos e nem sistema eleitoral. Essa França ainda é minoritária mas está começando a sair de casa e perceber que muitas das coisas correntes do seu cotidiano são parte da ideologia dominante, ela está tentando sair do beco em que se encontra a décadas.

A Nuit Debout critica o governo e a polícia, enquanto que o “Je suis Charlie” é um claro suporte ao governo e foi mesmo incentivado por este. Este último era uma defesa da liberdade de expressão contra os islamistas, aplaudido por chefes de Estado e pelo aparato policial. Por outro lado, o Nuit Debout se posiciona contra o medo imposto pelo estado e contra a natureza coercitiva da polícia. Em um certo sentido, ocupando dia após dia a Place de la République desqualifica a enorme manifestação que, na noite do atentado ao Charlie, se dirigiu àquela praça e a transformou num mausoléu, que foi re-transformado simbolicamente pelo Nuit Debout em um local de luta. Mas este também não deixa de ser um local paradoxal, pois ali é a praça que também representa a França colonial, esta que está sendo colocada em xeque pela Nuit Debout.

Evidentemente existem vários limites no movimento. Frédéric Lordon, principal ideólogo da Nuit Debout, por exemplo, parece ter uma visão muito restrita da França, não conseguindo perceber a universalidade negativa do capital em que o país está envolvido até o pescoço e que a impede de mudar o sistema sozinha ou de viver fora dele. Na cabeça de Lordon, o mundo ou ao menos a Europa seguiria a França caso esta conseguisse se emancipar. Mas, não parece ser o caso para nenhuma das opções envolvidas. Como nos lembram Pierre Dardot e Christian Laval, cada vez faz menos sentido movimentos emancipatórios se reclamarem de um território limitado [3]. Felizmente o Nuit Debout parece mais próximo de Dardot e Laval que de Lordon, tendo organizado, entre outros: um Global Debout, um Palestina Debout, um Brasil Debout, etc. Jornadas que tem como tema a discussão e reflexão de lutas fora da França.  Além disso, até o momento nem os partidos, nem movimentos tradicionais de esquerdas e nem os sindicatos conseguiram intervir eficientemente na Nuit Debout. Eles passaram por lá, observaram a movimentação mas não conseguiram se apropriar da noite. Por outro lado, dentre esses, vários são os que criticam ferozmente o movimento., sem nem ao menos perceber que, com todos os limites que tem, o Nuit Debout ao menos ensaiou interromper a circularidade política da França.

Também podemos tentar observar a Nuit Debout através da questão do voto. Esta parece ser uma forma pertinente de entender por outro ângulo o que lá acontece. Na place parece existir um ‘fetiche’, no sentido comum do termo, do voto: tudo é colocado em votação, mas de forma passiva. O que é votado se esgota na Assembleia Geral, como se ali fosse um local sagrado e onde as decisões devem permanecer. A democracia surge como uma exigência formal: o importante é estar presente em corpo e, em um segundo momento, tomar a palavra e participar das comissões. Todavia, é verdade que há uma enorme diversidade de comissões, desde feministas passando por critica de economia política, indo para a ecológica e chegando nos advogados debout, e em todas ocorrem verdadeiras e interessantes discussões.  Porém, como remarcou Jacques Rancière há uma falta de demanda clara, de palavras de ordem ou declarações por parte do movimento. Segundo ele, isso demonstra o limite do simples “estar junto”, ou do “tamos juntos” presente na linguagem coloquial da camaradagem, que pode representar falta de problematização e reflexão do porquê de estar juntos e, sobretudo, do porquê de não estar. Ao mesmo tempo, há uma certa complacência em, a priori, aceitar “todo mundo” – obviamente, excetuando-se os fascistas de sempre. A noite, não parece haver um tratamento ou problematização das contradições e antagonismos, que não são postos à prova do conflito e tomam a forma de uma unanimidade disfarçada. Parece haver uma constelação de demandas sem endereçamento na Nuit Debout. Talvez para aqueles que ocupam a praça, o mais importante seja mostrar que ‘estão juntos’, e só.

Um dos eventos mais interessantes que acontece na praça é a Orquestre Debout. Esta já foi reunida quatro vezes, sendo que na última, que ocorreu dia 04/06, foi tocada a música “Apesar de Você” de Chico Buarque como uma forma de demonstrar solidariedade com o momento atual do Brasil [4]. A orquestra é formada, em sua maioria por músicos amadores e se reune para ensaiar poucas horas antes do concerto. Como observou o Le Monde, não deixa de ser curioso que um movimento de ocupação se expresse musicalmente na forma de uma orquestra sinfônica e não, por exemplo, com fanfarras ou grupos de rock ou rap – é verdade que houveram concertos de rock no inicio, mas não suscitou engajamento nem repercussão igual à orquestra. Por mais paradoxal que possa parecer, a percepção geral é de que “a música clássica tem uma especificidade em relação ao restante da oferta cultural, é que ela continua a escapar à lógica do mercado” [5]. Uma coisa é certa, de todas as formas de música ela é a que mais depende de subsídios do estado. Por outro lado, a orquestra é a formação musical que, assim como um coral de vozes, pode ser entendida como a mais igualitária de todas. É uma formação onde cada participante , inclusive o regente [6], é anônimo e necessário, além de possuir um peso igual, para que a música aconteça. Mesmo que alguns só toquem uma única nota durante todo um concerto, aquela simples nota é fundamental para o desenrolar da composição. Em uma composição de 30 minutos, medir a importância de um instrumento por ele ter tocado em 20 dos 30 e um outro apenas 3 minutos seria uma visão deveras simplista do processo.

Por fim, embora a apropriação do tempo, com a criação de um calendário onde o mês de março não termina nunca, seja um sinal de ‘subjetivação temporal’ que sinaliza que, para se mudar o sistema, precisamos mudar a forma de lidar com o tempo; no final das contas não está claro se o movimento é ou não anticapitalista ou anti-sistêmico.  Seria o Nuit Debout um tímido grito em busca de um local e uma outra forma de tratamento na velha e atual França?  Querem eles apenas serem tratados de outra forma na atual República? Seria um movimento por uma nova República? Ou outra coisa completamente diferente? São perguntas que após mais de dois mêses de movimento seguem sem resposta. Por outro lado, talvez esta não clarificação e indecisão seja um dos aspectos mais interessantes do movimento, uma novidade a ser pensada. Talvez uma tentativa de repensar tudo do inicio, ou de tentar fazer tudo do início? É possível que a Nuit Debout falhe. Mas, exatamente por este excesso de indeterminação, a reapropriação da falha pode ser determinante para a sequência da luta na França.


[1] Parte importante deste artigo foi originalmente apresentada uma seção da comunicação: “Um limite democrático: Grécia, França, Brasil”, apresentada em parceria com Patrícia Ferreira Lemos no colóquio Psicanálise & Comunismo que ocorreu na USP no dia 13 de maio de 2016. Além disso devo muito às discussões e trocas com Cécile Winter, Sina Badiei, Elahé Convidassame, Naji El Khatib, Elodie Mollet, Jean-Marc Roger e com quem pude cruzar na Nuit Debout.

[2] Um primeiro artigo onde fiz um balanço inicial do que era o Nuit Debout foi publicado aqui mesmo no Lavra Palavra: https://18.118.106.12/2016/04/20/nuit-debout-de-pe-por-todas-as-noites/

[3] DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian, Le cauchemar qui ne fini jamais, Paris, La Decouverte, 2016.

[4] Tocar uma música de 50 anos, uma das mais marcantes da Ditadura militar, a mesma desde sempre quando a esquerda precisa cantar junta uma música contra qualquer pessoa, nos parece revelar um grave sintoma do momento presente. Afinal, não tem nenhuma outra música possível para tal situação?

[5] http://modesdevivre.blog.lemonde.fr/2016/05/09/musique-classique-a-nuit-debout-a-t-on-bien-mesure-ce-qui-se-joue/

[6] O problema geralmente ocorre quando, ao invés do regente, na sua indispensável função para o bem desenrolar da música, se submeter à música, submete a música ao seu nome.

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