Entre Fetiche e Paranoia. Um hiato no real

Por CEII – Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia

“Antes, parece que só víamos as relações sociais em jogo no capitalismo se olhássemos a situação do ponto de vista da troca – isso é, das mercadorias – mas agora, com a importância do conhecimento na valorização das coisas, as relações sociais já aparecem de saída, podemos enxergá-las já no campo do trabalho, que é cada vez mais coletivo e cooperativo. O que a gente vai fazer com essa tese é sugerir que ela pode estar errada, que, como diz Zizek, talvez o problema seja que essa aparente “transparência” das relações sociais mascara relações realmente abstratas, como se a mistificação funcionasse ao contrário agora: só vemos relações entre coisas quando elas aparecem como relações entre pessoas, mas o poder de determinação continua sendo do campo das coisas, e não das pessoas. Ou seja: o problema continua sendo exploração do trabalho, mas a gente só enxerga isso olhando para como as pessoas tratam umas às outras.”

Este texto foi apresentado durante a realização do evento “Psicanálise e Hipotese Comunista” no Instituto de Psicologia da USP em 13.05.2016.


Fetichismo no Capital                                

Vamos relembrar rapidamente como Marx explica o fetichismo lá na famosa parte quatro do primeiro capítulo do Capital.

Marx começa o capítulo sobre o fetiche da mercadoria dizendo tudo aquilo que não é segredo nenhum a respeito da mercadoria: basicamente, tudo o que tem existência palpável ou material. Ou seja, tudo o que diz respeito a como um produto é feito, o fato de que tem o trabalho de alguém ou muitos alguéns em jogo ali – e o fato de que como a coisa é trabalhada influi no valor de uso do produto: tudo isso é bastante visível, não é segredo algum. Nem é segredo que esse trabalho que produz a mercadoria é determinado por outras pessoas, que o trabalho é trabalho para um outro, tudo isso também não é a questão.

Marx escreve:

De onde surge, portanto, o caráter enigmático do produto do trabalho, assim que ele assume a forma-mercadoria?

Evidentemente, ele surge dessa própria forma. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material da igual objetividade de valor dos produtos do trabalho; a medida do dispêndio de força humana de trabalho por meio de sua duração assume a forma da grandeza de valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtos do trabalho.

Ou seja, é um caráter formal em jogo na esfera da produção que, olhando para a própria produção, pro trabalho, é invisível. De fato, se a gente olha para as pessoas trabalhando, todo mundo faz algo diferente, não há nenhuma equivalência concreta ali. Mas quando mudamos nossa perspectiva, e olhamos tudo isso do ponto de vista do valor de troca, aí parece que há uma rede ligando o trabalho de todo mundo, pois o trabalho é uma mercadoria, comprada e vendida como as outras, assim como as ferramentas, as maquinas e a matéria prima que vai no processo de produção. Ou seja, quando olhamos tudo como “coisas’, as relações sociais que já estavam lá no trabalho, aparecem – quando olhamos do ponto de vista das “pessoas” essas relações não dão sinal nenhum, todo mundo parece separado, indivíduos preocupados com seus próprios interesses.

Por isso Marx continua assim:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. (…) Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.

Isso é muito importante, porque significa que o aspecto mais importante do fetichismo não é ocultar uma coisa atrás de outra, mas ocultar uma coisa que é invisível! A gente não conseguiria ver as relações entre pessoas diretamente, as relações que determinam como a produção se organiza, como o trabalhador é controlado na fábrica, o critério pelo qual seu gerente sabe que ele está trabalhando lentamente demais, ou não está produzindo o suficiente, ou se seu salário está alto para aquela função. Tudo isso, que liga cada trabalhador ao que Marx chamou de “totalidade social” só tem existência, só aparece, se ao invés de tentar ver com os olhos, que são coisas físicas, feitas pra ver outras coisas físicas – a gente tenta “ver” como coisas sociais, as próprias mercadorias. É uma ideia difícil, mas importante, porque muitas vezes achamos que fetiche é uma ilusão que esconde o segredo, que é o trabalho. E vimos que não é bem assim para o Marx.

Mudança econômica

Acontece que muita gente pode criticar – e criticou! – o Marx pelo seguinte: essa ideia de que a dimensão social só aparece quando a gente olha as mercadorias, isso é, que a mercadoria é uma mediação necessária não só pra organizar os trabalhadores, que são organizados como “coisas” e não como pessoas, mas para mapearmos as relações sociais, para “vermos” elas, não seria mais verdadeira.

Para entender isso, a gente precisa conhecer alguns conceitos do Marx: o de trabalho morto e o de trabalho vivo, e o de capital fixo. Trabalho vivo é mais ou menos o que parece ser mesmo: o trabalhador lá, gastando sua energia vital, ficando física e emocionalmente cansado, precisando descansar. É esse dispêndio de força que tá ligado à vida da pessoa mesmo, sua existência biológica e tudo mais. Trabalho morto tem a ver, por exemplo, com as coisas que o trabalho vivo altera numa máquina, ou numa ferramenta: são alterações que “ensinam” para as coisas algumas informações que permitem que essas coisas agora influam elas mesmas no material do trabalho. O caso clássico para entender a relação entre esses dois conceitos é o caso da máquina. Imagina uma pessoa fazendo um sapato. Na fase artesanal, todo o conhecimento e o poder de fazer algo de valor tá na mão do trabalhador, ele que muda o couro, a borracha e tal, para transformar isso tudo em um sapato. Aqui as ferramentas são acessórios, e o trabalhador é central. Já na fase industrial, a coisa muda de figura: a máquina “sabe” fazer sapatos, ela foi feita para isso, pega tudo e combina as partes para fazer o produto – e o trabalhador fica só regulando a máquina, apertando botões. Ou seja, ele que é acessório, ele não contribui em nada para o valor de uso do sapato – se vai ser um sapato bom ou ruim é culpa de se a máquina é boa ou não.

“Capital fixo” é o nome que o Marx deu para aqueles elementos do processo de produção que contribuem para a valorização do produto – alterando eles, alteramos quanto vale a coisa que estamos produzindo. Nessa fase industrial da coisa, vemos que o trabalhador que aperta botões não faz nada disso: ele é essencial, sem ele a máquina não funciona, mas ele é um apêndice, que pode ser substituído por qualquer outro.

Tanto no caso artesanal quando no caso industrial, que Marx observou de perto, se você olha o trabalhador lá fazendo a função dele, você não vê em que sentido ele está ligado a todos os outros trabalhadores, não vê nenhum sinal de como entender o valor do trabalho dele, a relação entre o trabalho dele e o valor do produto, etc. É por isso que todo mundo fica confuso com a coisa do “trabalho socialmente necessário” lá do começo do Capital: como que funcionaria essa relação de nivelamento? O capitalista faz um levantamento de uma média estatística? A confusão vem do fato de que não há nada para “ver’ se olhamos o trabalho e a vida concreta em busca desse sinal. Só do ponto de vista dos produtos do trabalho, da mercadoria, é que essa dimensão fica visível, e sua influência dentro do processo de produção também.

Pois bem, o ponto é que hoje parece que essa relação entre homem e máquina mudou. Hoje, o principal foco da exploração do capital teria mudado da exploração do tempo de trabalho do individuo como meio de produção, para a exploração do que Marx chamou de “conhecimento social geral”. “Conhecimento social geral” é a conjunto de todo conhecimento técnico e tecnológico e conhecimento social e intelectual. No Grundrisse Marx fala como o desenvolvimento deste como “capital fixo” demonstra como “conhecimento social geral” se tornaram uma força direta de produção e sua fonte é o próprio. Conclusão, o homem tornou-se “capital fixo”, ao invés de somente um meio de produção de capital. Imagine alguém que desenvolveu um software, um programa de computador, o principal valor deste não vem da máquinaria – do computador que ele está usando – mas do uso que ele faz do conhecimento social que tem. Outro exemplo, uma pequena confeitaria artesanal, da mesma maneira que o principal fator de valorização dos bolos e doces caseiros não vem da exploração do tempo de trabalho dos confeiteiros mas do seu conhecimento e experiência, do fato de serem “caseiros”, e não do custo dos meios de produção materiais que foram usados – farinha, leite, etc, ou a gastura do fogão, etc.

Antonio Negri considera essa mudança nascida pelo desenvolvimento do “conhecimento social geral” a força criativa da multitude, ou poder biopolítico da multitude. Um ponto importante é que essa produção é sempre coletiva, Negri chama o conhecimento coletivo de parte dos “Comuns”, a fonte e destino de toda essa produção. O software criado pelo nosso desenvolvedor hipotético usa ferramentas e ideias desenvolvidas por outras pessoas e o nosso software hipotético pode ser usado por outras pessoas para desenvolver novos softwares. No nosso exemplo de confeitaria artesanal, o conhecimento dos confeiteiros pode vir de alguma forma de herança cultural ou experiência, ou seja, o conhecimento veio de algum lugar e pode ser ensinado e passado adiante. Essas relações entre pessoas que caracterizam as relações de trabalho atualmente é o que Negri chama de “trabalho vivo” e é sobre esse trabalho que o capital se expropriaria, através da privatização dos “comuns”, através da propriedade intelectual. Várias das ferramentas necessárias para o desenvolvimento de um software são propriedades, o sistema operacional Windows é a Microsoft, Java, uma linguagem de programação bastante comum, também é uma propriedade porém de um empresa diferente. Na nossa confeitaria artesanal, as receitas podem ser privatizadas sobre uma marca. Então, sobre essa forma de transformação de conhecimento em uma forma de capital fixo, o capital aparenta ser um força posterior ao produção de conhecimento, semelhante a um parasita sobre o trabalho vivo, como é a tese de Negri?

Assim a coisa parece realmente ter se invertido: hoje existe toda uma esfera do trabalho que é imediatamente social, cooperativa, as pessoas se relacionam, produzem a partir de experiências pessoais, de histórias, das ideias dos outros. Ou seja, as relações sociais estão bem visíveis na esfera do trabalho, e é o capital, na forma da propriedade intelectual, das marcas, que vem ‘sumir’ com as relações sociais, com a produtividade cooperativa, e faz parecer que coisas feitas por muitas pessoas são de uma só.

É interessante ver que essa inversão também afeta o nosso pensamento em geral: hoje em dia parece que a gente tem liberdade imediata, que a gente pode fazer o que quiser, se relacionar com quem e como quiser, e são poderes externos que vem limitar nossas ações. Essa teoria política parece vir junto com essa mudança econômica. Agora o trabalho é imediatamente social e a propriedade é que vem tornar ele associal, e as relações são imediatamente livres, e são as normas e regras sociais que vem oprimir essa liberdade, nos restringir.

A tese de Zizek

A questão que o Zizek levanta não é tanto de se existe ou não essa nova forma de trabalho, ligada a produção social, cooperação, etc, mas de se essa nova “transparência” das relações entre pessoas realmente é a tal “relação entre pessoas” que Marx falava desaparecer no fetiche da mercadoria.

Num texto chamado “Começar do começo de novo” ele diz o seguinte:

E se a própria produção contemporânea da multitude, a produzir diretamente vida, produzir ainda um excesso (que é até mesmo funcionalmente supérfluo), o excesso do capital? Por que as relações produzidas imediatamente ainda necessitariam da mediação das relações capitalistas? E se o verdadeiro enigma fosse por que é que o contínuo movimento “molecular” nômade necessita de uma estrutura “molar” parasitária que (enganosamente) aparece como obstáculo à sua produtividade desenfreada? Por que é que, no momento em que abolimos esse obstáculo/excesso perdemos também o fluxo produtivo imposto pelo excesso parasitário?

A pergunta que ele coloca poderia ser traduzida assim: e se o fato de que tudo o que a tal multitude faz e cria pode ser transformado em propriedade privada significar que, no fundo, essa criatividade imediatamente social é ela mesma “informada” por essas relações de propriedade? Lembrando que, lá no Marx do Capital, ele dizia algo bem parecido: se a gente olha a produção do ponto de vista do trabalho concreto, ela parece livre de determinações externas, só parece haver o interesse de cada um, se a gente olha a mesma coisa do ponto de vista das mercadorias, vemos que até mesmo lá na fábrica, onde só víamos liberdade, tem na verdade a mercadoria já informando todas as relações: a equivalência entre produtos do trabalho já está em jogo no trabalho na forma da equivalência entre o tempo de trabalho e a qualidade do trabalho de todo mundo. Ou seja, aquilo que parece vir depois, “do nada”, que é a equivalência entre mercadorias, já estava em jogo, invisível, na esfera que produziu essas mercadorias.

Ora, o que o Zizek questiona é se essa vida criativa, que parece livre da influência da forma do valor capitalista, que só se torna visível com as “marcas” e a propriedade intelectual, se ela já não estaria sendo determinada por aquilo que só “vemos” depois, quando assumimos o ponto de vista do estado etc. O curioso é que o que se tornaria visível assim não são as relações entre pessoas, ocultas atrás das relações entre coisas, mas o contrário. Zizek conclui assim:

Isso significaria que precisamos inverter a referência ao fetichismo em que “relações entre pessoas aparecem como relações entre coisas”: E se a “produção de vida” direta, celebrada por Hardt e Negri, fosse ela mesma falsamente transparente? E se, ali, as relações invisíveis entre as coisas (verdadeiramente imateriais) do capital aparecessem como “relações diretas entre pessoas”?

Ou seja, a gente precisaria bolar uma maneira de pensar o fetichismo que fosse capaz de criticar a aparência de pessoalidade, de concretude, das relações imediatas, não para revelar as “relações entre pessoas” escondidas atrás, mas as relações abstratas entre coisas. É o que o filósofo e economista Moishe Postone chama de “teoria da dominação abstrata” ou impessoal: quando tentamos ser “materialistas” e olhar pra “realidade real” por trás das abstrações do capitalismo, acabamos nos mistificando. E ainda nos achamos marxistas!

Paranoia

Então, o que a gente vem pensando é que quando a gente se confronta com essa situação sem ter uma teoria de como é que atrás dessa vida imediatamente social se escondem relações realmente abstratas, essas sim “reais”, o que acontece é que a gente só tem uma opção. Atrás das relações entre pessoas só pode estar oculto… mais relações entre pessoas! Ou seja: se uma teoria sobre como um grupo de pessoas tem poder sobre outra – uma teoria sobre as relações entre pessoas, afinal – não consegue explicar alguma coisa, a única maneira de resolver essa inconsistência é criar uma teoria mais abrangente, onde essa inconsistência é na verdade prova do poder de um outro grupo de pessoas, mais oculto e secreto.

O filósofo Fredric Jameson chama isso de “mapeamento cognitivo”: a nossa tentativa de dar conta da complexidade abstrata do capitalismo tende a esbarrar no fato de que qualquer “mapa” que reduza as abstrações ao concreto, que tente revelar quem são os agentes dessa confusão toda, acaba mistificando mais do que esclarecendo a situação – mas isso na forma de um esclarecimento. Afinal, achar o nome das pessoas, das organizações, responsáveis pelo que acontece parece bastante mais esclarecedor do que falar em tendência decrescente da tava de lucro, em crise cíclica ou o que valha. Na verdade, a própria ideia de exploração é difícil de “mapear” – pois demanda que a gente pense em termos muito contra-intuitivos, dando prevalência pra relação entre coisas sobre relação entre pessoas numa época em que isso parece ser coisa antiga – e cada vez mais pensamos os problemas do nosso mundo em termos de relações de poder, opressões, e etc.

 

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