Valério Arcary: É preciso arrancar alegria ao futuro

Por Valério Arcary, via Revista PUC-SP

Este artigo enfoca alguns dos dilemas enfrentados pelas esquerdas atualmente, a partir de um balanço das revoluções e das tentativas de construção do socialismo durante o século XX. Discute ainda os impasses da esquerda no Brasil considerando sua atuação no período pré-64 e a recorrência de algumas práticas políticas expressas nas alianças que se formaram para a disputa das eleições neste ano.


Na década de 70, Perry Anderson escreveu um texto de polêmica com Thompson e o marxismo francês, especialmente com Althusser, que estabeleceu um revelador quadro teórico do que foi a esquerda marxista naquela década. Neste texto ele apresentou quatro elementos que seriam definidores de uma identidade marxista.

Primeiramente, afirmou que ser marxista significava uma ruptura ética e moral com uma ordem de opressão e exploração, a decisão, como um imperativo categórico à maneira kantiana, de não ser indiferente diante da desigualdade e da injustiça. Significava, portanto, a capacidade de ruptura com essa ordem capitalista que perpetua “o homem como lobo do homem”, reforçando a radicalidade da última tese sobre Feuerbach, a necessidade de ir além da interpretação do mundo e lutar para transformá-lo.

Em segundo lugar, assinalou que ser marxista era possuir identidade com o movimento social que se organiza há cento e cinquenta anos, ou seja, com o movimento operário moderno, que existe como uma realidade material e que se estrutura em centenas de países através de organizações sindicais e políticas e que busca, através dessas organizações, com suas grandezas e limites, a afirmação independente de reivindicações e de lutas. Ser marxista seria então participar, integrar-se a este movimento social.

Em terceiro lugar, estaria a luta por um projeto político de deslocamento do Estado capitalista, uma luta pelo poder. Ser marxista, neste aspecto, seria abraçar um projeto contra o Estado burguês no terreno da própria ação política, com suas estratégias e seus tempos longos e curtos

Por último, ser marxista correspondia também a abraçar um programa histórico, um projeto na medida da história, que vá além do combate de uma geração, o projeto socialista. Um projeto de reorganização econômica e social da vida humana.

Esses quatros elementos apresentados por Perry Anderson são bastante inspiradores e continuam atuais. Não existe hoje, em escala internacional, um campo orgânico unificado para o combate marxista. A tradição marxista sempre foi internacionalista mas vivemos atualmente, no final do século XX, a crise do projeto internacional dos trabalhadores e dos oprimidos e não estamos nem remotamente próximos do que foi a tradição da Primeira, Segunda e Terceira Internacional. Essas duas últimas, em especial, alcançaram influência de massas em seu tempo e a Quarta Internacional, que existe atualmente apenas como movimento político, expressando-se em três ou quatro principais frações internacionais, com grandes diferenças teóricas e programáticas, sem a forma de um partido mundial, permanece sendo um movimento minoritário, que não conquistou posições dirigentes no interior do movimento operário. As poucas exceções podem ser encontradas em países como França, Inglaterra e Brasil.

Evidentemente, ao não existir um quadro internacional comum para a ação marxista revolucionária, a humildade e a prudência são boas acompanhantes sempre que discutimos o futuro e as perspectivas para as esquerdas. Fora de um quadro de discussões internacionais, os debates nacionais necessariamente sucumbem diante dos limites e pressões nacionais, das paixões nacionais, nos quais todos estamos envolvidos. Este perigo, ensina a experiência histórica, é fatal.

Entrando exatamente no tema — refazendo a esquerda —, acredito que existem dois aspectos centrais. Em primeiro lugar, a esquerda está diante do desafio de tirar lições da luta socialista do século XX. Vivemos um século de gigantescos combates de classe revolucionários que se sucederam, mas que não geraram aquilo que foi a hipótese inauguradora do marxismo revolucionário. Basicamente, esta hipótese partia da premissa de que aos trabalhadores dos países centrais caberia o papel de protagonistas na luta pela emancipação humana. Todas as esperanças das três primeiras Internacionais estavam centradas nesta perspectiva.

No entanto, desde a Segunda Guerra Mundial vivemos uma inversão dessa perspectiva histórica, pois todo o protagonismo das lutas de classes foi deslocado dos países centrais em direção ao hemisfério sul. Esta é uma das razões porque grande parte das esquerdas da Ásia e América Latina são terrivelmente céticas quanto ao potencial revolucionário dos trabalhadores nos países centrais e mantêm posições dúbias quanto ao significado da globalização, algumas inclusive vendo este fenômeno como algo progressivo. A relação das lutas dos trabalhadores dos países dependentes e dos países centrais, o internacionalismo proletário, é um dos temas fundamentais para se pensar a esquerda hoje. Grande parte do ceticismo que se expressa ideologicamente no elogio à globalização ou no desalento diante do protagonismo do proletariado, se alimenta dessa realidade, do fato de não vivermos processos revolucionários vitoriosos nos países centrais ao longo da segunda metade deste século. A questão central é se estamos hoje mais longe ou mais perto de crises revolucionárias nos países centrais e estou convencido de que estamos mais próximos. Até os jornais traduzem essa realidade. Basta ver as intervenções econômicas que os Estados Unidos foram obrigados a realizar na Ásia, expressão preventiva de uma crise do capitalismo nunca antes vista nos países centrais desde 1929. Esta crise revela a impossibilidade deste sistema em resolver suas contradições e oferecer uma alternativa historicamente progressiva para as amplas massas trabalhadoras. Disto decorre que um projeto socialista radical obrigatoriamente deve retirar lições do que foi a luta socialista no século XX.

Se estamos realmente diante de um grave quadro de crise capitalista, se isto realmente significa algo e não apenas palavras, a crítica ao capitalismo exige uma reflexão estratégica sobre quais são as alternativas a ele. Basicamente existem dois campos estratégicos perigosos e com erros simétricos. De um lado, existe boa parte da esquerda que ignora as tragédias que este século viveu em nome da bandeira socialista. Não é somente uma posição quase caricatural, como a que expressa a corrente de João Amazonas ao colocar que todas as tragédias ocorridas desde os processos de Moscou dos anos 30, os regimes de partido único, crueldades de tipo asiático do regime stalinista da China, o processo de restauração do Leste, etc., são irrelevantes, e estamos diante de um século extraordinário no qual os trabalhadores foram os protagonistas. Fizeram-se revoluções, iniciou-se a construção do socialismo, houve vitórias e depois veio o big bang e não se sabe bem como as massas apoiaram a atual restauração capitalista. Neste raciocínio, cometeram-se alguns erros, é verdade, mas foram erros irrelevantes e o principal desses erros irrelevantes foi que os partidos comunistas não compreenderam as especificidades de cada país ou não compreenderam a perenidade do mercado, da lei do valor, ou seja, expropriaram além da conta. Este não é um pensamento apenas dos expartidos comunistas que se refundaram pelo mundo afora, é uma corrente de opinião muito influente, mesmo dentro do Partido dos Trabalhadores, onde teve muitos adeptos nos anos 80.

Trata-se de um impasse teórico e programático da visão campista. A teoria dos dois campos foi amplamente majoritária na interpretação do mundo entre os anos 40 e final dos 80, quando a esquerda do Ocidente buscava fazer a defesa da diplomacia política de Moscou e Pequim. Quando o exército russo esmagou a “Primavera de Praga”, o campismo estatista começou a ruir. E agora muitos dos defensores desta posição não têm coragem de dizer que foram “campistas” a vida inteira.

O erro simétrico é aquele que diz que toda a luta socialista do século XX foi em vão, que estamos diante de um desencontro histórico insolúvel. É basicamente o desenvolvimento da piada de 1968 — “Cristo está morto, Marx está morto, Freud morreu e eu já não me sinto muito bem” — levada aos limites do patético. Este radicalismo niilista semi-anarquista se desenvolveu a tal ponto que toda a experiência revolucionária é jogada no lixo da história, como se a propriedade estatal e o planejamento econômico não tivessem realizado façanhas. Foram realizações que nem os grandes institutos econômicos patrocinados pelas agências capitalistas desprezam. Não é, portanto, irrelevante que em quase todas as experiências de transição ao socialismo — mesmo bloqueadas e deformadas e partindo de condições de atraso material e cultural atrozes como Cuba, por exemplo —, o planejamento econômico e a propriedade estatal tenham aumentado a escolaridade média da população, acabado com flagelos como fome, endemias, desalojamento e desemprego. Foram façanhas realizadas em tempos históricos muito curtos, mesmo nos limites do controle do capitalismo mundial e do atraso trágico da revolução nos países centrais.

Evidentemente, querer comparar as possibilidades econômicas de Cuba, Romênia, e da ex-União Soviética e dos países do Leste Europeu com as possibilidades econômicas da França, Alemanha, Inglaterra ou Estados Unidos é simplesmente não tentar desenvolver uma discussão econômica, social e histórica minimamente séria. Claro que havia limites que não poderiam ser ultrapassados.

Essas são as duas delimitações gerais que não resolvem os problemas. É preciso pensar uma esquerda que vá além do stalinismo e da socialdemocracia e que vá além também do derrotismo e do campismo. Uma esquerda que aprenda a ser defensista das conquistas de Outubro sem ser campista como foi o stalinismo, que acredite na atualidade da luta socialista sem fechar os olhos para a tragédia da burocratização de todas as experiências de transição. Um defensismo, portanto, das façanhas do planejamento e da propriedade estatal mesmo nos limites das fronteiras nacionais, de projetos que nasceram burocraticamente deformados, de projetos estratégicos que pensaram a construção do socialismo em um só país. Mesmo nestes limites há experiências que mereceram e merecem ser defendidas.

Um outro aspecto desta discussão, que também é fundamental, é a atualidade de um projeto que mantenha a independência política de classe. Ou seja, se nós pensamos um projeto para a esquerda brasileira e um projeto socialista para o país, em primeiro lugar é preciso não repetir os erros das gerações que nos antecederam. Nós não somos os primeiros a lutar pelo socialismo no país. Há uma geração que abraçou um projeto que foi historicamente derrotado em 1964. Consistia basicamente em pensar que no Brasil não estava no horizonte, a revolução socialista. Tratava-se de realizar uma revolução democrática-nacional ou democrática-popular, a partir da visão de que as classes trabalhadoras da cidade e as massas deserdadas do campo e outros estratos sociais que existem no mundo rural seriam incapazes de ter um protagonismo social independente e portanto seria necessária uma aliança com setores das classes dominantes. Até 1964, esse projeto foi pensado pelo Partido Comunista Brasileiro, que era o partido mais influente no interior da classe operária, e se revelou no apoio ao governo João Goulart (entre outros), tendo sua expressão mais delirante quando este partido julgou que de fato podia decidir qual o futuro daquele governo. Este projeto, como sabemos, foi politicamente derrotado em 1964. O drama que estamos vivendo é que as esquerdas se reconstruíram a partir das
cinzas do Partido Comunista Brasileiro, tendo como núcleo ordenador o Partido dos Trabalhadores — que tinha como eixo de atuação a defesa da independência de classe — e que hoje já não é o mesmo. O PT se torna cada vez mais, programaticamente, próximo do que foi o Partido Comunista Brasileiro antes de 1964. E os processos históricos são às vezes tão curiosos que estamos diante da famosa máxima hegeliana pela qual a história acontece pela primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Estamos agora fazendo aliança com quem? Não é com Miguel Arraes e Leonel Brizola, os mesmos personagens de 64? E eles não defendem o mesmo projeto político de poder que defendiam em 64? O núcleo dirigente do PT, desde 1989, desenvolve uma política de alianças que tem como centro a procura de uma dissidência burguesa importante. Até o governo Itamar, seu objeto de desejo era o núcleo duro do PSDB. Em 1998, como a noiva faltou ao encontro no altar, restaram os cadáveres políticos do pré-64, uma sombra política da burguesia.

O tema da independência política volta assim à atualidade. Como lutar, voltando a Perry Anderson, por uma ruptura ética com o capitalismo se nos aliamos com Miguel Arraes, que reproduziu em Pernambuco o esquema dos precatórios? Como lutar por uma ruptura social com a ordem capitalista, se, em São Paulo, por exemplo, o PT defende o Banespa como banco público e estatal e em Pernambuco o governo de Arraes privatizou o Banco do Estado? Por que pode em Pernambuco e não pode em São Paulo?

Como defender um projeto de reforma agrária para o país se aceitamos os limites impostos por Leonel Brizola, que tem sua base social no latifúndio do Sul?

Como pensar um projeto para a esquerda do século XXI se, basicamente, no final do século XX, o projeto hegemônico da esquerda é o mesmo da geração de nossos pais? E não pensemos que os processos históricos não têm regularidade; eles têm uma certa regularidade. É claro que uma força social se organiza atrás da candidatura Lula contra Fernando Henrique e tudo que ele socialmente representa: o Proer, a defesa das privatizações, o apoio do FMI, a dolarização. Isso é evidente, há uma força social que se organiza na candidatura Lula, apesar de Brizola, de Arraes, de Requião. E o Paes de Andrade vai ser a cereja em cima do sundae, ele que não recebeu convite nem para a festa junina da escola pré-primária no Ceará, vai receber tapete vermelho para a “grande aliança” que se propõe a ser a esperança de um Brasil novo.

Estou com Perry Anderson. Penso que uma esquerda portadora do futuro tem que aprender alguma coisa do passado. E se algo a história dramática deste país ensina é que ou os trabalhadores são capazes de apresentar um projeto para o país e arrastar atrás de si as maiorias exploradas e oprimidas, ou não haverá entusiasmo entre os trabalhadores para defender projeto político algum. Pode-se até vencer eleições, o que, diga-se de passagem, está cada vez mais difícil, pois o “lado de lá” não quer mais surpresas como a ocorrida em São Paulo em 1988. Mas elas ficarão suspensas no ar. E ficar suspensa no ar não é uma imagem literária, vide o governo Cristóvam Buarque, que mantém posição contra a greve dos professores, mas que pagou nos últimos dois anos, religiosamente, as dívidas com as empreiteiras feitas pelo governo anterior.

Repensar as esquerdas é tentar evitar a farsa, pois a tragédia de 64 nós já conhecemos. Este desafio depende de rupturas e unificações, aliás como sempre. O PSTU, que é somente um dos agrupamentos marxistas no Brasil tem a ambição de apostar em uma reorganização nacional e internacional da esquerda. Queremos uma unificação com os setores marxistas sérios que hoje ainda estão no interior do PT. Por outro lado, Brizola e o núcleo duro lulista flertam com uma unificação PT-PDT. O próprio PCdoB será sacudido pelo terremoto da crise que se aproxima e pelo impasse de sua estratégia política. Repensar as esquerdas é ter coragem de fazer uma aposta no futuro: uma nova corrente socialista será reagrupada sob um programa marxista.


* O título do artigo faz referência ao verso de V. Maiakovski. Texto baseado em debate realizado na PUC-SP, promovido pelo Neils. Transcrito e editado por Tânia Maria Marossi.

1. Participante da Quarta Internacional desde 1973, foi membro do Diretório e Executiva Nacional do PT e atualmente é presidente do PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado. Estudou sociologia em Nanterre, Paris X. Mestrando em história social na USP.

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