A matriz psicológica na obra de Gary Becker

Por Nelson da Silva Jr. via Latesfip

Gary Stanley Becker (1930 —2014), economista, foi Professor na Universidade de Chicago ao longo da maior parte de sua carreira docente. Entre muitos outros, ganhou também o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 1992 “por sua extensão da análise microeconômica para uma ampla gama de comportamento humano e da cooperação humana”.


Diferentemente dos dois autores anteriores, a matriz psicológica presente em sua obra não é uma crítica do conhecimento possível na base de uma posterior filosofia política, como em Hayek, ou um modelo moral de inspiração vitalista, como em Ayn Rand. Sua matriz psicológica está presente nos pressupostos de seus modelos econômicos do comportamento humano e se reduz a dois pressupostos bastante simples articulados entre si: o de maximização de utilidade, e o de cálculo racional inerente a qualquer ação humana. Note-se que a principal diferença entre Becker e os outros dois autores é o fato da matriz psicológica funcionar aqui em um regime discursivo diferente do filosófico. Em Becker, o modelo de sujeito se localiza em seus modelos científicos, isto é, são parte de uma construção formalizada para padrões de comportamento. Para ele, o cálculo racional acontece sempre, em qualquer situação.

Com base nisto, realiza pesquisas empíricas sobre o comportamento e avalia a pertinência das equações testadas. Contudo, antes de apresentarmos em detalhe e avaliarmos algumas consequências deste modelo de sujeito, façamos uma breve apresentação de sua obra. Becker relata a origem de sua teoria a partir do desafio de abordar temas da sociologia através do instrumental técnico da economia:

“Na faculdade, fui atraído pelos problemas estudados por sociólogos e as técnicas analíticas utilizadas pelos economistas. Esses interesses começaram a se fundir em meu estudo de doutorado, , que utilizou a análise econômica para entender a discriminação racial. Posteriormente, apliquei a abordagem econômica para a fertilidade, a educação, os usos do tempo, crime, casamento, interações sociais, e outros problemas “sociológicos”, “legais” e ” políticos”. Só depois de longa reflexão sobre este trabalho e o volume crescente de trabalhos relacionados por outros que concluí que a abordagem econômica era aplicável a todo o comportamento humano.” (“The Economic Approach to HumanBehavior” by Gary S. Becker)

De fato, os objetos de suas pesquisas foram frequentemente temas polêmicos, como discriminação, crime, adições. Mas, sua abordagem matemática dos mesmos tem sido, certamente, ainda mais. Por exemplo, duas de suas últimas pesquisas foram estudos sobre as vantagens da legalização do comércio de órgãos de pessoas vivas e de cadáveres e a comercialização de vistos de imigração e autorizações de trabalho por meio de leilões. Ou seja, uma forma de fazer os migrantes pagarem para terem acesso ao mercado de trabalho.

De fato, para este economista, a totalidade do comportamento humano responde senão exclusivamente, pelo menos em princípio, a uma forma de causalidade específica, baseada no cálculo racional de custos e benefícios. Esta aposta teórica permitiu a Becker abordar campos até então restritos à educação, sociologia, psicologia e à política. Seus principais temas foram 1. capital humano conceito que criou para tangenciar o investimento na educação e seus benefícios, 2. A distribuição do trabalho e alocação do tempo dentro das famílias, 3. o crime e o castigo, do ponto de vista dos gastos que representam para a sociedade e, 4. O preço da discriminação racial e de gênero nos mercados de trabalho e bens.

Seu livro mais conhecido, “Capital Humano”, significou uma revolução metodológica na área da Economia da Educação:

“Para a maioria de vocês, o capital significa uma conta bancária, ações da IBM, linhas de montagem, ou usinas de aço na área de. Estas são todas as formas de capital no sentido de que eles geram renda e outros resultados úteis durante longos períodos de tempo. Mas, vou falar sobre um tipo diferente de capital. Escolaridade, um curso de formação de computador, despesas com assistência médica e palestras sobre as virtudes da pontualidade e honestidade são também capital, no sentido de que eles melhoram a saúde, aumentam os lucros, ou incrementam a apreciação da literatura à maior parte da vida de uma pessoa” (Human Capital)

O Capital Humano, diferentemente das formas materiais de capital, não pode ser separado do indivíduo, uma vez que, ao transformá-lo, passa a fazer parte deste último: “(isto) significa que o processo de investimento ou desinvestimento em capital humano, muitas vezes altera a própria natureza de uma pessoa: o treinamento pode mudar um estilo de vida, por exemplo, aquele de desemprego constante para aquele de ganhos estáveis e bons, ou (inversamente) beber continuamente pode destruir uma carreira, saúde, e até mesmo a capacidade de pensar com clareza.

(from “The Economic Way of Looking at Behavior: The Nobel Lecture (Essays in Public Policy)” by Gary Stanley Becker)

Trata-se sem dúvida do conceito mais conhecido e utilizado do autor. Inicialmente, bastante criticado pela concepção do humano nele presente, tornou-se ao longo de poucas décadas um conceito popular a ponto de constar na pauta do programa de Bush e Clinton.

“O capital humano é tão incontroverso hoje em dia que pode ser difícil apreciar a hostilidade nos anos 1950 e 1960 para com a abordagem que acompanha o termo. O próprio conceito de capital humano foi acusado de ser humilhante porque ele tratava as pessoas como máquinas. Abordar a escolaridade como um investimento e não como uma experiência cultural foi considerada insensível e extremamente estreito”

(from “The Economic Way of Looking at Behavior: The Nobel Lecture (Essays in Public Policy)” by Gary Stanley Becker)

Becker também realizou estudos e fortaleceu a área da “Nova Economia Doméstica” que leva em conta o impacto na organização familiar do aumento de mercado de trabalho para as mulheres. Em suma, como em outros campos do comportamento humano, para Becker, a família é também abordada como uma unidade produtiva economicamente, e, como tal, submetida a uma lógica de custos e benefícios esperados de cada uma de suas ações, quaisquer que sejam elas, como por exemplo, ter um filho a mais, colocar os idosos no asilo, comprar um carro novo, etc.

Enfim, antes de examinarmos com maior atenção o lugar e a natureza da matriz psicológica implícita em suas pesquisas econômicas, cabe mencionar que a fortuna de suas equações sobre o comportamento humano não se restringiu a processos sociais e têm sido sistematicamente utilizadas como modelos de padrões de fenômenos em áreas de pesquisa bastante distantes, como a linguística , a sociobiologia, a ecologia e outras:

“Um grande apoio é fornecido pela extensa literatura desenvolvidos nos últimos vinte anos que usa a abordagem econômica para analisar um conjunto quase infinitamente variado de problemas, incluindo a evolução da linguagem (Marschak 1965), a freqüência de fiéis à igreja (Azzi e Ehrenberg 1975), a pena capital (Ehrlich 1975), o sistema legal  (Posner 1973, Becker e Landes 1974), a extinção de animais (Smith 1975), e a incidência de suicídio (Hammermesh e Soss 1974)” (from “The Economic Approach to Human Behavior” by Gary S. Becker)

Apresentação

Feita esta breve apresentação geral, passemos agora ao que interessa. Em The Economic Approach to Human Behavior Gary S. Becker explicita seus princípios epistemológicos. Em primeiro lugar, o que define a ciência econômica é seu método, e não seus objetos:

“Creio que o que mais distingue a economia como uma disciplina das outras disciplinas das ciências sociais não é seu objeto, mas a sua abordagem. (“The Economic Approach to Human Behavior” Gary S. Becker)

Em segundo lugar, que mais do que outras abordagens acadêmicas, a economia assume a presença de um comportamento específico, em qualquer ação humana, a saber aquele da maximização, seja maximização da utilidade, da riqueza e patrimônio doméstico, do governo, etc :

Todos reconhecem que a abordagem econômica assume o comportamento de maximização de forma mais explícita e extensivamente do que outras abordagens, seja a função de utilidade ou do patrimônio do lar, empresa, sindicato ou do governo que é maximizada. (“The Economic Approach to Human Behavior” Gary S. Becker)

Em terceiro lugar, que a abordagem econômica assume a existência de mercado que coordenam as ações de diferentes participantes, – sejam eles indivíduos, empresas, ou nações , de modo que o comportamento destes se torna mutuamente consistente:

Além disso, a abordagem econômica pressupõe a existência de mercados que, com diferentes graus de eficiência, coordenam as ações dos diferentes participantes -indivíduos, empresas, até mesmo nações- de modo que seu comportamento torna-se mutuamente consistente. (“The Economic Approach to Human Behavior” Gary S. Becker)

E finalmente, Becker explicita o que sua teoria assume quanto à matriz psicológica das pessoas, isto é, aquilo que ele chama da existência de preferências fundamentais. Não se trata, para a economia, a questão de como estas preferências são formadas, apenas assume-se que estas sejam estáveis e uniformes entre diferentes culturas:

“Uma vez que os economistas geralmente tiveram pouco a contribuir, especialmente nos últimos tempos, para a compreensão de como as preferências são formadas, assumimos que as preferências não se alteram substancialmente ao longo do tempo, nem são muito diferentes entre as pessoas ricas e pobres, ou mesmo entre pessoas em diferentes sociedades e culturas” (“The Economic Approach to Human Behavior” Gary S. Becker)

Tais preferências fundamentais dizem respeito, segundo Becker, não a bens de mercado, como laranjas, carros ou cuidados médicos, mas a objetos de escolha produzidos por cada lar que os utiliza, a seu tempo. Note-se que não há nesta ideia uma nomeação das preferências fundamentais de cada pessoa, lar ou empresa, apenas que estas “unidades de interesse” como ele virá a nomear tais categorias, constroem para si suas preferências fundamentais.

“Estas preferências subjacentes são definidas sobre aspectos fundamentais da vida, tais como a saúde, o prestígio, o prazer sensual, a benevolência, ou a inveja, que nem sempre carregam uma relação estável a bens e serviços de mercado” (“The Economic Approach to Human Behavior” Gary S. Becker)

Finalmente, conclui Becker, “os pressupostos combinados de comportamento maximizador, equilíbrio de mercado e preferências estáveis, usado incansavelmente e com firmeza, constituem o coração da abordagem económica como eu o vejo.” (“The Economic Approach to Human Behavior” Gary S. Becker)

Vejamos agora mais detidamente sua concepção psicológica. Note-se, primeiramente, que a pressuposição que as decisões sejam consideradas como racionais, não implica para Becker que elas sejam conscientes para o sujeito, ou que este possa descrever suas razões justificando as mesmas. Isto está, segundo ele, de acordo com a distinção entre funções latentes e manifestas feitas pela sociologia, e pela noção de subconsciente da “moderna psicologia”:

“Além disso, a abordagem econômica não assume que as unidades de decisão sejam necessariamente conscientes de seus esforços para maximizar ou que possam verbalizar ou de alguma outra forma descrever de forma informativa os padrões sistemáticos de seu comportamento. Assim, ela é consistente com a ênfase no subconsciente da psicologia moderna e com a distinção entre as funções manifestas e latentes em sociologia (Merton, 1968)”. (from “The Economic Approach to Human Behavior” by Gary S. Becker)

Além disso, sua abordagem econômica não assume diferenças entre grandes e pequenas decisões, como por exemplo as decisões envolvendo vida e morte a aquela entre uma marca de café e outra, entre escolher um par e decidir o número de filhos que se terá e aquela de comprar um quadro:

“Além disso, a abordagem econômica não faz distinções conceituais entre as decisões maiores e menores, tais como as que envolvem a vida e a morte em oposição à escolha de uma marca de café; ou entre decisões que supostamente envolvem emoções fortes e aquelas com pouco envolvimento emocional, como na escolha de um companheiro ou o número de crianças, em oposição à aquisição de pinturas; ou entre decisões feitas por pessoas com diferentes rendimentos, educação, ou antecedentes familiares. (from “The Economic Approach to Human Behavior” by Gary S. Becker)

Esta forma geral para todo e qualquer psiquismo permite uma ampliação inédita do campo da economia.

Na verdade, afirma Becker, eu cheguei à conclusão de que a abordagem econômica é uma abordagem abrangente, aplicável a todo o comportamento humano, seja ele um comportamento envolvendo preços de dinheiro ou preços inclusos indiretamente, decisões repetitivas ou pouco frequentes, grandes ou pequenas, com objetivos emotivos ou mecânicos , pessoas ricas ou pobres, homens ou mulheres, adultos ou crianças, pessoas brilhantes ou estúpidas, pacientes ou terapeutas, empresários ou políticos, professores ou alunos”. (from “The Economic Approach to Human Behavior” by Gary S. Becker)

Discussão

Passemos agora às considerações, primeiramente sobre a natureza, isto é, sobre sua essência, em seguida sobre o lugar epistêmico, e, finalmente, sobre as implicações sociais e políticas desta matriz psicológica.

Natureza

Quanto à sua natureza, fundamentalmente esta matriz psicológica se resume a ideia de maximização de utilidade, a qual tem em seu bojo, duas facetas: aquela de seu  motor, a saber, as preferências fundamentais, e aquela de seu método, a saber, a racionalidade calculista. Vejamos o exemplo do fumante comentado por Becker:

“Portanto, uma pessoa pode ser um fumante pesado ou tão comprometida com o trabalho a ponto de não fazer nenhum exercício, não necessariamente porque ela é ignorante das consequências ou “incapaz” de utilizar as informações que possui, mas porque o tempo de vida perdida não vale a pena o custo de parar de fumar ou trabalhar menos intensamente. Estas seriam decisões insensatas se uma vida longa fosse o único objetivo, mas enquanto existirem outros objetivos, eles poderão ser conscientes e, neste sentido, “sensatos”. De acordo com a abordagem econômica, portanto, a maioria (se não todos!) mortes são, em certa medida “suicídios” no sentido de que elas poderiam ter sido adiadas se mais recursos fossem investidos no prolongamento da vida. Isto não só tem implicações para a análise do que são normalmente chamados suicídios, 15, mas também põe em causa a distinção comum entre suicídios e mortes “naturais”. Mais uma vez, a abordagem econômica e psicologia moderna chegaram a conclusões semelhantes desde que a última enfatiza que um “desejo de morte” está por trás de muitas mortes “acidentais” e outras alegadamente devido a causas “naturais”.” (from “The Economic Approach to Human Behavior” by Gary S. Becker)

Lugar epistêmico

Quanto ao lugar epistêmico, a matriz psicológica, no caso de Gary Stanley Becker, não é um objeto que resulte de uma construção teórica. Diferentemente de Hayek, onde a matriz psicológica é objeto de um argumento, ou de Ayn Rand onde ela é uma injunção de fundo moral, em Becker a matriz psicológica é um pressuposto metodológico. Seu lugar na teoria é parte do método, isto é, faz parte de pressupostos que não se oferecem como objeto de discussão e contenda. De fato, a assunção de que as ações humanas sejam sempre e exclusivamente racionais funciona como uma petição de princípio. Neste lugar de exceção, a matriz psicológica beckeriana se expressa em uma peculiar dinâmica.

Segundo Becker, todos os comportamentos humanos não imediatamente compreensíveis por esse pressuposto devem ser classificados como “ignorância” pelo estudioso, em vez de propor hipóteses sobre os motores do comportamento diferentes da racionalidade calculadora.

“Eu não estou sugerindo que a abordagem econômica seja usada por todos os economistas para todo o comportamento humano ou mesmo pela maioria dos economistas para a maioria destes comportamentos. De fato, muitos economistas são abertamente hostis a todas as aplicações exceto as tradicionais. Além disso, os economistas não conseguem resistir à tentação de esconder a sua própria falta de compreensão atrás de alegações de comportamento irracional, ignorância desnecessária, loucura, mudanças ad hoc em valores, e assim por diante, o que é simplesmente reconhecer a derrota sob o disfarce de julgamento bem pesado.” (…)

“Eu não quero sugerir que conceitos como o ego e o id, ou normas sociais, não têm qualquer conteúdo científico. Apenas que eles são matérias tentadoras, tal como são os conceitos na literatura econômica, para explicações ad hoc e inúteis do comportamento” (from “The Economic Approach to Human Behavior” by Gary S. Becker)

O resultado é duplo: por um lado, outras formas de causalidade psíquica são descartadas a priori sem justificativa e, por outro, quando um fenômeno encontra uma explicação a partir deste pressuposto, ele o confirma como verdadeiro e eficaz. Assim, quando não dá certo, o pressuposto não se torna questionável, quando dá, ele se vê confirmado. Conclusão: em nenhum dos dois momentos, ele é de fato, investigado. Ora, comparativamente aos dois outros autores, tal posição confere à matriz psicológica de Becker um funcionamento prescritivo e normativo consideravelmente maior, pois exclui – forclui diria Lacan- qualquer outro tipo de argumento.

Implicações políticas

Do ponto de vista de suas implicações políticas, minha tese é que o monopólio de de tal visão exclusivamente racional do sujeito funciona como um elemento alienante e encobridor de sua submissão passiva ao “conjunto de escolhas possíveis”.

Becker define a economia como método de abordar todo e qualquer comportamento humano. De fato, este método venceu, isto é, cresceu em relação a outros métodos sociológicos e psicológicos na cultura, nas ciências e na política. Basta lembrar a frase jocosa utilizada pelos jornais norte americanos para explicar uma certa queda na popularidade do então candidato à Presidência Bill Clinton: “It’s the economy, stupid”. Em tradução livre: É o programa econômico, estúpido, e não as promessas sociais que irão te eleger! Não há dúvida que o método de Becker implicou uma revolução epistemológica sem precedentes nesta e em outras ciências sociais. Contudo, trata-se de um método que, ao definir o comportamento exclusivamente como “escolha racional entre objetivos excludentes visando a maximização de utilidades”, traz consigo um olhar sobre o humano que chama mais atenção por aquilo que ele exclui do que por aquilo pelo que ele se define.

Com efeito, a racionalidade avaliativa e estratégica, a sagacidade colocada em função da maximização do interesse do indivíduo, em última instância, pode ser remontada à métis grega, tão bem ilustrada pela inteligência oblíqua de Ulisses. A novidade não está na escolha desta virtude para a definição do humano. A novidade está na exclusão de outros discursos que fariam uma alternância e que limitariam esta forma exclusiva de olhar o humano. Por exemplo, o discurso do respeito a priori pela coisa pública, por aquilo que, ao pertencer a todos, não pertence a mim, não pode ser utilizado para meu cálculo, uma vez que “respeito pelo outro como um fim em si mesmo” é uma afirmação sem sentido na matriz psicológica em questão. Por exemplo, o respeito a priori pelo valor moral, no qual o discurso jurídico se funda tampouco tem lugar aqui.

Esta concepção exclusivamente racionalista do comportamento humano é fundamentalmente a-social. Pois isolado destes outros discursos, funcionando de modo exclusivo e excludente em relação a estes, o “cálculo racional entre as escolhas existentes” só poder derivar em uma forma peculiar de cinismo. Trata-se contudo, segundo penso, de um cinismo profundamente dócil e passivo, contrariamente à faceta homogeneamente egoísta do homo economicus gosta de tomar como seu reflexo, e contrariamente à imagem de si exclusivamente ativa promovida pela retórica do indivíduo-empresa.Esta é contudo uma faceta que não se revela facilmente. Vejamos inicialmente dois destes silenciamentos do método econômico. Para tanto, retomemos aqui aquela que foi talvez a sua melhor defesa política fora do círculo de seus autores e seguidores. Trata-se da reflexão sobre o inegável interesse das posições teóricas do neoliberalismo para a dissolução do poder disciplinar feita por Michel Foucault em O nascimento da biopolítica.

Foucault, sublinha um duplo descarte, uma dupla obsoletização do poder disciplinar: por um lado, a faceta estatal e política, por outro a faceta psicológica. Foucault vê nesses dois silenciamentos uma possibilidade insuspeitada de emancipação.

Interessado em pensar o governo fora da gramática disciplinar, Foucault toma como seu objeto de reflexão a tradição liberal e neoliberal. Com efeito, Foucault vê no modelo racional do neoliberalismo um modo de interrogar e se opor, por assim dizer, de modo sorrateiro à razão de Estado. Não se trata, na visão neoliberal de questionar a legitimidade ou não das ações do estado, mas simplesmente questionar sua utilidade, os efeitos de suas ações (Lagasnerie, 149). Trata-se de uma subversão silenciosa do poder disciplinar :

“Pouco importa, escreve Foucault, que este direito [de cobrar ou suspender um imposto] seja legítimo ou não em termos de direito, o problema é de saber quais efeitos isso tem e se esses efeitos são negativos. Será nesse momento que se dirá que o imposto em questão é ilegítimo ou , em todo caso, que ele não tem razão de ser. Mas será sempre no próprio interior deste campo de prática governamental q em função de seus efeitos , não em função daquilo que poderia fundá-la em direito que a questão econômica será colocada. ” (Foucault, 17).

Quanto à faceta psicológica do neoliberalismo, esta interessa Foucault na medida em que ela é incompatível com a associação da função-psi, isto é, psiquiatras, e psicanalistas, e as ferramentas que esta forneceu ao sistema disciplinar. Com efeito, a ideia que o crime é uma ação puramente racional, organizada em torno de um cálculo custo-benefício, invalida o discurso que associa o criminoso a um anormal, um caso de desvio de personalidade que justifica, para além da penalidade, igualmente um tratamento e uma normatização , tal como bem ilustra, o filme Laranja Mecânica, Stanley Kubric, entre muitos outros. A consireração dos indivíduos como sendo sempre, apriori, racionais e responsáveis cognitivos por seus atos, invalida a separação e a classificação entre normais e anormais. A infração é de certo modo horizontalizada pela régua do cálculo:

“ (…) não há nenhuma diferença, escreve Foucault, entre uma infração ao código de trânsito e um assassinato premeditado. Isso quer igualmente dizer que o criminoso não é de modo algum marcado ou interrogado, nesta perspectiva, a partir de traços morais ou antropológicos. Ele não é diferente de nenhum outro.” (Foucault, 264).

Mais do que nas pesquisas do próprio Becker, há na apropriação política de suas pesquisas uma assunção tácita, ie, não questionada de que aquilo que “é”, é também aquilo que “deve ser”. A educação, por exemplo, é, de fato o maior fator para o nível de salários e proventos, mesmo eliminando as variáveis evidentes como “pais ricos”.

Contudo, a maximização do patrimônio não é de fato questionada como sendo o alvo primeiro da vida humana. Tampouco, essa assunção leva em conta a lógica da ideologia do trabalho nos tempos atuais, altamente inspirada no modelo publicitário de persuasão, presente em tal valoração dos ganhos pela educação. Pelo contrário, ele supõe uma lucidez cínica do oprimido diante da realidade de sua opressão e suas possibilidades de maximização de utilidade. O sujeito aqui suposto pode ser ilustrado por um singular personagem de Matrix, Cypher o traidor: “ Sei que esse bife é virtual,- diz ele enquanto abocanha um suculento pedaço de carne,- mas ele é delicioso assim mesmo”, completa, engolindo o fato. Contudo, essa aparente potência, essa capacidade deliberativa e a liberdade de escolha no jogo da maximização do prazer possível, se tornam tristemente medíocres quando se dá um passo para trás e se considera o contexto da fala. O problema não é a virtualidade do sabor do bife, sua falsidade, que já está escancarada e em plena luz, mas sua função anestesiante, sua lógica sonífera, a qual permanece em silêncio. De fato, o nome do personagem não deixa dúvidas sobre a função desta ideologia da lucidez cínica: Cypher, ciframento, velamento e sono são possíveis traduções de Lethe, nome da deusa grega do encobrimento e do adormecimento, o nome de Cypher se revela assim adequado ao seu personagem, como um convite à entrega passiva e total do escravo ao Senhor. Assim pensada, tal matriz psicológica torna-se problemática, e uma dúvida paira sobre a natureza inquestionada dessa racionalidade e dessa maximização da utilidade supostas em cada unidade intencional. Este modelo de sujeito é aquele presente na base dos discursos de investimento em si e de auto-promoção: somos sujeitos de interesse dotados de uma racionalidade estratégica, de uma inteligência social e situacional. Contudo, podemos ver igualmente uma docilidade fundamental em tal concepção de sujeito, uma docilidade recoberta por sua face oficial e reconhecida como homogeneamente ativa. Assim, não cabe nessa matriz psicológica a dúvida sobre o quadro geral das possibilidades de escolha oferecidas, não cabe a desconfiança do cardápio de opções oferecido. Se isso acontecer, será também fruto de um cálculo racional, supostamente ativo e autônomo…

Ora, tal passividade diante do cardápio de escolhas racionais é igualmente discernível na releitura que Becker faz do equilíbrio de forças políticas no interior de uma democracia. Becker está interessado em avaliar até que ponto um grupo minoritário ou mais fraco politicamente se deixa oprimir por um outro. O exemplo dado por Becker é o grande filme japonês “Os sete samurais”. Segundo o modelo que adota, a relação entre explorador e explorado são sempre equilibradas, mas este equilíbrio da balança se realiza segundo fatores diferentes: enquanto os benefícios do explorador ocorrem de modo linear, a resistência do explorado ocorre de modo exponencial. Algo como uma equação na qual de um lado, tenhamos uma função aritmética e no outro uma função com uma potência. A priori, o resultado será sempre um equilíbrio. No caso, aquele da exploração. Exemplo: uma taxa mensal é cobrada pela máfia local dos donos do bar e da loja de roupa por sua “proteção”. Se a taxa for razoável, os comerciantes a pagarão docilmente por tempo indefinido. Contudo, se por qualquer motivo, – como por exemplo, aumento da repressão policial ao tráfico de drogas e consequente queda de provento, – o grupo mafioso aumentar seus impostos acima de um certo nível, mais precisamente, o nível que comprometa a sobrevida e a sustentabilidade do comércio, os explorados começarão a resistir, se auto-organizando para defesa armada e/ou contratando grupos de mercenários para se defenderem dos antigos “defensores”.

A sabedoria racional do mercado indica então a justa estratégia aos mafiosos defensores. Cabe, segundo esta sabedoria racional, que os mafiosos estudem muito bem economia doméstica de seus explorados antes de arriscarem-se a aumentar suas taxas de proteção na ignorância. Pois só este conhecimento permitirá elevar as taxas de proteção até seu limite ótimo, que é aquele imediatamente antes do nível crítico.

Com efeito, se ficarem muito abaixo deste, estarão perdendo dinheiro, mas se o ultrapassarem, perderão muito mais dinheiro, eventualmente, todo ele. Estranha filosofia política, onde a gestão da paz social depende da justa avaliação do custo oportunidade dos exploradores sobre os explorados, ou seja, quanto custará aproveitar a oportunidade de explorar um pouco mais o explorado.

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