Notas para uma definição de cultura comunista

Por Slavoj Žižek, via Artefilosofia

“Como Mladen Dolar observou, seu trinar sem sentido (uma canção desprovida de sentido, i.e., reduzida ao objeto-voz) funciona como o urinoir de Marcel Duchamp, que é um objeto de arte não por causa de alguma de suas propriedades materiais inerentes, mas apenas porque ocupa o lugar de um artista – em si mesma, ela [Josefina] é exatamente igual a todos os membros “comuns” do povo. Aqui, cantar é, assim, a “arte da mínima diferença” – o que diferencia sua voz das outras vozes é de uma natureza puramente formal. Em outras palavras, Josefina é um marcador puramente diferencial: ela não traz para o seu público – o povo – nenhum conteúdo espiritual profundo; o que ela produz é a diferença entre o “silêncio absoluto” do povo e seu silêncio “enquanto tal”, marcado como silêncio por oposição ao seu canto.”


“Josefina, a Cantora, ou o Povo dos Camundongos”[1] é o último conto de Franz Kafka, escrito imediatamente antes de sua morte – de modo que tal conto poderia ser considerado como o testamento de Kafka, sua última palavra (enquanto o escrevia, ele sabia que estava morrendo). “Josefina” é, então, a alegoria do destino do próprio Kafka-o-artista? Sim e não: quando Kafka estava escrevendo o conto, ele já havia perdido sua voz devido à sua garganta inflamada (ademais, ele era, como Freud, desprovido de qualquer sensibilidade para a música). Ainda mais importante é o fato de que no momento em que Josefina desaparece, ao fim do conto, Kafka, ele mesmo, QUERIA desaparecer, apagar todos os traços após sua morte (que se lembre de sua ordem para Max Brod de queimar todos os seus manuscritos). Mas a verdadeira surpresa é que o resultado não é a esperada angústia existencial misturada com um erotismo viscoso – o resultado é a simples história de Josefina, uma cantora-camundongo, e sua relação com o povo dos camundongos (a tradução de Volk por “folk”[2] introduz uma dimensão populista completamente injustificada). Embora Josefina seja amplamente admirada, o narrador (um “eu” anônimo) lança uma dúvida sobre a qualidade do canto de Josefina:

É canto então? Não será talvez um simples trinado [Pfeifen / pipe]? Todos sabemos que o trinado é a verdadeira aptidão artística de nosso povo, ou melhor não uma aptidão, mas uma característica expressão vital. Todos trinamos, mas não ocorre a ninguém que trinar seja uma arte, trinamos sem dar importância a isso, até sem percebermos, e muitos dentre nós nem sequer sabem que trinar é uma de nossas singularidades. Portanto, se for verdade que Josefina não canta mas apenas trina, e que talvez, como eu pelo menos creio, seu trinado não vai além dos limites do trinado comum – é até possível que suas forças não sejam suficientes nem sequer para igualar nosso trinado habitual, haja vista que um simples trabalhador da terra pode, sem esforço, trinar o dia inteiro, enquanto faz seu trabalho –, se tudo isso for verdade, então a suposta habilidade vocal de Josefina seria, de fato, refutada, mas faltaria resolver o verdadeiro enigma, que é sua enorme influência (KAFKA, 1977, p. 14).[3]

Como o narrador o coloca, “esse seu trinado não é trinado” [“this piping of hers is no piping”] – uma fala que faz lembrar inevitavelmente o título do famoso quadro de Magritte, de modo que se pode imaginar um quadro de Josefina trinando, com o título: “isso não é trinar” [“this is not piping”][4] … O primeiro tópico do conto é o enigma da voz de Josefina: se não há nada de especial nela, por que gera tamanha admiração? O que é “em sua voz mais do que a própria voz”? Como Mladen Dolar observou, seu trinar sem sentido (uma canção desprovida de sentido, i.e., reduzida ao objeto-voz) funciona como o urinoir de Marcel Duchamp, que é um objeto de arte não por causa de alguma de suas propriedades materiais inerentes, mas apenas porque ocupa o lugar de um artista – em si mesma, ela [Josefina] é exatamente igual a todos os membros “comuns” do povo. Aqui, cantar é, assim, a “arte da mínima diferença” – o que diferencia sua voz das outras vozes é de uma natureza puramente formal.[5] Em outras palavras, Josefina é um marcador puramente diferencial: ela não traz para o seu público – o povo – nenhum conteúdo espiritual profundo; o que ela produz é a diferença entre o “silêncio absoluto” do povo e seu silêncio “enquanto tal”, marcado como silêncio por oposição ao seu canto. Por que, então, se a voz de Josefina é igual a de todos os outros, ela é necessária?, por que o povo se reúne para ouvi-la? Seu trinado-canto é um mero pretexto – no fim das contas, o povo se reúne por se reunir:

Como trinar é um de nossos hábitos inconscientes, poderia supor-se que também na audiência de Josefina se ouvem trinados; sua arte nos faz sentir felizes, e, quando estamos felizes, trinamos; mas sua audiência nunca trina, conserva um silêncio total, como se nos tornássemos partícipes da sonhada calma da qual nosso trinado nos afastaria, e, assim, nos calamos. É seu canto que extasia, ou não será antes o solene silêncio que envolve sua frágil pequena voz? (KAFKA, 1977, p. 16).

A última fala reitera o ponto chave: o que importa não é sua voz enquanto tal, mas o “solene silêncio”, o momento de paz, de afastamento do trabalho pesado, que (a audição de) sua voz propicia. Aqui, o conteúdo sociopolítico se torna relevante: o povo dos camundongos leva uma vida tensa e severa, difícil de suportar, sua existência é sempre precária e ameaçada, e o caráter bastante precário do trinar de Josefina funciona como um substituto da existência precária de todo o povo dos camundongos:

Nossa vida é muito inquieta, cada dia nos traz novas surpresas, temores, esperanças e sustos, de modo que o indivíduo isolado não poderia suportá-la se não contasse, dia e noite, com o apoio de seus companheiros; mas mesmo assim seria bastante difícil; muitas vezes, milhares de ombros cambaleiam sob uma carga destinada a um só par. (…) Esse trinado que emerge quando todos estão entregues ao silêncio chega como uma mensagem do povo inteiro a cada um de nós; o tênue trinado de Josefina em meio a esses momentos de graves decisões é quase como a precária existência de nosso povo em meio ao tumulto de um mundo hostil. Josefina se impõe, com seu nada de voz, com seu nada de execução, se impõe e nos atinge; faz-nos bem pensar nisso (KAFKA, 1977, p.17; 22).

Josefina “é, assim, o veículo para a afirmação da coletividade: ela reflete para o povo a sua identidade coletiva” (JAMESON, 1994 [1997], p. 125 [132])[6]; ela é necessária porque “só a intervenção da arte e do tema do grande artista poderia tornar possível perceber o essencial anonimato do povo, que não tem sensibilidade para a arte, nenhuma reverência pelo artista (…)” (JAMESON, 1994 [1997], p. 125 [131]). Em outras palavras, Josefina “faz com que [o povo] se reúna em silêncio – isso seria possível sem ela? Ela constitui o elemento de exterioridade necessário que, sozinho, permite que a imanência tome corpo” (JAMESON, 1994 [1997], p. 125 [131]). Isso nos traz à lógica da exceção constitutiva da ordem da universalidade: Josefina é o Um heterogêneo através do qual o Todo homogêneo do povo é posto (se percebe) enquanto tal. Aqui, entretanto, vemos por que a comunidade de camundongos não é uma comunidade hierárquica com um Mestre, mas uma comunidade “comunista” radicalmente igualitária: Josefina não é venerada como um Mestre ou Gênio carismático, seu público está perfeitamente ciente de que ela é apenas um deles. Então, a lógica não é nem mesmo aquela do Líder que, com sua posição excepcional, estabelece e garante a igualdade de seus súditos (que são iguais em sua identificação mútua com seu Líder) – a própria Josefina tem de dissolver sua posição especial nessa igualdade. Isso nos traz à parte central do conto de Kafka, a detalhada, muitas vezes cômica, descrição do modo como Josefina e seu público, o povo, se relacionam. Precisamente porque o povo sabe que a função de Josefina é apenas reuni-los, eles a tratam com uma indiferença igualitária; quando ela “demanda (…) privilégios especiais (isenção do trabalho braçal) como compensação pelo seu trabalho ou, de fato, como reconhecimento de sua distinção única e de seus insubstituíveis serviços à comunidade” (JAMESON, 1994 [1997], p. 126 [132]), não lhe são concedidos quaisquer favores especiais:

Há muito tempo, talvez desde o começo de sua carreira artística, Josefina luta por obter isenção do trabalho diário por conta de seu canto; ser-lhe-iam evitadas assim as preocupações relativas ao pão de cada dia e tudo o que nossa existência implica, o que – aparentemente – seria transferido, em seu benefício, à comunidade como um todo. Um entusiasta fácil – e houve alguns entre nós – poderia deduzir da mera esquisitice desse pedido, e da disposição espiritual que semelhante pedido implica, a autojustificação do mesmo. Mas o nosso povo tira outras conclusões, e tranquilamente o recusa. Tampouco se preocupa demais em refutar suas implicações básicas. Josefina argumenta, por exemplo, que o esforço do trabalho prejudica sua voz, que o esforço do trabalho não é nada comparado ao esforço de cantar, mas que a impede de descansar suficientemente depois docanto e retomar forças para novas canções, e, portanto, ela se vê obrigada a esgotar-se completamente, e nessas condições não pode alcançar nunca o auge de suas possibilidades. O povo ouve-a e não lhe faz caso. Nosso povo, tão facilmente comovido, em certas ocasiões não se deixa comover por nada. Sua recusa é, às vezes, tão decidida, que até Josefina se surpreende, parece submeter-se, realiza a parte que lhe cabe de trabalho, canta o melhor que pode, mas apenas durante algum tempo, e, então, com força renovada – pois nesse sentido sua energia parece inexaurível – retoma seus protestos (KAFKA, 1977, p. 26-27).

Eis por que, quando Josefina desaparece, narcisicamente contando com o fato de que sua ausência fará com que o povo sinta sua falta (como uma criança que, não se sentindo amada o suficiente, foge de casa, na esperança de que seus pais irão sentir sua falta e desesperadamente procurá-la), i. e., imaginando como irão fazer seu luto, ela erra completamente o cálculo de sua posição:

Ela é apenas um pequeno episódio na eterna história de nosso povo, e este povo superará sua perda. Não que isso será fácil para nós; como faremos para reunirmo-nos em completo silêncio? Ainda assim, nossas reuniões não eram silenciosas mesmo quando Josefina estava presente? Era, afinal de contas, seu trinado mais forte e mais vivo do que será sua lembrança? Era, por acaso, mesmo em vida de Josefina algo mais do que uma simples lembrança? Não terá sido, talvez, porque, em certo sentido, era imortal, que o povo, em sua sabedoria, apreciou tanto o canto de Josefina?

Então, talvez não percamos muito, no fim das contas; enquanto Josefina, livre dos pesares terrenos que, segundo ela, estão destinados a todos os espíritos escolhidos, se perderá alegremente no inumerável roldão dos heróis de nosso povo, e, logo, como não somos historiadores, ascenderá às alturas da redenção e será esquecida como todos os seus irmãos (KAFKA, 1977, p. 32).

Fredric Jameson estava certo em ler “Josefina” como a utopia sociopolítica de Kafka, sua visão de uma sociedade comunista radicalmente igualitária – com a exceção singular de que Kafka, para quem os humanos são sempre marcados por uma culpa superegóica, só foi capaz de imaginar uma sociedade utópica entre animais. Deve-se resistir à tentação de projetar qualquer tipo de tragédia no desaparecimento e morte de Josefina: o texto deixa claro que, após sua morte, Josefina “se perderá alegremente no inumerável roldão dos heróis de nosso povo” (KAFKA, 1977, p. 32; grifos acrescentados):

Talvez o ponto alto dessa história de Kafka, em que, mais do que em outro ponto qualquer, a gelada indiferença dessa Utopia da democracia mais surpreendentemente se revela (porém se revela por meio do nada e de nenhuma reação), esteja na recusa do povo em conceder a ela essa forma de diferenciação individual. (…) Na medida em que Josefina faz aparecer a essência do povo, ela também faz emergir, igualmente, essa indiferença essencial do anônimo e o radicalmente democrático. (…) A Utopia é precisamente a elevação a partir da qual se dão o esquecimento e a obliteração da espécie (…); é o anonimato como força intensamente positiva, como o fato mais fundamental da vida da comunidade democrática; e é esse anonimato que em nosso mundo pré ou não-utópico recebe o nome e a caracterização da morte (JAMESON, 1994 [1997], p. 126-128 [132-134]).

Note-se como Josefina é tratada como uma celebridade, mas não fetichizada – seus admiradores são bem cientes de que não há nada de especial nela, que ela é apenas mais um deles. Para parafrasear Marx, ela pensa que o povo a admira porque ela é uma artista, mas, na realidade, ela é uma artista só porque o povo a trata como tal. Aqui, temos um exemplo de como, em uma sociedade comunista, o significante-mestre é ainda operativo, mas desprovido de seu efeito fetichista – a crença de Josefina nela mesma é percebida pelo povo como um narcisismo inofensivo e um tanto quanto ridículo, que deveria ser gentilmente, mas de maneira irônica, tolerado e sustentado. É como os artistas devem ser tratados numa sociedade comunista – eles devem ser louvados e lisonjeados, mas não lhes deve ser concedido qualquer privilégio material, como a isenção do trabalho ou alguma comida especial. Numa carta a Joseph Weydemeyer de 1852, Marx aconselha seu amigo sobre como lidar com Ferdinand Freiligrath, um poeta que era, politicamente, comunista:

Escreva a Freiligrath uma carta amigável. Você não precisa ser demasiado econômico com os elogios, pois todos os poetas, até mesmo os melhores, são plus au moins courtisanes [mais ou menos cortesãs] e il faut les cajoler, pour les faire chanter [é preciso os adular para fazê-los cantar]. Nosso F. é o homem mais amável e despretensioso na vida privada, que, sob sua verdadeira bonhomie [simplicidade de maneiras e bondade], oculta un esprit très fin et très railleur [esconde um espírito muito fino e muito zombeteiro]; sua emoção é ‘cheia de verdade’ e não o torna ‘acrítico’ e ‘supersticioso’. Ele é um genuíno revolucionário e um homem honesto ao fim e ao cabo – e isso pode ser dito de poucos homens. Não obstante, independentemente do tipo de homme que ele é, o poeta precisa de louvor e admiração. Acredito que o próprio gênero o requer. Digo-lhe tudo isso simplesmente para destacar que, em sua correspondência com Freiligrath, você não deve esquecer a diferença entre o ‘poeta’ e o ‘crítico’.[7]

O mesmo vale para a pobre Josefina? Independentemente do tipo de femme que ela é, a artista precisa de louvor e admiração – o própriogênero o requer… De fato, para colocá-lo em bons e velhos termos stalinistas: Josefina, a Artista do Povo da República Soviética de Camundongos… Então, qual seria a fisionomia de uma cultura comunista?

A primeira lição do “Josefina” de Kafka é que temos que endossar, desavergonhadamente, uma intensa imersão no corpo social, uma performance social ritualística partilhada, que colocaria os bons e velhos liberais em choque e estupefação pela sua intensidade “totalitária” – algo a que Wagner almejava em suas grandes cenas ritualísticas ao fim dos Atos I e III do Parsifal. Como o Parsifal, os grandes shows do Rammstein (digamos, aquele na arena de Nimes, em 23 de julho de 2005) deveriam também ser chamados Buehnenweihfestspiel (“performance de celebração”), que é o “veículo para a afirmação da coletividade” (JAMESON, 1994 [1997], p. 125 [132]). Todos os preconceitos individualistas-liberais devem ceder aqui – sim, cada indivíduo deve estar inteiramente imerso numa multidão, abandonando alegremente sua mente crítica individual, a paixão deve obliterar a razão, o público deve seguir o ritmo e as ordens dos líderes no palco, a atmosfera deve ser inteiramente “pagã”, a inextricável mistura do sagrado e do obsceno, etc. A própria superidentificação com sinthomas “totalitários” teria suspendido sua articulação em um espaço ideológico propriamente “totalitário”.

Façamos, uma vez mais, um desvio pelo cinema. Um dos modos confiáveis de se identificar um pseudointelectual semiformado é sua reação à bem conhecida cena de Cabaret de Bob Fosse, na qual, numa estalagem do interior, a câmera mostra o rosto de um jovem loiro em close-up – ele começa a pensar sobre como a natureza está gradualmente despertando, como os pássaros começam a cantar novamente, etc.; a câmera se move até dois de seus camaradas, uma moça e um rapaz, que se juntam a ele cantando; então, todos os hóspedes da estalagem se juntam a eles, o canto vai ficando mais e mais apaixonado, a letra da canção descreve como a pátria deveria também despertar, e, finalmente, percebemos no braço do cantor uma tira com uma suástica… A reação do pseudointelectual é algo como: “Só agora, vendo essa cena, entendo o que foi o nazismo, como ele se apoderou dos alemães!” A ideia subjacente é que o cru impacto emocional das canções responde pela força de atração do nazismo, e, assim, nos diz, mais do que qualquer estudo da ideologia nazista, como ele funcionava efetivamente. Esse foi, grosso modo, o argumento da famosa análise de Susan Sontag da obra de Leni Riefenstahl[8]: é fascista não só quando explicitamente celebra o regime nazista; a própria textura de toda sua obra (sua obsessão com a beleza corporal e com a disciplina, etc.) é “proto-fascista”. Seu “proto-fascismo” começou com seu Bergfilme[9] de juventude, que celebrava o heroísmo e o esforço corporal nas condições extremas do montanhismo; seguiram-se seus dois documentários nazistas, celebrando a disciplina política e corporal-esportiva, a concentração e a força de vontade; então, após a segunda Guerra Mundial, em seus álbuns de fotografia, ela redescobriu seu ideal de beleza corporal e de um gracioso domínio de si na tribo africana dos Nubi; finalmente, nas últimas décadas, ela aprendeu a difícil arte do mergulho em alto-mar, e começou a filmar documentários sobre a estranha vida nas escuras profundezas do oceano. Seguindo a mesma linha de raciocínio, tem-se o suposto caráter “proto-fascista” das coreografias de massa que exibem movimentos disciplinados de milhares de corpos (paradas, performances de massa em estádios, etc.); se ele é encontrado também no socialismo, imediatamente se chega à conclusão de uma “profunda solidariedade” entre os dois “totalitarismos”… Aqui, devemos claramente discordar. Tal procedimento, protótipo do liberalismo ideológico, deixa escapar o essencial: não só tais performances de massa não são inerentemente fascistas; elas não são nem mesmo “neutras”, esperando para serem apropriadas pela esquerda ou pela direita – foi o nazismo que as roubou dos movimentos dos trabalhadores, seu lugar original de nascimento, e se apropriou delas. Nenhum dos elementos “proto-fascistas” é per se fascista, o que os torna “fascista” é apenas sua articulação específica – ou, para colocá-lo nos termos de Stephen Jay Gould, todos esses elementos são “ex-apted[10] pelo fascismo. Em outras palavras, não há “fascismo avant la lettre”, porque é a própria letra (a nomeação) que cria, a partir de um feixe de elementos, o fascismo propriamente dito.

Então, de volta à canção de Cabaret: não há nada nela “inerentemente fascista”, ou “proto-fascista” – pode-se facilmente imaginar a mesma canção, apenas com uma letra um pouco modificada (celebrando o despertar da classe proletária do sono de sua escravidão), como um grito de guerra comunista. A paixão é aquilo que Badiou teria chamado o Real inominável da canção, a fundação libidinal neutra que pode ser apropriada por diferentes ideologias. (De modo similar, Sergei Eisenstein tentou isolar a economia libidinal das meditações de Inácio de Loyola, que pode, então, ser apropriada pela propaganda comunista – o sublime entusiasmo pelo Cálice Sagrado e o entusiasmo dos fazendeiros kolkhoz pela nova máquina de fazer manteiga a partir do leite são sustentados exatamente pela mesma “paixão”). Antigos libertários esquerdistas percebem o gozo [enjoyment] como um poder emancipatório: todo poder opressivo tem de se apoiar numa repressão libidinal, e o primeiro ato de liberação é tornar livre a libido. Os velhos esquerdistas puritanos são, ao contrário, inerentemente desconfiados em relação ao gozo: para eles, trata-se de um poder de corrupção e decadência, um instrumento daqueles no poder para manter seu domínio sobre nós, de modo que o primeiro ato de liberação é se livrar do feitiço do gozo sobre nós. A terceira posição é aquela de Badiou: o gozo [jouissance] é o “infinito” inominável, uma substância neutra que pode ser instrumentalizada de diversas maneiras.

Na era atual, de permissividade hedonista como ideologia dominante, é chegada a hora para a esquerda (re)apropriar a disciplina e o espírito de sacrifício: não há nada inerentemente “fascista” nesses valores – para citar Badiou: “Precisamos de uma disciplina popular. Diria até mesmo (…) que ‘aqueles que nada têm, têm apenas sua disciplina.’ O pobre, aqueles sem meios financeiros ou militares, aqueles sem poder – tudo que eles têm é sua disciplina, sua capacidade de agir em conjunto. Essa disciplina já é uma forma de organização.”[11] Verdadeira poesia também requer grande disciplina – não é de se surpreender que três dos maiores poetas do século XX (mais precisamente, um escritor e dois poetas) eram funcionários de banco ou agentes de seguro: Franz Kafka, T. S. Eliot, Wallace Stevens. Eles precisavam da disciplina de lidar com o dinheiro não só como um contraponto à licença poética, mas como meio para instalar ordem no próprio fluxo da inspiração poética. A arte poética é uma luta constante contra sua própria fonte: a arte própria à poesia consiste no modo como se represa o livre fluxo da inspiração poética. Eis por que – em concordância com a metáfora bancária – não há nada de liberador em captar a mensagem de um poema; é antes algo como receber uma mensagem (uma carta) das autoridades tributárias, informando-me minha posição quanto à minha dívida para com o grande Outro.

Onde, então, se encontra a ideologia aqui? Em cada edifício militar, a disciplina é sustentada pelo obsceno subterrâneo de rituais sexualizados, humilhações, violações de regras morais. Como podemos minar a eficiência desse obsceno subterrâneo? Encenando-o abertamente. Duas décadas atrás, em Caríntia – Kärnten –, uma província do sul da Áustria que faz fronteira com a Eslovênia, nacionalistas alemães organizaram uma campanha contra a suposta “ameaça” eslovena, sob o mote “Kärnten bleibt deutsch!” [Kärnten permanecerá alemã], para o qual esquerdistas austríacos encontraram uma resposta perfeita. Ao invés da contra-argumentação racional, eles simplesmente imprimiram, nos principais jornais, um anúncio com variações obscenas, cacofônicas do mote dos nacionalistas: “Kärnten deibt bleuts-ch! Kärnten leibt beutsch! Kärnten beibt dleutsch!”… Não é esse procedimento digno do discurso obsceno, “anal”, sem sentido proferido por Hynkel, figuração de Hitler em O grande ditador, de Chaplin? É o que o Rammstein[12], banda de rock que faz parte da Neue Deutsche Härte (o “Novo Hard Alemão”)[13], faz com a ideologia totalitária: ele a dessemantiza e traz à tona seu balbucio obsceno, em sua intrusiva materialidade. Daniel Dennett enfatizou a importância do fato de que “as crianças gostam de conversar consigo mesmas” (DENNETT, 1996 [1997], p. 197 [134])[14] não um discurso articulado, completo, mas uma espécie de “autocomentário semientendido” (DENNETT, 1996 [1997], p. 197 [135]), repetindo, através de mímica e imitação, pedaços de frases entreouvidos de seus pais:

As verdadeiras emanações vocálicas consistiriam de início em grandes quantidades de ‘rabiscos’ – um falar sem sentido composto por sons que lembram palavras – misturados com palavras reais vocalizadas com muito sentimento mas pouca ou nenhuma apreciação de seus significados, e umas poucas palavras compreendidas (DENNETT, 1996 [1997], p. 197 [135]).

Esse balbucio provê “âncoras de familiaridade” (DENNETT, 1996 [1997], p. 198 [135]), nós de significado potencial identificados/ reconhecidos como “iguais”, independentemente de seus significados: “Uma palavra pode tornar-se familiar mesmo sem ser compreendida” (DENNETT, 1996 [1997], p. 198 [135]). Esse balbucio tem que ser desprovido de sentido próprio: primeiramente, os significantes têm que ser cristalizados como entidades identificáveis; é só então que eles podem adquirir um sentido adequado. E não é esse balbucio aquilo que Lacan denominava lalangue (lalíngua), precedente à linguagem articulada, à sucessão de Uns – significantes de jouissense (“gozo do sentido” [“enjoymeant”])? Em outras palavras, quando Dennett escreve que “as crianças gostam [enjoy] de conversar consigo mesmas” (DENNETT, 1996 [1997], p. 197 [134]), o gostar [“enjoyment”] deve ser tomado aqui num sentido estritamente lacaniano[15]. E tal balbucio também pode funcionar como uma excelente intervenção política.

Eis, então, o que o Rammstein faz com a ideologia totalitária: ele a dessemantiza e traz à tona seu balbucio obsceno, em sua intrusiva materialidade. A música do Rammstein não exemplifica perfeitamente a distinção entre sentido e presença, a tensão numa obra de arte entre a dimensão hermenêutica e a dimensão da presença?; dimensão que Lacan indicou pelo termo sinthoma (fórmula-nó do gozo), em oposição ao sintoma (portador do sentido). O que Lacan conceitualiza são as dimensões não-semânticas do próprio simbólico. A identificação direta com o Rammstein é uma superidentificação direta com sinthomas, que solapa a identificação ideológica. Não deveríamos temer essa superidentificação direta, mas a articulação desse caótico campo de energia em um universo (fascista) de sentido. Não é de se admirar que a música do Rammstein seja violenta, materialmente presente, invasiva, intrusiva com seu volume alto e vibrações profundas – sua materialidade está em constante tensão com seu sentido, solapando-o.

Deve-se, portanto, resistir à tentação-de-Susan-Sontag de rejeitar como ideologicamente suspeita a música do Rammstein, com seu extensivo uso de imagens e motivos nazistas – o que Rammstein faz é o exato oposto: levando os ouvintes a uma identificação direta com os sinthomas usados pelos nazistas, contornando sua articulação com a ideologia nazista, eles tornam palpável a lacuna em que a ideologia impõe a ilusão de uma unidade orgânica sem costuras. Em suma, o Rammstein libera esses sinthomas de sua articulação nazista: eles são oferecidos à fruição em seu status pré-ideológico de “nós” de investimento libidinal. Não se deve temer, assim, tirar uma conclusão radical: apreciar os filmes pré-nazistas de Riefenstahl, ou a música de bandas como o Rammstein, não é ideologia; enquanto a luta contra a intolerância racista em termos de tolerância é.

Então, quando – ao assistir um videoclipe do Rammstein exibindo uma garota loira em uma jaula, vestindo uniformes escuros evocando guerreiros nórdicos etc. –, alguns liberais esquerdistas temem que o público inculto não irá captar a ironia (se é que há alguma) e se identificará diretamente com a sensibilidade proto-fascista ali apresentada, deve-se contrapor a eles o bom e velho mote: a única coisa de que devemos ter medo é do próprio medo[16]. O Rammstein solapa a ideologia totalitária não pela distância irônica relativamente aos rituais que imita, mas nos confrontando diretamente com sua materialidade obscena, e, desse modo, suspendendo sua eficiência. Então, não tenham medo, apreciem Rammstein! Alejandro Zaera Polo formulou o deslocamento que vai do rock clássico, com seu “individualismo revolucionário”, até seus desenvolvimentos tardios mais “imersivos”:

Outro caso relevante de como a política da produção cultural evoluiu sob o efeito da globalização e da tecnologia digital pode ser encontrado na cultura da música eletrônica contemporânea: oposta ao individualismo revolucionário do rock’n’roll, a cultura da música techno não tem nem uma aberta aspiração revolucionária, nem uma formulação utópica. Ela opera dentro do sistema. Para tanto, a música techno substitui elementos musicais mais tradicionais – melodia e harmonia – por uma textura que absorve a multiplicidade de posições e pelo ritmo, como formas primárias de expressão. A imagem da rave, um ambiente coletivo capaz de mobilizar multidões de pessoas em um ritmo único, parece ser a perfeita encarnação da democracia associativa como coexistência de populações heterogêneas e associações informais.[17]

Deve-se, não obstante, traçar uma clara linha de distinção, no interior desse campo, entre o techno apaziguante (que claramente “opera dentro do sistema”) e a brutalidade irrefreada do Rammstein, que solapa o sistema não através de alguma visão crítico-utópica, mas pela própria brutalidade obscena da imersão que ele leva a cabo. Mas aqui vem a surpresa: tal dissolução da “individualidade crítica” não leva a uma uniformidade dionisíaca – ela, na verdade, limpa o caminho e abre o campo para autênticas idiossincrasias. Mais precisamente, o que tal imersão apaixonada suspende não é, primariamente, o “Eu [Self] racional”, mas o reino do instinto [instinct] de sobrevivência (autopreservação), sobre o qual, como Adorno sabia bem, o funcionamento de nosso ego “normal”, racional, se baseia:

Especulações sobre as consequências de uma tal remoção geral da necessidade de um instinto de sobrevivência (sendo tal remoção, em geral, o que chamamos propriamente de Utopia) nos leva muito além dos limites do mundo da vida social e do estilo de classe (ou nosso próprio) de Adorno, e em direção a uma Utopia de desajustados e excêntricos, na qual a coação à uniformização e conformidade é removida, e os seres humanos crescem selvagens como plantas em estado natural (…); não estando mais agrilhoados pelos cerceamentos de uma sociabilidade agora opressiva, [eles] desabrocham como neuróticos, compulsivos, obsessivos, paranoicos e esquizofrênicos, aqueles que nossa sociedade considera doentes, mas que, num mundo de verdadeira li-berdade, podem constituir a flora e a fauna da própria ‘natureza humana’ (JAMESON, 1994 [1997], p. 99 [107]).

Há, é claro, um terceiro e crucial – estruturalmente predominante – elemento da cultura comunista: o espaço frio, universal, do pensamento racional (Badiou está certo em enfatizar que, no nível mais elementar, o pensamento enquanto tal, em contraste com a fabulação mítico-poética, é comunista; sua prática incorpora o axioma da igualdade incondicional). Juntos, eles formam a tríade hegeliana do Universal, Particular e Singular (imersão ritualística na substância social particular, idiossincrasia singular, pensamento universal), na qual cada elemento permite aos outros dois manterem-se separados: o pensamento universal impede a idiossincrasia singular de ser aprisionada na substância social (a cada um, sua mania: você pode misturar vinho tinto com Coca-Cola, você pode só foder apoiado sobre um radiador quente, você pode preferir Virginia Woolf a Daphne du Maurier – que, por sinal, é uma escritora muito melhor do que Woolf –… faça sua escolha!); idiossincrasias pessoais impedem a substância social de colonizar o pensamento universal; a substância social impede o pensamento universal de tornar-se expressão abstrata da idiossincrasia pessoal. O exemplo de Jameson de uma tal comunidade utópica é o Chevengur de Andrei Platonov – mas não encontramos, mais perto de nossa cultura contemporânea, o mesmo motivo em populares séries televisivas e filmes de fi cção científi ca (Heroes, X-Men, A Liga extraordinária)?; em que um grupo de esquisitões proscritos da sociedade forma uma nova coletividade – a diferença sendo que, aqui, eles se destacam não por conta de sua esquisitice psíquica, mas por conta de suas habilidades físicas fora do comum. A origem e o modelo inultrapassados desse tópico permanecem sendo o More Than Human (1953), de Theodore Sturgeon, que conta a história da reunião de seis extraordinárias pessoas com estranhos poderes, capazes de “misturedar”[18] (misturar-enredar) suas habilidades e, dessa maneira, agirem como um só organismo, alcançando o homo gestalt – o próximo passo na evolução humana.

Na primeira seção do romance “O Fabuloso Idiota”, a Gestalt nasce com a primeira reunião de seus componentes: Lone, um jovem deficiente mental com um poderoso dom telepático; Janie, uma criança teimosa com habilidades telecinéticas; Bonnie e Beanie, gêmeos incapazes de falar, que, não obstante, podem teletransportar seus corpos voluntariamente; e Baby, um infante profundamente debilitado, cujo cérebro funciona como um computador. Cada um desses incapacitados – indivíduos desajustados – é inábil para se virar por conta própria, mas juntos eles formam um ser completo: como Baby diz a Janie, “o Eu é todos nós”. Na segunda seção, “Baby tem três anos”, a Gestalt cresce, emergindo para o mundo exterior e enfrentando os desafios da sobrevivência. Vários anos se passaram; Lone, a “cabeça” do corpo da Gestalt, morre, e seu lugar é preenchido por Gerry, um menino de rua violentado, tomado de raiva e ódio. Antes deficiente devido à limitada capacidade mental de Lone, a Gestalt agora é deficiente pelo vazio moral de Gerry. A crueldade de Gerry serve à Gestalt, no entanto, pois ele se dispõe a fazer qualquer coisa para resguardá-la da separação. Na seção final, “Moralidade”, a Gestalt amadurece, completando sua evolução em um ser inteiramente realizado. De novo, muitos anos se passaram; dessa vez, a narrativa prossegue do ponto de vista de Hip, jovem que foi objeto de um cruel experimento de Gerry, e que Janie, se rebelando, decide resgatar. Gerry atacara Hip mentalmente, levando-o a um colapso nervoso e à amnésia, mas Hip confronta Gerry, e torna-se a última parte da Gestalt, sua consciência. Hip, assim, revela-se o elemento faltante da Gestalt, sem o qual ela não pode dar o passo adiante em seu desenvolvimento.

Há uma série de aspectos que impedem uma leitura New Age, simplista, do enredo. Em primeiro lugar, em contraste com o medo paranoico predominante de que os “pós-humanos” irão ameaçar os humanos comuns, o Homo Gestalt de Sturgeon age sob o dever moral de guiar e proteger o Homo Sapiens, que é o material-fonte da própria Gestalt. Em segundo lugar, os membros individuais da Gestalt não são reduzidos a seres perfeitos, caricaturais e despersonalizados, cuja identidade é imersa na Gestalt – nenhuma formiga robótica preenchendo cegamente sua função, eles mostram toda a paixão, agressividade, vulnerabilidade e fraqueza de indivíduos reais, e, na melhor das hipóteses, são mais bizarros e “individualísticos” do que humanos comuns –; sua reunião como um novo Um permite a explosão de suas peculiaridades. Essa estranha coletividade não lembra a boa e velha reivindicação de Marx de que, numa sociedade comunista, a liberdade de todos será fundamentada na liberdade de cada indivíduo? Contudo, deve-se sempre ter em mente que esses florescimentos desembaraçados de idiossincrasias só podem prosperar contra o pano de fundo de um ritual partilhado.

Isso nos traz de volta ao Parsifal de Wagner, cujo problema central é aquele da cerimônia (ritual); esse problema, central à cultura comunista, tem consequências até mesmo para nossas atitudes subjetivas mais íntimas. Permitam-me lembrar de “The Third Wave” [A terceira onda], o experimento social do professor de História Ron Jones, na escola secundária Cubberley, em Palo Alto, durante a primeira semana de abril de 1967. No intuito de explicar a seus alunos como era possível o povo [populace] alemão alegar desconhecer o holocausto, Jones iniciou um movimento chamado “The Third Wave”, e convenceu seus alunos de que seu objetivo era eliminar a democracia; ele enfatizou o ponto principal do movimento em seu mote: “Força por meio de disciplina, força por meio da comunidade, força por meio da ação, força por meio do orgulho”. No quarto dia, contudo, Jones decidiu por fim ao experimento que estava saindo de seu controle: os alunos ficaram cada vez mais envolvidos no projeto, e sua disciplina e lealdade ao mesmo eram impressionantes – alguns deles chegaram a denunciar a Jones colegas suspeitos de não acreditar inteiramente no projeto… Jones ordenou que os estudantes participassem de um comício no dia seguinte ao meio-dia, no qual, ao invés de um discurso televisionado de seu líder, lhes foi apresentada uma tela em branco. Depois de alguns minutos de espera, Jones anunciou que eles foram parte de um experimento sobre o fascismo, e que todos criaram voluntariamente um senso de superioridade que os cidadãos alemães tinham no período do nazismo…[19]

Como era de se esperar, os liberais ficaram fascinados pela “Third Wave”, discernindo nela o “profundo” insight de Lord of the Flies [Senhor das moscas] sobre como, sob uma superfície civilizada, todos somos potencialmente fascistas – a besta sádico-bárbara está à espreita em todos nós, esperando sua oportunidade… Mas e se mudarmos de perspectiva um pouco e concebermos a “personalidade autoritária” como a expressão “recalcada” da própria personalidade “aberta” liberal? Encontra-se a mesma ambiguidade no lendário estudo sobre a “personalidade autoritária”, do qual Adorno participou[20]. Os aspectos da “personalidade autoritária” são claramente opostos à figura padrão da personalidade democrática “aberta”, e o dilema subjacente é: esses dois tipos de personalidade são simplesmente agonistas, de modo que deveríamos lutar por um contra o outro? Em outras palavras, qual é o status da escala dos aspectos opostos àqueles definidores da “personalidade autoritária”? Eles devem simplesmente ser endossados como “personalidade democrática” (em última instância, o caminho de Habermas), ou a “personalidade autoritária” deve ser concebida como “verdade” sintomática da “personalidade democrática” (a visão, digamos, de Agamben)? Seguindo essas linhas, o próprio deslocamento de Adorno a Habermas a propósito da modernidade pode ser formulado nesses termos: o núcleo da “dialética do esclarecimento” de Adorno/Horkheimer é que fenômenos como o fascismo são “sintomas” da modernidade, sua consequência necessária (eis por que, como Horkheimer o coloca em sua passagem memorável, aqueles que não querem falar – criticamente – sobre o liberalismo devem também silenciar a respeito do fascismo), enquanto, para Habermas, eles indicam que a modernidade permanece um “projeto inacabado”, que ela ainda não desenvolveu todos os seus potenciais. Essa indecidibilidade é, em última instância, um caso especial da indecidibilidade mais geral da própria “dialética do esclarecimento”, bem percebida por Habermas: se o “mundo administrado” é a “verdade” do projeto do esclarecimento, como, precisamente, ele pode ser criticado e combatido por meio da fidelidade ao próprio projeto do esclarecimento?[21]

Fica-se tentado a reivindicar que, longe de representar uma lacuna ou uma simples falha de Adorno, essa relutância em efetuar o passo em direção à normatividade positiva assinala sua fidelidade ao projeto revolucionário marxista. Eis também como se deve ler o entusiasmo liberal pelo fenômeno da “Third Wave”: sua função é afirmar a luta da “abertura” liberal contra o “fechamento” totalitário como nossa luta fundamental, e, assim, obliterar sua cumplicidade mútua, i. e., o fato de que o “totalitarismo” é o “retorno do recalcado” do próprio liberalismo. Essa obliteração também permite condensar fascismo e comunismo na mesma figura “totalitária” antiliberal, e, dessa maneira, bloquear a busca por uma terceira opção – a “estrutura de personalidade” de um sujeito engajado em uma luta emancipatória radical, um sujeito que subscreve sem quaisquer escrúpulos o mote “força por meio de disciplina, força por meio da comunidade, força por meio da ação, força por meio do orgulho”, e, ainda assim, continua engajado numa luta emancipatória-igualitária radical. O que um liberal pode fazer a propósito de tal sujeito é, ou dispensá-lo como outra versão da “personalidade autoritária”, ou reivindicar que esse sujeito apresenta uma “contradição” entre as metas de sua luta (igualdade e liberdade) e os meios empregados para tanto (disciplina coletiva, etc.) – em ambos os casos, a especificidade do sujeito da luta emancipatória radical é obliterada, esse sujeito permanece “não visto”, não há lugar para ele no “mapeamento cognitivo” liberal.

Tradução: Lucas Mello Carvalho Ribeiro*

Referências bibliográficas

ADORNO, T. W.; FRENKEL-BRUNSWICK, E.; LEVINSON, D. J. & SANFORD, R. N. The Authoritarian Personality. New York: Harper and Row, 1950.

DEL LUCCHESE, F. & SMITH, J. We Need a Popular Discipline: Contemporary Politics and the Crisis of the Negative. Interview with Alain Badiou, Los Angeles, 7/2/2007.

DENNETT, D. Kinds of Minds. London: Phoenix, 1996.

DOLAR, M. A voice and Nothing More. Cambridge: MIT Press, 2006.

HABERMAS, J. The Philosophical Discourse of Modernity. Cambridge: MIT Press, 1990.

JAMESON, F. The seeds of time. New York: Columbia University Press, 1994.

KAFKA, F. Josephine the Singer, or the Mouse Folk. Disponível em: http://www.fortunecity.com/victorian/ vermeer/287/josephine.htm

ZAERA POLO, A. The Politics of the Envelope. A Political Critique of Materialism. In: ArchiNed, v. 17.

[1] Versão inglesa disponível em: http://www.fortunecity.com/victorian/vermeer/287/josephine.htm

[2] (N. T.) O autor se refere à tradução inglesa do conto de Kafka – Josephine the Singer, or the Mouse Folk , cujo título original é Josephine, die Sängerin, oder das Volk der Mäuse. No seu entendimento, provavelmente, a palavra alemã Volk seria traduzida de maneira mais apropriada pelo inglês people (povo; conjunto de pessoas que partilham uma mesma língua, história, costumes, hábitos, tradição etc.), uma vez que a palavra folk (povo) carrega uma conotação popularesca (donde, por exemplo, folklore), ausente do vocábulo alemão tal qual empregado por Kafka no título de seu escrito.

[3] (N. T.) Para as citações de Kafka, cf. versão brasileira de Torrieri Guimarães (Ed. Clube do Livro, 1977), modificada sempre que considerado necessário. A indicação das páginas após as citações se baseia nessa edição.

[4] (N. T.) Clara alusão ao quadro “Ceci n’est pas une pipe”, do pintor belga René Magritte. O autor se aproveita da similaridade fônica e gráfica entre pipe (cachimbo em francês) e piping (trinado/trinar em inglês); construção que, infelizmente, é impossível de ser mantida na tradução para o português.

[5] Ver o capítulo 7 de Mladen Dolar, A voice and Nothing More, Cambridge: MIT Press, 2006.

[6] (N. T) Para as citações de Fredric Jameson (todas elas retiradas do livro The seeds of time), cf. versão brasileira de José Rubens Siqueira (Ed. Ática, 1997), modificada quando considerado necessário. O ano e a paginação entre colchetes se referem à edição brasileira; por sua vez, as indicações fora dos colchetes remetem à edição original (Columbia University Press, 1994), utilizada pelo autor.

[7] Disponível on-line em: http://marx.org/archive/marx/works/1852/letters/52_01_16.htm.

[8] (N. T.) A referida análise se encontra no artigo “Fascinating Fascism” (1975), disponível on-line em: http://www. history.ucsb.edu/faculty/ marcuse/classes/33d/33dTexts/ SontagFascinFascism75.htm.

[9] (N. T.) Gênero cinematográfico, tipicamente alemão, que retrata a subida de montanhas, enfatizando a luta do homem contra a natureza. Para além da simples aventura, o Bergfilme enfoca as mudanças que se dão após o retorno das montanhas e o ganho de sabedoria que geralmente lhe sucede.

[10] (N. T.) Termo utilizado por Stephen Jay Gould para indicar algo pré-existente que foi recrutado para uma nova função. No contexto das análises de Gould, trata-se do emprego de estruturas biológicas em alguma função diferente daquela para qual elas se desenvolveram através da seleção natural, o que é desenvolvido a partir da metáfora arquitetônica dos pandrel (tímpano). Cf. GOULD, Stephen Jay. The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge: Harvard University Press, 2002; particularmente o capítulo XI.

[11] Filippo Del Lucchese and Jason Smith, “We Need a Popular Discipline”: Contemporary Politics and the Crisis of the Negative [“Precisamos de uma disciplina popular”: política contemporânea e a crise do negativo]. Entrevista com Alain Badiou, Los Angeles, 7/2/2007. (A citação é retirada do manuscrito dessa entrevista).

[12] Embora o nome se refira a Ramstein, a base aérea militar dos Estados Unidos na Alemanha Ocidental, ele é escrito com um “m” adicional, tornando-o legível como “ramming stones” [pedras abatedoras], uma paráfrase de “rolling stones” [pedras rolantes].

[13] (N. T.) Designação surgida após o lançamento do segundo álbum da banda Oomph, desde então atribuída a um conjunto de bandas alemãs de heavy metal industrial.

[14] (N. T.) Para as citações de Daniel Dennett (todas elas retiradas do livro Kinds of minds), cf. versão brasileira de Alexandre Tort (Ed. Rocco, 1997), modificada quando tido como necessário. O ano e a paginação entre colchetes se referem à edição brasileira; por sua vez, as indicações fora dos colchetes remetem à edição original (London: Phoenix, 1996), consultada pelo autor.

[15] (N. T.) A palavra inglesa “enjoyment” é por vezes utilizada para traduzir o termo lacaniano jouissance (gozo), ao qual o autor alude nessa frase. No contexto da passagem de Dennett mobilizada pelo autor, entretanto, acreditamos que a tradução do verbo “enjoy” (“children enjoy…”) por “gozar” seria demasiadamente artificial, donde nossa opção por “gostar”.

[16] (N. T.) No original, the only thing we have to fear is fear itself; famosa frase proferida por Franklin Delano Roosevelt em seu discurso inaugural como presidente dos Estados Unidos, referindo-se aos efeitos da “Grande Depressão” no modo de vida e mentalidade dos americanos e à necessidade de ultrapassá-los.

[17] Ver Alejandro Zaera Polo, The Politics of the Envelope. A Political Critique of Materialism, ArchiNed, v. 17.

[18] (N. T.) No original, lê-se “blesh” – palavra entrecruzada formada pela combinação de “blend” e “mesh”.

[19] Para os dados básicos, ver http://en.wikipedia.org/wiki/The_Third_Wave.

[20] Adorno, T. W., Frenkel-Brunswick, E., Levinson, D. J. & Sanford, R. N. The Authoritarian Personality. New York: Harper and Row, 1950.

[21] Ver Jürgen Habermas, The Philosophical Discourse of Modernity, Cambridge: MIT Press, 1990.

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