O levante dos “inorganizáveis”

Por Tomasz Frymorgen, via Jacobin Magazine, traduzido por Gabriel Landi Fazzio

Greves espontâneas nos setores informais estão desafiando os pressupostos sindicais sobre onde e quem organizar.


No dia 11 de agosto, rodeado por 150 motoristas grevistas do Deliveroo, um militante sindical leu uma lista de concessões arrancadas pelos entregadores britânicos, todos organizados com o sindicato dos Trabalhadores Independentes da Grã-Bretanha (IWGB).

Os trabalhadores de entregas conquistaram um aumento de 28%; os trabalhadores da CitySprint arrancaram 17% – seu primeiro aumento em 10 anos. Na Mach1, os motociclistas conquistaram maiores salários, uniformes pagos pela companhia e o fim da cobrança de taxas pelo aluguel de equipamentos.

Apenas algumas semanas antes, os trabalhadores da limpeza haviam encerrado a maior greve da história de Londres – 61 dias – após assegurar o salário mínimo londrino (atualmente £9.40 por hora), organizado sob o Vozes Unidas do Mundo (UVW). Em fevereiro deste ano, o UVW conquistou licença remunerada para o caso de doenças ocupacionais para os trabalhadores de contratos intermitentes em segurança e limpeza, em uma campanha pública massiva em oposição à empresa Sotheby’s.

Inspirados pela conclusão vitoriosa da greve do Deliveroo, motoristas do Uber Eats anunciaram que entrariam em greve espontânea até que a companhia concordasse em pagar-lhes o salário mínimo londrino.

Você seria perdoado por pensar que o movimento operário do Reino Unido está finalmente acordando. Desde a formação do Ramo da Limpeza dos Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW) em 2011, histórias como essas têm se tornado cada vez mais frequentes e bem-sucedidas. Campanhas militantes, conduzidas pelos próprios trabalhadores, têm se batido contra redes de varejo, centros culturais, instituições educacionais e serviços de entrega, organizando milhares de empregadores precarizados.

Ainda assim, em 2015, apenas 81 mil trabalhadores participaram em greve, e apenas 170 mil dias foram perdidos pelo capital pela iniciativa operária. Esses dados representam o menor número de greves e a segundo menor perda de produtividade desde o começo dos registros, em 1893. O ano passado marcou também o menor nível de sindicalização desde 1995, apenas 24.7%.

Os dissídios dos trabalhadores da limpeza e da entrega representam, portanto, um caso raro de militância operária, não um reviver mais amplo do movimento. Isso, por si próprio, já os tornaria interessantes. Mas por essas ações virem de setores não-tradicionais da classe trabalhadora – sob contrato de trabalho intermitente – que têm sido tradicionalmente considerados inorganizáveis e negligenciados pelos grandes sindicatos, a esquerda deveria prestar atenção para o que eles podem nos ensinar.

Será que eles são realmente inorganizáveis?

Essas campanhas contradizem uma crença de longa data sobre a organização dos trabalhadores precarizados ou intermitentes. Sua frequência e alcance – com crescimento contínuo – e o grande comparecimento às decisões de deflagração das greves indicam uma forte participação proletária.

E, a despeito disso, a maioria dos sindicatos confia em um contraproducente conjunto de critérios organizativos que invisibilizam esses trabalhadores. Os sindicatos do Congresso de Sindicatos (TUC) frequentemente evita os trabalhadores intermitentes por uma série de razões: alguns por falta de habilidade, experiência ou recursas para organizar tais setores. Outros realizaram análises de custo-benefício que indicam que tais campanhas não valem seu tempo. Alguns acreditam até mesmo que trabalhadores intermitentes não contam como trabalhadores de verdade e, por conseguinte, não se enquadram em seu escopo.

Nas raízes da inércia da maior parte dos sindicatos repousa um entendimento estritamente legalista dos trabalhadores, dos direitos dos empregados e da relação empregado-empregador, com os contratos coletivos de trabalho como o ponto central de referência. Trabalhadores intermitentes fogem amplamente a este enquadramento e são, consequentemente, descartados como inorganizáveis. Como resultado, o setor informal tem se tornado esmagadoramente alheio à organização sindical tradicional e sofre sob as piores condições do mercado de trabalho.

Como os grupos do TUC desenvolveram essa dependência legalista é uma longa história. [1] O que importa aqui é que os empregadores aderem a esses mesmos critérios e as batalhas entre patrões e trabalhadores se desenrolam sobre esse terreno.

Nos últimos anos o capital assumiu a ofensiva contra esses trabalhadores. No setor formal as companhias têm se esforçado para reduzir os custos dos processuais trabalhistas e restringir o exercício do direito de greve.

Elas têm também evitado completamente o enquadramento unitário das categorias através da criação de mais postos de trabalho casuais (intermitentes). Esses empregos – que se valem de agências intermediadoras ou terceirizadas para contratar trabalhadores, ou da classificação de alguns trabalhadores como “autônomos” prestadores de serviço, ou baseados em contratos “zero-hora” – arrancar aos seus ocupantes muitas das proteções gozadas por empregados tradicionais, enquanto mantém as condições de trabalho práticas de qualquer relação empregador-empregado.

As práticas empregatícias do Deliveroo demonstram perfeitamente isso. Denominando seus entregadores de “prestadores de serviço independentes” a companhia não é obrigada legalmente a assegurar licença médica, descanso remunerado, recolhimento previdenciário ou mesmo o salário mínimo. Mas esses chamados prestadores de serviços trabalham sob as mesmas obrigações que os empregadores regulares. Ainda mais revoltante é o fato de que eles não podem trabalhar para qualquer outro serviço de entregas, ainda que o Deliveroo se recuse a pagar-lhes um salário mínimo.

Esse modelo de trabalho precários se utiliza das brechas legais da regulação das relações trabalhistas.  Os trabalhadores se vêm sob restrições ainda maiores, ao mesmo tempo em que assumem parte dos riscos e custos. Isso tem permitido às companhias extrair lucros maiores com menos investimentos.

Não por coincidência, a tentativa do Deliveroo de substituir o valor pago por hora com um esquema de pagamento por entrega veio à tona apenas algumas semanas após a companhia receber £212 milhões em investimentos e se preparava para encarar seu novo competidor, o Uber Eats. A companhia teve de intensificar sua lucratividade em resposta tanto aos investidores quanto às pressões do mercado.

A externalização dos riscos e custos para os trabalhadores, promovida pelo Deliveroo, reflete não apenas uma mudança de protocolos no padrão de lucratividade, mas também a habilidade do capital para explorar as fragilidades no ordenamento jurídico trabalhista.

Greves sob demanda

Embora a criatividade jurídica permita aos empresários eliminar onerosas obrigações patronais, ela tem um efeito colateral potencialmente custoso: o antagonismo de classes passa a ter como palco um âmbito exterior ao do sistema de arbitramento estatal há muito utilizado para assegurar a pacificação no mundo do trabalho.

“O ordenamento legal opera contra os trabalhadores”, afirma Chris, um organizador da IWW. “É feito sob medida para os gestores, mas também é voltado para a conciliação. Se você rejeita essa estrutura, então você pode atuar de um modo que seja realmente efetivo”.

Com os caminhos legais ou formalmente fechados ou financeiramente inviáveis, os trabalhadores [juridicamente] casuais são forçados a explorar métodos alternativos para melhorar suas condições de trabalho. Tudo o que é preciso é um momento crítico, e – especialmente sob a austeridade britânica – esses momentos surgem facilmente.

Conforme as companhias encontram novos modos de extrair mais-valia, novas fronteiras de conflito classista se abrem. O capital supera limitações prévias, reduzindo custos e riscos de modo mais ou menos legal. A resposta legal apropriada a essa erosão de direitos é proscrita pelas leis trabalhistas existentes e o sistema de arbitramento estatal que limita a atividade sindical. Mas, para além dessas fronteiras, muito é possível.

As greves espontâneas do Deliveroo e do Uber Eats rapidamente paralisaram a oferta de trabalho – um movimento devastador para um negócio essencialmente sob demanda imediata. Em contraste, uma greve legal leva semanas para ser organizada, dando às companhias tempo suficiente para fazer planos de contingencia. Os entregadores do Deliveroo demoraram apenas algumas horas para organizar sua primeira paralização.

De modo similar, os motoristas da companhia rapidamente se reuniram em piquetes ao redor do escritório de recrutamento do Deliveroo quando perceberam que a companhia estava tentando contratar fura-greves. Em um contexto sindical tradicional esse tipo de ação teria que ser previamente aprovada por diversas camadas de burocratas sindicais legalmente sensíveis.

A atual onda de greves lança luz sobre como o capitalismo contemporâneo, com sua velocidade e flexibilidade, demanda igualmente um movimento operário versátil e que responsa rapidamente. Quando o capital põe de lado as proteções trabalhistas, o espaço para tal ação é aberto junto.

O resto da classe

Independentemente do quão revigorantes essas campanhas recentes tenham sido, elas apenas envolvem alguns milhares de trabalhadores em um setor informal de milhões, no interior da força de trabalho britânica dez vezes maior.

Kim Moody recentemente alertou contra os perigos de se fetichizar a economia gig e desafiou a crença amplamente difundida de que contingentes cada vez maiores de trabalhadores estão se deslocando para empregos precários. Ele argumenta que focar em um precariado, cindido do conjunto da classe, obscurece os problemas fundamentais compartilhados por toda a classe trabalhador: notadamente os péssimos empregos que resultam a intensificação do trabalho.

Como Ursula Huws aponta, a precariedade não divide a classe trabalhadora:

“A precariedade”, ela escreve “é a condição normal de todo o trabalho sob o capitalismo – limitada apenas por fortes organizações de trabalhadores sob circunstâncias favoráveis”.

Seguindo a sua análise e da Moody, a precariedade se torna uma ideia útil que revela os padrões comuns unindo o setor formal e o informa da força de trabalho.

Huws alega que as companhias estão instituindo um “novo modelo de gestão do trabalho” em ambos setores. Tarefas de rotina, como agendar viagens, preenches relatórios de gastos e assim por diante são afazeres agora dispersados entre os empregados das empresas, e não mais concentradas em departamentos dedicados exclusivamente a essas funções. Isso constantemente desloca pequenas quantidades de trabalho para os empregados, criando uma “carga cyber-burocrática de ‘trabalho de consumo’ não pago, requerido à sobrevivência cotidiana”.

As companhias crescentemente auditam e monitoram os resultados de seus empregados nesse terreno. Os trabalhadores são julgados com base em normas cada dia mais exigentes, por conta da competição entre os próprios trabalhadores. A futura empregabilidade frente a uma mesma firma se torna dependente nos relatórios das performances mais recentes do trabalhador. Subsequentemente, “a vida dentro das corporações se torna cada vez estreitamente assemelhada à vida fora”, conquanto custos e riscos são descarregados também sob os trabalhadores do setor formal.

Isso também é verdade para os trabalhadores “de colarinho azul”. Por exemplo, trabalhadores sob contratos de poucas horas (abaixo de 10 horas por semana) podem não ser contabilizados como trabalhadores intermitentes por questões jurídicas, como o direito ao pagamento por tempo e outros benefícios. Não obstante, eles passam por problemas semelhantes. Muitos trabalhadores sob contratos de tais tipos prefeririam um contrato de tempo integral. Na falta de garantias, esses contatos acabam parecendo em muito os contatos “zero hora”, conforme os trabalhadores aumentam sua produtividade ou trabalham mais horas de graça, de modo a “ganhar” turnos extras.

Pensando deste modo na precariedade, se torna claro que o setor formal está adotando esquemas de extração de mais-valia comuns ao setor informal. Conforme isso ocorre, novas fronteiras de conflitos de classe se abrirão, pondo em questão a utilidade dos métodos sindicais do TUC.

Moody clama por uma reorientação do foco dos socialistas sob os vastos e novos polos logísticos no coração da economia global, bem como faz Joe Allen. Esses são os pontos de pressão do capitalismo contemporâneo, dependente de um exército de trabalhadores sub-remunerados que os façam funcionar. Aqui poderia haver um enorme potencial para a organização proletária e a reversão do declínio sindical, naquilo que Moody chama de “o novo terreno do conflito de classes”.

Mas o movimento sindical apenas ganhará esse novo terreno se lutar com novos métodos [2].

Um novo movimento sindical

Para que os trabalhadores respondem de modo eficaz ao aumento da precarização, são obrigados a seguir o capital para além dos limites legais das relações de classe. As atuais campanhas dos trabalhadores intermitentes servem de laboratório para novas formas de antagonismo de classes para além do arbitramento estatal. Onde quer que haja menos proteção legal, encontramos o maior potencial para conflitos de classe inovadores.

Dados os sucessos recentes das ações extralegais – e a estagnação continuada dos sindicatos tradicionais – os trabalhadores podem vir a crescentemente ver mais apelo no terreno não-familiar, mais efetivo que o familiar.

Os novos centros logísticos massivamente se apoiam sobre trabalhadores intermitentes “fornecidos” por empresas de empregos temporários. Não bastará aos sindicatos mirar nessas categorias com métodos antiquados. Ao invés disso, deveriam aplicar as lições aprendidas das lutas recentes dos trabalhadores intermitentes a essa nova iniciativa organizativa.

Alguns esforços se encaminham para lidar com tais desafios, mas eles precisarão ser replicados em uma escala muito maior antes de podermos vislumbrar resultados. O alastramento de greves espontâneas entre os trabalhadores britânicos indica que isso é possível.

As campanhas dos entregadores e trabalhadores da limpeza estão publicamente redefinindo o conceito de organização operária no Reino Unido. Os resultados dos caóticos e calorosos conflitos nas ruas repetidamente comprovam ser preferíveis à invisibilidade dos acordos judiciais “racionais”. A grande ironia é que, graças à organização independente, esses chamados trabalhadores precários estão gozando de uma crescente segurança em seus locais de trabalho, enquanto muitos trabalhadores sindicalizados vislumbram a erosão de suas condições de trabalho e o desaparecimento de sua segurança.

O movimento sindical faria bem em decifrar esse paradoxo e pôr suas lições em prática.

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[1] Nota do tradutor: aos interessados pelo tema, recomendamos a obra do marxista francês Bernard Edelman.

[2] Nota do tradutor: a menção a “novos métodos” toma por “velhos métodos” os métodos legais, limitados pela regulamentação jurídica dos conflitos econômicos. A risco dessa tipologia é perder de vista que os “novos métodos” são muitíssimo semelhantes aos “velhíssimos métodos” do movimento operário que precedeu ao fordismo e ao direito do trabalho.

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