Žižek está errado sobre algumas coisas

Por Sam Warren Miell, via Different Coloured Hats, traduzido por Hugo Gomes Penaranda

O artigo mais recente de Žižek é ruim. Muito ruim. Um desastre. Quase todo parágrafo é – em maior ou menor grau – premeditadamente ignorante, deliberadamente ofensivo, e completamente mal pensado ao ponto da redundância absoluta. Mas ninguém precisava de mim para dizer isso; Então, por que se incomodar em responder a ele? A primeira razão é pessoal. Os primeiros livros de Žižek (Eles não Sabem o que Fazem – O Sublime Objeto da Ideologia; Looking Awry, etc.) foram particularmente influentes no meu desenvolvimento acadêmico e, como muitos, tive meu primeiro contato com Jacques Lacan por meio de Žižek. Eu ainda acredito que ele tem feito um trabalho que é afiado, perspicaz e esclarecedor, e ainda há algo do estilo literário žižekiano que assombra a minha escrita, devido à quantidade de tempo que passei lendo-o.


Assim, um páthos especial acompanha a minha recepção de suas intervenções recentes, para dizer o mínimo. Em segundo lugar, como seu mais famoso discípulo, Žižek continua a ser para muitos leitores o encontro predominante ou até mesmo único com Lacan. É profundamente lamentável se o único Lacan que uma pessoa se deparar for por meio de Žižek, ainda mais se este Lacan for visto como o apoio às conclusões fundamentalmente reacionárias, sobre temas tão diversos como a crise de refugiados e o transgenerismo. Recai sobre nós, como lacanianos, desafiar o (ab)uso do Žižek das teorias do homem, para recuperar Lacan em seus próprios termos.

O que aqui não se faz, é uma crítica abrangente, “linha por linha”, do artigo de Žižek. Muitos de seus argumentos são essencialmente reensaios familiares de linhas (homo/trans)fóbicas ( “Por que não mesmo um casamento com animais?” É uma frase que realmente aparece no artigo, por exemplo) e realmente não merecem uma resposta. Também não vou discutir pontos desconcertantes de Žižek sobre a identidade étnica e classe política, ou nesta questão sua confluência entre transgenerismo e pós-generismo – mais uma vez, acho que cada leitor vai ver as deficiências aqui sem que eu tenha que destacá-las. Além disso, os famosos comentaristas políticos Virgil Texas e Felix Biederman já fizeram isso por nós. Em vez disso, gostaria de esboçar alguns pontos sobre a (possível) relação entre teoria psicanalítica (e, especificamente, a lacaniana) e transgenerismo , e sugerir que a estrutura usada por Žižek para atacar este último pode ser virada no sentido oposto, contra as suas conclusões.

Sempre que falamos sobre psicanálise, o que não devemos esquecer é a sua rejeição da aparente dicotomia entre essencialismo biológico (o gênero como um fato biológico sinônimo de sexo) e construcionismo discursivo (gênero como uma construção histórico-social); confrontada com estas duas opções, ela escolhe o terceiro, por assim dizer. É por isso que, de fato, parece-me que há uma certa coerência entre pensamento psicanalítico e a lógica do transgenerismo. Pessoas trans claramente não são construtivistas absolutas – se fossem, sabendo do historicismo e contingência de “gênero”, como tal, não teriam investido em esculpir um lugar de possível identidade dentro de sua estrutura, seja do sexo oposto ao que corresponde ao seu sexo biológico (como no caso de homens e mulheres trans) ou de uma total recusa deste binário (como no caso de tudo o que é acolhido sob o termo genérico “genderqueer“). Eles poderiam simplesmente descartar a noção de que qualquer coisa relacionada ao gênero tivesse alguma relação fundamental sobre a sua identidade separada da performatividade. Eles também não são essencialistas biológicos, como é evidente a partir da separação de gênero e sexo biológico inerente ao transgenerismo e a mobilidade de gênero, portanto, prescrita. O que uma pessoa trans sabe é que o sexo/gênero não pode ser reduzido à biologia, mas também não pode ser descartado completamente como puramente retórico/performativo. Esse é precisamente o próprio ponto de vista de Lacan e é por isso que podemos ver as razões pelas quais Tim Dean tem chamado Lacan “a queer theorist avant la lettre” ou “um teórico queer a frente de seu tempo”.

Lacan era da opinião de que o sexo não pode ser reduzido a uma construção discursiva, porque é oposto ao sentido em si, ocorrendo no (ou como) limite interno para a significação: “Tudo implicado pelo engajamento analítico com o comportamento humano indica não que o significado reflete o sexual, mas que o ele inventa para si”. “Sexo”, como Joan Copjec coloca eloquentemente,”é a pedra no caminho do sentido”. Isso é o que os lacanianos querem dizer quando afirmam que a diferença sexual é “real” — não que ela aponte para uma realidade biológica (pré-discursiva), mas que ela designa o próprio fracasso da simbolização em si. O simbólico é como um toro, estruturado em torno do furo do real, que Lacan engenhosamente descreveu como “extímo” a ele, e como tal não há nenhum significante da diferença sexual no inconsciente, apenas o falo, que responde por essa própria impossibilidade. Isso passa despercebido para muitos teóricos de gênero, que observam que a simbolização ou a construção discursiva do sexo é um processo contínuo, sem fim, mas não reconhecem que o sexo não designa simplesmente este processo discursivo, mas ao invés o fracasso desse processo como um todo.

Que não haja significante da diferença sexual no inconsciente significa que, como Tim Dean escreve: “a diferença sexual não organiza ou determina o desejo sexual”. É por isso que a confluência de identidades de gênero e sexualidades de Žižek é particularmente surpreendente; a fórmula lacaniana da relação sexual que ele cita — “1 + 1 + a” — nada tem a ver, em si, com os gêneros das pessoas envolvidas. Além disso, o “terceiro elemento” no qual ele está tão interessado em centrar seu argumento, o objeto a, é radicalmente assexuado, como Tim Dean também apontou: na medida em que a relação do sujeito com o objeto opera através da fantasia, nenhuma fantasia (cis ou transgênero, hétero ou homossexual) tem qualquer pretensão de mais “autenticidade” ou de sucesso do que qualquer outra. Na teoria lacaniana, “masculino” e “feminino” não descrevem posições biológicas mas sim posições assumidas em relação ao impasse do sexo. Como o próprio Lacan diz, ao explicar o gráfico da sexuação: “De outro lado, você tem a inscrição da parcela da mulher nos seres falantes. A qualquer ser falante que seja, como é expressamente formulado na teoria freudiana, seja provido com os atributos da masculinidade — atributos ainda a serem determinados — ou não, é permitido inscrever-se nesta parte”. Um homem heterossexual pode muito bem ser um sujeito feminino em termos da psicanálise, de uma forma que é crucialmente não behaviorista. Na medida em que eles respondem a uma impossibilidade “real”, ambas as posições indexam um fracasso, e hão de ser igualmente (mal) bem-sucedidas, embora de formas assimétricas.

O fato de que o inconsciente não contém significante da diferença sexual significa que ele é essencialmente bigênero/bissexual (como Freud mesmo já havia sugerido), razão pela qual Shanna T. Carlson concluiu que uma maneira pela qual uma pessoa transexual pode ser vista em termos da psicanálise é como personificando “o sujeito humano como tal, o sujeito bisexual inconsciente para quem a diferença sexual é sempre uma solução incompleta, insatisfatória para o fracasso da relação sexual”. Žižek (e antes dele, Catherine Millot), obviamente, quer argumentar que essa solução é de fato uma tentativa condenada de escapar da ansiedade da castração. Eu não entendo por que ele chega a esta conclusão. Ele parece estar sugerindo, implicitamente, que as pessoas trans falham em assumir uma posição com relação ao falo (“ter” — masculino ou “ser” — feminino). Mas eu não vejo nenhuma razão para acreditar nisso uma vez que entendemos que a posição sexual e identidade de gênero não são sinônimos na teoria lacaniana. Um homem heterossexual cisgênero não tem maior pretensão ou probabilidade de assumir a sua castração do que qualquer um em qualquer outra posição sexual, e ainda mais quando as únicas estruturas clínicas disponíveis para o sujeito lacaniano são neurose, perversão e psicose, todo sujeito vem a ser definido por uma complicação ou impasse em relação ao Outro, isto é, em relação à castração. Não faz sentido para Žižek sugerir que o transgenerismo é de alguma forma um sintoma que se destaca de todos os outros. Quando Zizek escreve que a “tendência LGBT” para “desconstruir” normas sexuais “reduz essa tensão ao fato de que a pluralidade de posições sexuais são fortemente reduzidas à camisa de força normativa da oposição binária de masculino e feminino, com a ideia de que, se sairmos desta camisa de força, vamos obter um completo florescimento da multiplicidade das posições sexuais (LGBT, etc.), cada uma delas com a sua completa consistência ontológica”, ele faz um salto injustificado, insinuando que as pessoas trans não assumem a mesma lacuna ontológica como todos os outros, mesmo a despeito de sua identidade de gênero, com maior ou menor reconhecimento deste como presente no sujeito cisgênero. Pessoas trans não têm ilusões de serem “mais completas” ou totalmente realizadas sexualmente do que suas contrapartes cisgêneras. Žižek não pode manter simultaneamente que a “tendência” que ele identifica tenta ambos: “des-ontologizar” o sexo e prover às posições sexuais resultantes com “consistência ontológica completa”. Na verdade, Lacan — “anti-filósofo” que era — não atribui de forma alguma consistência ontológica ao sexo, pois, como já dissemos, ele marca o ponto em que o próprio logos falha. Parece que Žižek encontrou-se apanhado na mesma dicotomia natureza/cultura datada que a psicanálise existe para tornar obsoleta.

A verdade é que a teoria da diferença sexual de Lacan representa, talvez, a mais complexa faceta do trabalho de toda a sua vida. Eu não tenho espaço para fazer justiça aqui, e eu não estou sequer tentando introduzir o gráfico da sexuação de Lacan (que poderia de fato levar todo um outro ensaio). Os seminários de Lacan sobre diferença sexual contêm muitas de suas mais notórias, provocantes e mal compreendidas declarações: “Não há relação sexual”, “A mulher não existe”, “A mulher é um sintoma do homem”. Essa é parte do problema com o artigo de Žižek: ele tenta montar uma crítica lacaniana do transgenerismo enquanto apenas faz gestos vagos na direção do que Lacan realmente disse. Demasiadas vezes, Lacan se tornou para Žižek um floreio retórico, ou (em um caso de ironia sublime) um Grande Outro ao qual apelar por autenticidade; o conteúdo real da obra de Lacan está perdido. Na verdade, Lacan tem muito a oferecer para a teoria queer, e uma teoria queer genuinamente lacaniana poderia ser uma incumbência grande e frutífera, que só pode acontecer se os lacanianos estiverem dispostos a ouvir (como verdadeiros analistas) os relatos das pessoas trans, em vez de forçá-los a estarem em conformidade com um quadro teórico pré-decidido. Se a psicanálise não pode explicar a existência das pessoas trans sem reduzí-los a uma versão patológica do já patológico sujeito humano cisgênero, corre o risco de se tornar a ciência obsoleta que seus opositores afirmam que já é.

Outras leituras

Eu indicaria para qualquer um que queira ler mais sobre este tema o profundo ensaio de Shanna T. Carlson, “Transgender Subjectivity and the Logic of Sexual Difference”. Sobre a diferença sexual lacaniana,  Jacques Lacan, de Sean Homer fornece uma boa introdução, e The Lacanian Subject: Between Language and Jouissance de Bruce Fink é incrivelmente útil. “Sex and the Euthanasia of Reason”, de Joan Copjec é talvez a resposta lacaniana definitiva para a teoria de gênero Butleriana. E, claro, Lacan deve ser lido em suas próprias palavras; neste caso, The Seminar of Jacques Lacan, Book XX: Encore, On Feminine Sexuality, the Limits of Love and Knowledge, 1972-1973.


*Escrevi um pouco mais sobre isso aqui, com recomendações de leitura adicionais.

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3 comentários em “Žižek está errado sobre algumas coisas”

  1. Bacana seu texto. Ainda assim, tenho a impressão de que Zizek fala sobre autocompreensão do movimento LGBT e não sobre sua sexualidade prática. O que o desagrada é precisamente a tendência dos grupos identitários a tomarem suas condições como superiores por serem condições oprimidas.

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