Entrevista-montagem com Jeannete Ehrman, Florian Kappeler e Maud Meyzaud (Parte II)

Por Jeannete Ehrman, Florian Kappeler e Maud Meyzaud, via Undercurrents, traduzido por BP

Esta é a segunda parte da entrevista-montagem sobre literatura revolucionária realizada pela revista eletrônica Undercurrentes, cuja primeira parte você pode ler aqui.


Undercurrents: Se é possível distinguir revoluções de revoltas e de outras formas de resistência, como seria possível distinguir literatura revolucionária de literatura subversiva e de obras literárias sobre resistências ou revoltas?

Florian: Aqui tocamos de novo na problemática da tensão entre escassez normativa e distinção teórica difusa, presente na maneira de se descrever e se escolher o que é o “revolucionário”. De forma inteiramente não original, eu tenderia aqui a reservar o termo revolução a grandes cataclismos políticos ou sociais que fundam relações completamente novas e que não permitem um retorno ao estado anterior. Além disso, revoluções, em geral, são recebidas como sendo globalmente significativas ou, ao menos, de grande relevância para um contexto maior do que aquele em que ocorreram. Revoltas apontam em um sentido mais pontual, local, reversível e menos criativo de novos estados. Para subversões isso vale ainda mais, a palavra já traz implícita nela mesma a pequena sublevação, a tentativa de desvio das condições dominantes, que pode ter sucesso apenas de forma silenciosa, pontual e individual. Trabalhar pior do que se pode e roubar os patrões não é nenhuma revolta que se direcione aberta e coletivamente contra um regime. Por um lado, quando uma revolta – do ponto de vista de sua prática mas também de sua  percepção – não dá em nada, não se pode falar de fato em uma revolução. Por outro lado, é preciso lembrar que as descrições adentram a realidade e a realidade adentra as descrições (e talvez até a própria realidade): basta olharmos os relatos da “Primavera Árabe”. Assim, o ato performativo de se chamar algo de revolucionário traz implicitamente uma intervenção política. Pretensão político-normativa e descrição teórica não podem ser nunca completamente separadas.

Maud: O conceito de subversão pressupõe que se sabe exatamente quem possui o poder e onde se esteia a autoridade, que constitui o segredo da dominação. Isso me parece cada vez mais difícil nas relações atuais e globalizadas.

Em um período em que o capitalismo ainda estava em surgimento (em que a economia capitalista ainda não havia sequestrado todas as áreas da vida) era certamente mais fácil distinguir o subversivo do revolucionário. Eu já me referi anteriormente ao fato de que pouco se passou literariamente na França revolucionária. Uma exceção seria o Marquês de Sade, pois ele transforma em grande medida a reflexão literária acerca da dominação. A Filosofia na Alcova (aquele livro no qual se coloca o panfleto fictício Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos) é subversivo, pois ele provoca e sobrecarrega os aparentemente mais radicais atores revolucionários entre as forças políticas representadas na Convenção Nacional, isto é, os jacobinos. Esse pequeno escrito pergunta como a libido e as relações de dominação se associam – com isso não se queria, contudo, visar a ninguém especificamente (tampouco, certamente, as forças políticas extraparlamentares, como os Sans-Cullotes, Hébert ou Jacques Roux!). Se o Marquês de Sade, à época secretário da Section des Piques parisiense e parte ativa do Sanscullotismo, era de fato revolucionário ou viu na revolução uma oportunidade de fazer prevalecerem seus próprios interesses, ou se sua literatura quer ou pode agitar seus leitores, fica aqui sem resposta. Decidido fica apenas, por um lado, que o Marquês valoriza a revolução como um momento de tumulto, furor e de transformação, enquanto ele desdenha de seu momento como fundação; por outro lado, fica também claro que ele projeta um sujeito do desejo, que à primeira vista corresponde à antiga forma de soberania, pois esse sujeito possui sobre o objeto de seu desejo todos os direitos, inclusive o de o matar. A novidade está, contudo, na constituição desse sujeito, que é aqui lançado em um papel, no qual os(as) protagonistas podem, em teoria, ocupar sucessivamente todos os papéis: cada um – e cada uma! – pode, portanto, interpretar o papel do soberano, contanto que ele/ela se compreenda como um libertino(a): um interessante contra-projeto para a soberania popular.

Undercurrents: No Proletkult – o movimento cultural que, no contexto da Revolução Russa, tentou formar uma cultura proletária – a função de criar formas coletivas de consciência foi atribuída a novas formas estéticas. Na República de Weimar, para se citar mais um exemplo, foi desenvolvida, no contexto da política literária comunista, a revista Correspondência dos Trabalhadores, que tinha por um lado reportagens sociais e, por outro, tinha de realizar a tarefa de subjetivar os(as) proletários(as) em produtores literários. Pergunta-se então acerca da relação entre inovação literária e situações de sublevação política. Existe alguma constelação onde elas se correspondem? As revoluções entram na literatura? Pode a literatura ser cocriadora de uma revolução ao permitir, por exemplo, novas subjetivações?

Maud: “Subjetivação” soa a Jacques Rancière – que é, por isso, o mais interessante entre os teóricos de procedência marxista – pois ele desde muito cedo se lançou à pergunta acerca da constituição de um sujeito revolucionário. Ele relaciona essa pergunta ao problema do que se deve entender por literatura (La Nuit des Prolétaires trata de como os operários dos anos de 1830 dedicavam suas noites – literalmente o tempo que eles não tinham, pois eram privados da realização até de suas necessidades mais elementares – à produção literária). O problema do incitamento de novas formas de consciência sempre foi o fato de que seus atores históricos acabam por trocar seus papeis com aquele dos censores. Assim, por exemplo, fez Lukácz, quando em 1937, em seu escrito existencial Das Wort [A Palavra], ele repreende Brecht por não ligar explicitamente seu próprio trabalho literário ao movimento do Proletkult. O fato de as forças revolucionárias dos séculos XIX e XX terem sempre se sentido vocacionadas ao papel de instância de controle tão logo se fala em literatura e arte; o fato de elas sentirem a ideia de liberdade artística como concorrência inaceitável do conceito de liberdade política, tudo isso deve nos dar o que pensar. Formulado de outra forma: Por que na história moderna surgem sempre e repetidamente, às costas da emancipação, formas fortes e definidas de paternalismo simbólico? Parece-me importante que a esquerda se ocupe fundamentalmente com essa – sua – herança, se ela não quiser perder sua credibilidade.

Florian: Não se pode definir aprioristicamente quando inovações literárias e sublevações políticas se correspondem, pois isso depende de sua recepção, cuja descrição, por sua vez, carrega também implicações políticas (o que não é nenhuma defesa por pesquisas de recepção histórica pura, mas sim um apelo para explicitar-se o potencial revolucionário de textos em pesquisas e, assim, propiciar, talvez, uma recepção revolucionária). A literatura, enquanto discurso público, teve no século XVIII conhecidas implicações políticas (e ela foi, ao contrário, também na Alemanha, transformada pela revolução de fato). Até mesmo quem foi ou literato(a) ou revolucionário(a) político não é, frequentemente, fácil de se separar – desde Saint-Just e Georg Foster até Peter-Paul Zahl e o Subcomandante Marcos. Mas a literatura e a política também não coincidem fática e temporalmente, pois escritos desenvolvem, em sua recepção histórica, contextual e individual, uma vida própria. A mim mesmo revolucionaram politicamente os textos de Wolf Bierman, quando ele próprio já há muito não almejava nenhuma revolução. Mas pense-se também nos escritos de Hölderlin, que durante sua vida praticamente não tiveram efeitos revolucionários. Assim também com Georg Büchner, Paul Celan, Gertrud Kolmar, Georg Kreisler, que agiram como pessoas tão revolucionariamente quanto como escritores.

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