Os novos muros invisíveis da globalização capitalista

Por Slavoj Žižek, via Euronews, traduzido por José Mauro Garboza Junior, membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia – CEII

“A única solução que posso imaginar é  articular um tipo de luta compartilhada, para que o problema não seja apenas aquele do humanitarismo, “nós iremos receber refugiados ou não?”. Mas o problema é que há uma certa raiva na Europa, como o declínio do estado de bem-estar e assim por diante. O que incomoda as pessoas da Europa é parte da mesma crise: desequilíbrio do capitalismo global.”


Sergio Cantone: De acordo com você, a globalização é uma das fontes primárias da atual crise migratória. Por quê?

Slavoj Žižek: Eu acho que a outra face da globalização é a construção de novos muros invisíveis. Nós temos desempregados, nós temos trabalhadores precários, mesmo aqui na Eslovênia. Eu li em algum lugar que quase a metade dos trabalhadores já trabalham somente precariamente. Você tem países falidos, você tem aqueles que vivem em favelas, que são excluídos.

Então não há mais a velha distinção clara de classes, é uma distinção muito mais vaga entre aqueles que estão dentro, aproveitando uma segurança básica, cheios de direitos civis e assim por diante e aqueles que estão fora. Nós precisamos de algum poder transnacional para forçar mais decisões globais. A ecologia não pode ser salva, os casos de migração não podem ser salvos sem tais mecanismos.

SC: Mas a União Europeia deveria lidar com esse tipo de assuntos transnacionais. Só que ela falhou. Eles não estão fazendo isso.

SŽ: Sim, é essa a tragédia da União Europeia. A Europa não sabe o que quer. Hoje, nós temos basicamente duas Europas. Uma Europa é essa Europa tecnocrática de Bruxelas – e mesmo eles querem apenas ser parte do mercado global de alguma forma, eles não passam uma ideia clara”

E então nós temos a Europa populista anti-imigrante; eu acho que essa é a verdadeira ameaça para a Europa. Eu não estou realmente com medo de uma invasão em massa; nós vamos lidar com isso. Eu tenho realmente temo bastante aqueles que querem defender a Europa nos dias de hoje. Uma Europa onde, por exemplo, Le Pen está no poder na França, e por aí vai, continuará a ser a Europa que todos conhecemos – e eu espero – amamos? A Europa de hoje ainda vai sustentar alguns valores emancipatórios, como segurança social, igualdade, direitos das mulheres, e assim por diante.

SC: Por que as enfraquecidas classes trabalhadoras e também as classes médias ocidentais deveriam se juntar a luta das massas empobrecidas de outros continentes?

SŽ: Você está fazendo uma pergunta aberta muito importante que muitos esquerdistas evitam, sabe. Porque… as pessoas ordinárias que tem medo dos imigrantes, em certo sentido elas tem um ponto. Se a Europa se abre totalmente para os imigrantes não são os ricos que sofrerão, são elas que terão menos empregos, provavelmente salários menores e tudo mais

Então, a única solução que posso imaginar é encontrar, deixar claro, ou articular um tipo de luta compartilhada, para que o problema não seja apenas aquele do humanitarismo, “nós iremos receber refugiados ou não?”. Mas o problema é que há uma certa raiva na Europa, como o declínio do estado de bem-estar e assim por diante. O que insatisfaz as pessoas da Europa, o que as incomoda, é parte da mesma crise: desequilíbrio do capitalismo global.

E isso é absolutamente crucial, que de algum modo nós conectemos nossas lutas com as lutas deles. Se não aceitarmos isso, se permanecermos nesse nível – refugiados estão chegando aqui, eles são fardos e assim por diante – então estaremos perdidos. Nós precisamos de organismos transnacionais capazes de tomar decisões muito fortes.

SC: Com capacidade para a aplicação forçada da lei?

SŽ: Com certeza, eu não tenho problema algum aqui.

SC: Mas aqui é a União Europeia, e essa ideia é rejeitada …

SŽ: E é isso que me deixa muito triste. Digo, tudo bem ela ser rejeitada. Mas qual é a alternativa? Eu não vejo a alternativa. Porque se renunciarmos a isso e jogarmos o jogo dos estados nacionais mais fortes assim como … essa é a ideia na Inglaterra.

SC: Mas o problema lá não é Bruxelas, é a globalização…

SŽ: “É o que você disse, é por isso que eu não…”

SC: A crise do estado de bem-estar não é devido a… Bruxelas é a adaptação…

SŽ: Os críticos de Bruxelas frequentemente ignoram o quanto Bruxelas não é apenas essa má burocracia global. Bruxelas também impõe certos padrões mínimos de trabalho, e por aí vai, jornada máxima de trabalho, e tudo mais. Então, é precisamente por isso que eu ainda acho que a batalha deveria ser travada dentro da União Europeia.

SC: Donald Trump. O fenômeno de Donald Trump. Então os EUA estão enfrentando um tipo de período revolucionário?

SŽ: É claro, Trump é pessoalmente repugnante, com piadas racistas, vulgaridades e assim por diante. Mas ao mesmo tempo você notou como ele disse algumas coisas bem certas sobre a Palestina e Israel? Ele disse que também deveríamos ver os interesses palestinos e abordar a situação de uma maneira mais neutra. Ele disse que nós não deveríamos apenas antagonizar a Rússia, mas encontrar um diálogo ali. Ele até foi a favor de maiores salários mínimos. Ele insinuou que não iria simplesmente cancelar o sistema de saúde universal de Obama, Obama care

SC: Ele é um centrista liberal …

SŽ: Sim! Esta é minha tese provocativa! De que se você retirar essa superfície ridícula e, eu admito, perigosa, ele é um candidato muito mais oportunista e sua política real talvez não será tão ruim.

SC: A Rússia, e também a China, representam um modelo diferente de economia, de organização econômica e política, uma alternativa que poderia antagonizar o modelo ocidental?

SŽ: Sim, mas nesse caso estou totalmente do lado do Ocidente – moderadamente. É porque ela realmente pode ser uma alternativa, mas é simplesmente uma alternativa capitalista autoritária proto-fascista. Eu sei disso muito bem, estive na China, debati com eles, e todas aquelas justificativas confucianas aparentemente sutis do regime comunista, seu ponto é sempre o mesmo: ‘nós não podemos lidar com a democracia, isso significaria explosão social, precisamos de algum tipo de …’. Eles sempre usam esses termos fascistas sem perceber. Nós precisamos de alguma estabilidade corporativa na qual qualquer um ou qualquer uma está em seu lugar, deve haver uma ordem garantindo a solidariedade e assim por diante. Então, eles querem uma modernização conservadora. E infelizmente o capitalismo está indo nessa direção, eu afirmo.

SC: Posso te fazer uma última pergunta. É uma pergunta pessoal.

SŽ: Meu deus, eu acho que não sou uma pessoa, eu sou um monstro…

SC: “Você disse sobre você mesmo que você é o Elvis da filosofia. Isso é …”

SŽ: “Não, eu não disse. Eu odeio isso! Você está falando agora como um inimigo, e quando nós, o povo, tomarmos o poder, nós iremos … você pegará o Gulag por cinco anos! Por cinco anos, sim. Isso tudo é conversa das pessoas que querem me atacar de uma forma muitos mais inteligente do que ataques diretos: ‘Eu sou um stalinista louco, confuso…’ Sabe, eles admitem que eu tenho uma certa popularidade, mas essa estratégia… basicamente a mensagem disso, eu ser o Elvis é ‘olhe, ele é um cara divertido, você pode escutá-lo, mas é uma filosofia pop, uma piada, não leve a sério’, e assim por diante.”

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