O futuro de uma esquerda sem futuro

Por Silvia Ramos Bezerra e Joelton Nascimento

Por uma esquerda sem futuro é uma provocação instigante. O curto ensaio de TJ Clark lança-nos a questão tão atual no Brasil contemporâneo, pois, para o autor, “o uso (…) da palavra esquerda remete, claro, a uma tradição política de que quase já não há traço nos governos e oposições que temos hoje”. E daí temos a constatação do caráter trágico de uma política que concebe um futuro (decente) pós-capitalismo. Nosso propósito é então pensar a questão do futuro como horizonte político, recorrendo principalmente à noção de tragédia e do catastrofismo esclarecido. 


Pretendemos aqui propor uma provocação, mais para ocasionar um debate do que para estabelecer suas balizas. Comecemos da constatação da existência de um senso comum em ambientes de esquerda (marxistas e socialistas em geral), senso comum segundo o qual não devemos pensar coletivamente no futuro. O futurismo, ou melhor, uma futurologia é tomada como inversamente proporcional à cientificidade de um dado discurso teórico e político.

Este senso comum começa com a percepção do fato de que na obra de Marx e Engels – cuja última edição completa tem 43 extensos volumes – extraímos poucas ilações sobre o futuro. Daria para escrever em um saco de pão tudo o que os prolíficos Marx e Engels escreveram sobre o futuro e mesmo sobre o futuro pós-capitalista. Disto – assim continua o senso comum – conclui-se que o futuro não pode ser abordado com a mesma cientificidade do passado e que apenas especulações inconsequentes podem resultar de qualquer futurologia e mesmo de uma futurologia que se pretenda anticapitalista.

Permita-nos aqui desafiar este senso comum. Começamos este desafio com o recurso a Marx. Pensamos que este é um daqueles casos existentes no marxismo onde uma falha, um defeito, um vício foi transformado em uma virtude, em uma qualidade por conta da canonização de um autor.

Afinal de contas, trata-se aqui de uma meia verdade. Sim, Marx e Engels foram extremamente cuidadosos ao fazerem qualquer consideração “positiva” sobre o futuro em virtude do rigor teorético por eles cultivado. Não há dúvidas quanto a isso. Mas a principal fonte das investigações de Marx eram as bibliotecas do Reino Unido.

Será que hoje, quando qualquer adolescente tem acesso de baixíssimo custo a uma gama de informações técnicas e científicas centenas de milhares de vezes maiores do que as que estão catalogadas nas bibliotecas de toda a Europa, permanece verdade que apenas ilações inconsequentes podem advir de um estudo de futurologia?

Será que não se trata aqui de uma certa “proibição de pensar” derivada de uma transposição equivocada das limitações científicas e tecnológicas do século XIX para o século XXI?

Mas não pensamos que se trata apenas de um problema de coetaneidade histórica. A razão pela qual a esquerda (em especial, marxismos e mesmo alguns pós-marxismos) não se arrisque a pensar positivamente no futuro é mais profunda e se encontra – para colocar as coisas de modo bem sintético – na nossa relação atual entre nosso espaço de experiências e nosso horizonte de expectativas, para retomar os conceitos do Koselleck.

Neste contexto, realizemos uma breve digressão. TJ Clark, historiador da arte britânico, trata em seu curto ensaio Por uma esquerda sem futuro(2012) de discutir o papel político contemporâneo do que chama de esquerda, entendida como “uma oposição radical ao capitalismo” no atual contexto europeu.

Para Clark, diante do “prolongamento da crise, não se sabe de que será feita a política: é uma incógnita – para o pior dos radicais marxistas-leninistas, assim como para o mais untuoso e pragmático funcionário do FMI” (2012, p.12). Como pensar o agir político radicalmente oposto ao capitalismo quando seus próprios agentes expõem há todo tempo seus limites e especulam sobre sua própria sobrevida? Ou mesmo preveem seu fim?

Duas questões são apontadas então diante do colapso (climático, econômico e político), primeira: como pensar a esquerda prescindindo de um “olhar para frente” utópico e “abandonando as veleidades proféticas”? Segunda: como transpor uma política de esquerda, revolucionária, otimista e esperançosa, para uma que assuma o caráter trágico da vida?

Se para Clark estas questões motivam uma reflexão sobre o papel do conceito de tragédia como elemento para a “percepção do horror e do risco inscritos nos assuntos humanos”, também ele (o conceito de tragédia) impede que o mistério do porvir seja “um fantasma imobilizador” e a compreensão da tragédia sirva, ela mesma, como uma energia mobilizadora.

Assim, a consciência das crises e de seu catastrofismo não pode representar a paralisia da ação política/intelectual (quietismo) ou sua decaída no ativismo não-refletido, mas surpreendentemente, no reencontro para a esquerda de uma súbita motivação esperançosa. É esta a razão de recorrermos a tese defendida por Jean-Pierre Dupuy em O tempo das catástrofes (2011), do original francês O catastrofismo esclarecido (2002).

Para Dupuy, de início, a principal urgência é conceitual, antes que política ou mesmo ética. É preciso repensar os modos de conceber a política num cenário de catástrofe, invertendo os pressupostos da metafísica tradicional em relação ao porvir, dando ao porvir, compreendido como habitat da catástrofe, uma realidade, uma atualidade inelutável, podemos a partir daí evitar sua realização.

Uma previsão feita para que não se concretize, eis o desafio da racionalidade da catástrofe defendida por Dupuy. Pois, prevenir a catástrofe é crer na sua possibilidade real antes mesmo de sua ocorrência.

Em crítica ao senso comum da esquerda histórica, Dupuy afirma que a “profecia revolucionária conservou essa mistura altamente paradoxal de fatalismo e de voluntarismo que caracteriza a profecia bíblica. O marxismo constitui a sua ilustração mais contundente” (2011, p.216).

Assim, na busca pela superação desta incapacidade de prever/conceber o futuro em sua catástrofe, é preciso abandonar o que Dupuy denomina o tempo histórico, noção de tempo tão cara a nós da esquerda, para, enfim, reconstituir uma noção de tempo de projeto, este sim de viés anticapitalista, para que este antecipe o inelutável fim humano, para que as profecias da catástrofe, ao serem previstas não se cumpram.

Assim, ao que parecer não é somente uma irônica coincidência que a presidente impedida Dilma Roussef se refira ao momento de sua saída do governo brasileiro como uma “hora trágica”.

Talvez é preciso que recorramos a tragédia como um conceito político para mergulharmos no paradoxo que circunda o herói trágico: que age e por isso interfere no futuro e ao mesmo tempo, contraditoriamente, é vitimado pela fatalidade. É preciso que a esquerda assuma como destino/tarefa “ressoar o diapasão trágico” que fala Clark em Por uma esquerda sem futuro:

O diapasão trágico torna muitas coisas possíveis e impossíveis. No entanto, o fundamental para a esquerda talvez seja o fato de que a tragédia não nutre esperanças de que algo aconteça – algo transfigurador – e tudo se ajeite. (…) A política, na forma em que se apresenta para nós, não é nada sem uma modernidade acenando a todo instante com sua chegada iminente, finalmente prestes a se realizar: não tem outros télos, não tem outra maneira de imaginar que as coisas possam ser diferentes. Encontrar essa maneira é a tarefa da esquerda (2012, p.63).

É somente assim possível pensarmos o futuro de uma esquerda sem futuro.


Sobre os Autores:

Silvia Ramos Bezerra é doutora em Ciências da Comunicação – ECA/USP

Joelton Nascimento é doutor em Sociologia – UNICAMP.

Referências Bibliográficas:

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

CLARK, T.J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Editora 34, 2012.

DUPUY, Jean-Pierre. O tempo das catástrofes. São Paulo: Realizações Editora, 2011.

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2 comentários em “O futuro de uma esquerda sem futuro”

  1. “Assim, na busca pela superação desta incapacidade de prever/conceber o futuro em sua catástrofe, é preciso abandonar o que Dupuy denomina o tempo histórico, noção de tempo tão cara a nós da esquerda, para, enfim, reconstituir uma noção de tempo de projeto, este sim de viés anticapitalista, para que este antecipe o inelutável fim humano, para que as profecias da catástrofe, ao serem previstas não se cumpram.”

    Texto interessante.. comprovou oq eu ja achava.. A Esquerda é burra.. e a Direita é retrograda e antiquada. E para mim.. se torna óbvio o motivo de “governos esquerdistas” não conseguirem prever as catástrofes inevitáveis. Primeiramente.. pq governo de esquerda não tem a capacidade de manter uma economia saudavel.. (pelos motivos que o texto expressa.. “(…) conclui-se que o futuro não pode ser abordado com a mesma cientificidade do passado e que apenas especulações inconsequentes podem resultar de qualquer futurologia e mesmo de uma futurologia que se pretenda anticapitalista.”… Foi por esse motivo que a grande URSS faliu. Com certeza ela alcançou o auge.. bateu de frente com os EUA.. conseguiram em 50 anos mais do que muitos paises não tinham conseguido em 500. Mas oq fazer com todo o dinheiro e poder?? ai que ta o problema.. nem o Marx e o Engels sabia o que fazer com o futuro. Sabe por que?? Pq vcs so vivem de teorizações e problematizações. Muitas coisas que dificilmente levam em algo. Mas se esquecem do mais importante.. sem economia = sem dinheiro.. sem dinheiro.. nada prospera. São Justamente as suas proprias ideologias que os limitam.

    Agr o texto faz um questionamento: “Será que não se trata aqui de uma certa “proibição de pensar” derivada de uma transposição equivocada das limitações científicas e tecnológicas do século XIX para o século XXI?” Um questionamento bem pertinente.. para aqueles que sempre fizeram o papel de bucha de canhão.. de massa de manobra.. de milicias sociais. Onde a massa segue idiotizada oq alguns pensadores (que para mim são de indoles duvidosas) que são endeuzados por apenas um saudoso sentimento de ódio em comum contra o capitalismo.

    Pensamento tmb expressado pelo autor do texto “Pensamos que este é um daqueles casos existentes no marxismo onde uma falha, um defeito, um vício foi transformado em uma virtude, em uma qualidade por conta da canonização de um autor.”

    como eu disse no começo do texto.. a esquerda é burra, pois ideologias marxistas limitam o pensamento.

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