Existe uma política propriamente comunista?

Por Gabriel Landi Fazzio

Na luta de classes, os choques com a classe dominante são decisivos à própria definição e organização da classe operária. Aqui há também uma “torção”, como apontado no texto do CEII com precisão: no caso, a torção consiste em que não se trata de ter uma organização que tenha por finalidade a luta contra a classe dominante, mas a própria constituição dessa organização é uma finalidade de cada luta parcial contra tal classe.


Há cerca de dois meses foi publicado texto de camaradas do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII) chamado “O fim da organização”. O título é bastante provocativo (o que, acredito, inclusive contribuiu para o acesso elevado que teve o texto): espera-se um debate sobre a tal crise da forma partido, mas o que se encontra é uma rica discussão sobre a relação entre organização e finalidade. As colocações são, no geral, ricas e intrigantes.

Parto, porém, para o ponto onde tive algumas divergências que considero importante. A exposição aqui, porém, ressalta menos as divergências em si, e pretende mais aportar à discussão, de modo a aprofundar o debate.

Acredito que a afirmação da não existência de uma “política propriamente comunista” está fundada em uma interpretação do Manifesto que poderia ser melhor esmiuçada. Há dois pontos que podem conduzir a isso:

Em primeiro lugar, quando se diz que “os comunistas não formam um partido à parte, oposto aos outros partidos operários”. Por muito tempo, quando militei no PT, levei a ferro e fogo formalmente essa compreensão. Mas é preciso refletir o plural utilizado por Marx, em conexão com outro trecho, logo adiante, onde afirma: “O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.”

Ora, é possível afirmar francamente que os objetivos de “todos os demais partidos proletários” são, ao menos intencionalmente, esses? O que está em jogo aqui é, precisamente, a questão dos “fins gerais do movimento proletários”. O que Marx parece indicar é que, independente da maior ou menor consciência de cada partido, os fins gerais do movimento são o fundamento dessa não diferenciação “partidária” entre os comunistas e os outros partidos operários.

Mais ainda: aqui residem alguns dos primeiros apontamentos sobre a questão da relação entre classe, partido e Estado – ainda desenvolvida de modo incipiente, bem como a própria experiência revolucionária do proletariado era àquela altura da história.

Antes de enveredar por essa questão, vale lembrar como se expõe a questão dos partidos no “O 18 Brumário”:

“Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se haviam congregado no partido da ordem, contra a classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo.”

Na França de 1848, Marx apresenta todo um conjunto diverso de agremiações partidárias conservadoras como um mesmo Partido, o da Ordem, e considera a própria classe proletária como um partido, o “da anarquia, do socialismo, do comunismo”. Esse tipo de afirmação deveria ser abordada em conexão com a ideia, exposta no primeiro artigo do “Luta de classes na França”, de que:

“Numa palavra: o progresso revolucionário abriu caminho não pelas suas conquistas tragicômicas imediatas, mas, inversamente, por ter criado uma poderosa e coesa contrarrevolução, por ter criado um adversário na luta contra o qual é que o partido da subversão amadureceu, só então se tornando num partido verdadeiramente revolucionário.”

Ou seja: na luta de classes, os choques com a classe dominante são decisivos à própria definição e organização revolucionária da classe operária. Aqui há também uma “torção”, como apontado no texto do CEII com precisão: no caso, a torção consiste em que não se trata de ter uma organização que tenha por finalidade a luta contra a classe dominante, mas a própria constituição dessa organização é uma finalidade de cada luta parcial contra tal classe.

Em texto de 1847, Marx defendia que:

“A grande indústria aglomera num mesmo local uma multidão de pessoas que não se conhecem. A concorrência divide os seus interesses. Mas a manutenção do salário, este interesse comum que têm contra o seu patrão, os reúne num mesmo pensamento de resistência – coalizão. A coalizão, pois, tem sempre um duplo objetivo: fazer cessar entre elas a concorrência, para poder fazer uma concorrência geral ao capitalista. Se o primeiro objetivo da resistência é apenas a manutenção do salário, à medida que os capitalistas, por seu turno, se reúnem em um mesmo pensamento de repressão, as coalizões, inicialmente isoladas, agrupam-se e, em face do capital sempre reunido, a manutenção da associação torna-se para elas mais importante que a manutenção do salário. […] Nessa luta, – verdadeira guerra civil – reúnem-se e se desenvolvem todos os elementos necessários a uma batalha futura. Uma vez chegada a esse ponto, a associação adquire um caráter político.

As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma situação comum, interesses comuns. Essa massa, pois, é já, em face do capital, uma classe, mas ainda não o é para si mesma. Na luta, […], essa massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política.

O jargão hegeliano contido em “classe para si mesma” é abandonado, posteriormente, numa melhor exposição no Manifesto: passa-se a falar em “Estado, isto é, o proletariado organizado em classe dominante”. Ou, novamente, quando se fala que:

“Vimos acima que a primeira fase da revolução operária é o advento do proletariado como classe dominante, a conquista da democracia.”

Sem avançar na questão propriamente da relação entre classe, partido e Estado, parece oportuno então adentrar o segundo ponto sobre a inexistência de uma política propriamente comunista: a questão dos princípios.

“Não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretendam moldar o movimento operário”. Essa afirmação não implica que o marxismo não tenha questões de princípio. A questão aqui reside na polêmica com os socialistas utópicos, os sindicalistas, os cooperativistas, os blanquistas – enfim, os setores do movimento social que advogavam uma ou outra forma de luta como principal por princípio. É a isso que Marx remete no Manifesto, mais adiante, quando afirma:

“As concepções teóricas dos comunistas não se baseiam, de modo algum, em ideias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob os nossos olhos.”

Como em muitos outros casos, coube a Lenin, esse colossal articulador entre o “pensamento” e “ação efetiva”, expor a questão de modo mais categórico e nítido:

“Comecemos pelo começo. Quais são as exigências fundamentais que qualquer marxista deve apresentar ao exame da questão das formas de luta? Em primeiro lugar, o marxismo distingue-se de todas as formas primitivas de socialismo pelo facto de ele não amarrar o movimento a qualquer forma determinada e única de luta. Ele reconhece as mais diferentes formas de luta, e além disso não as “inventa”, mas apenas generaliza, organiza, dá consciência àquelas formas de luta das classes revolucionárias que surgem por si no curso do movimento. Absolutamente hostil a todas as fórmulas abstratas, a todas as receitas doutrinárias, o marxismo exige uma atitude atenta em relação à luta de massas em curso, a qual, com o desenvolvimento do movimento, com o crescimento da consciência das massas, com a agudização das crises económicas e políticas, gera métodos sempre novos e cada vez mais diversos de defesa e de ataque. Por isso o marxismo não renuncia absolutamente a nenhumas formas de luta. O marxismo não se limita em nenhum caso às formas de luta possíveis e existentes apenas num dado momento, reconhecendo a inevitabilidade de novas formas de luta, desconhecidas dos participantes do período dado, com a modificação da conjuntura social dada. O marxismo neste aspecto aprende, se assim nos podemos exprimir, com a prática das massas, está longe da pretensão de ensinar às massas formas de luta inventadas por “sistematizadores” de gabinete. Nós sabemos — disse, por exemplo, Kautsky ao analisar as formas da revolução social — que a crise futura nos trará novas formas de luta que nós não podemos prever agora.

Em segundo lugar, o marxismo exige um exame absolutamente histórico da questão das formas de luta. Colocar esta questão fora da situação histórica concreta significa não compreender o á-bê-cê do materialismo dialético. Em diferentes momentos da evolução económica, dependendo das diferentes condições políticas, nacionais-culturais, de vida, etc., diferentes formas de luta passam para primeiro plano, tornam-se as principais formas de luta, e, em ligação com isto, modificam-se também as formas secundárias, acessórias, de luta. Tentar responder por sim ou não à questão da utilização de um determinado meio de luta, sem examinar detalhadamente a situação concreta do movimento dado no grau dado do seu desenvolvimento, significa abandonar completamente o terreno do marxismo.”

Ou seja: não há, certamente, uma tática propriamente comunista. Os comunistas admitem como válidas todas as formas de luta, sendo sua oportunidade julgada com base na “situação concreta”. Por outro lado, há uma estratégia propriamente comunista, que é o reflexo da questão sobre objetivos:

“O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.  […] O proletariado usará a sua dominação política para arrancar a pouco e pouco todo o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção na mão do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção. Naturalmente isto só pode primeiro acontecer por meio de intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, através de medidas, portanto, que economicamente parecem insuficientes e insustentáveis mas que no decurso do movimento levam para além de si mesmas e são inevitáveis como meios de revolucionamento de todo o modo de produção.  […] Lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento.”

Retornamos, evidentemente, à questão dos “fins gerais”. E seria interessante abordar isso mais a fundo como uma das “qualidades dos comunistas” antes de afirmar categoricamente a não existência de uma política propriamente comunista, em uma reflexão que trata da conexão entre organização e finalidade.

Contudo, há algo de fundamental no texto dos camaradas do CEII: precisamente a recusa em entender como definidora da atividade revolucionária comunista tal ou qual forma de luta, tal ou qual tática, tal ou qual objetivo parcial. É precisamente porque a atividade comunista não se limite às lutas econômico-práticas de resistência aos capitalistas, mas ao mesmo tempo cria toda uma série de novas necessidades, muitas vezes tão somente culturais, que podemos afirmar, como Gramsci: “Vale a pena viver quando se é comunista”.

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3 comentários em “Existe uma política propriamente comunista?”

  1. Considero que, com o surgimento do fascismo, o objetivo dos comunistas deveria ser construir uma sólida organização, uma frente, capaz de lutar na longa duração contra a direita, formulando e lutando por uma alternativa, que julgo hoje ser ecossocialista, para ir solucionando a crise geral do capitalismo.

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  2. Penso que, com a existência do fascismo, os comunistas deveriam formar uma sólida organização, uma frente, capaz de lutar na longa duração por um projeto, que julgo ser ecossocialista, contra a crise geral do capitalismo.

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