Divagações a partir dos 200 anos de Eugène Pottier

Por Frederico Lyra de Carvalho, CEII/Lille 3 

No último dia 04 de outubro foi comemorado o bicentenário do autor da letra da Internacional, Eugène Pottier (1816 – 1887). Operário e poeta, escreveu a letra desta que é uma das canções mais conhecidas ainda hoje no mundo, – não é pouca coisa no mundo contemporâneo das banalidades musicais esta canção ainda ser tão conhecida – mas infelizmente morreu nove meses antes dela ser transformada em música por Pierre Degeyter. Aparentemente a Internacional foi escrita tendo em mente a melodia da Marseillesa – ainda era um tempo em que esta canção, hoje hino da França, representava a Revolução Francesa, e não a república francesa atual. O destino da letra é fascinante pois, ao longo dos anos, ela foi traduzida em dezenas de idiomas e adotada oficialmente ou não como hino de países, partidos e grupos políticos.


Apenas a partir de 1904 ela se tornou hino da Internacional. A poesia é composta de 6 estrofes de 8 versos, além do refrão de 4 versos. A versão em português é bastante fiel, contendo versões das 6 estrofes do original em francês. Porém, a primeira versão Russa de 1902 continha apenas 3 estrofes, a segunda, pós-revolucionária, foram acrescentadas as três que faltavam. Todavia, durante o regime Stalinista a 5a estrofe era omitida. O tempo verbal foi atualizado, onde o futuro passou a ser presente. A versão britânica também só possui 3 estrofes, já a norte-americana 5. Uma história do comunismo poderia ser escrita através dessa canção, um documentário já existe.

 Pottier tem uma biografia bastante interessante. Ele fez parte ativa das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris em 1871. Nesta última teve um papel de destaque tendo sido inclusive prefeito da sub-prefeitura do 2º arrondissement parisiense, cargo que exerceu até o final da semana sangrenta. Conseguindo escapar do massacre final, Pottier foge inicialmente para a Bélgica para logo em seguida se exilar na Inglaterra e nos Estados-Unidos. Só voltaria para a França, anistiado, em 1880. Retratando a sua própria evolução política, o poeta dizia que em 1832 era republicano e em 1840 socialista, já em 1885 ele se definia como comunista e anarquista. Com duas revoluções nas costas, não restavam dúvidas. O cortejo do seu enterro foi acompanhado por aproximadamente 10 mil pessoas, boa parte portando bandeiras vermelhas. Como não poderia ser diferente em um enterro de um communard desta importância, a polícia francesa interferiu no enterro tentando tomar estas bandeiras dos camaradas. Nem no caixão a caminho do cemitério do Père Lachaise o poeta teve sossego. No meio da confusão foram presos vários camaradas, entre eles o socialista Jules Joffrin que, por sua vez, seria assassinado nas vésperas da primeira guerra mundial. Meses antes de morrer algumas das poesias de Pottier forma compiladas por amigos em um volume intitulado: Cantos Revolucionários.

Feito esse ponto sobre o poeta e dada a devida e merecida homenagem, podemos observar que, para a posteridade, o personagem que mais nos interessa é Degeyter, ou melhor, não exatamente ele, mas a melodia por ele composta para dar suporte musical para a poesia de Pottier. Pouca gente, mesmo entre os mais radicais comunistas, conhece de memória a letra completa da canção da Internacional. Assim como acontece com as canções pop’s que tocam nas rádios, a maioria só conhece o refrão. Por outro lado, muita gente, incluindo vários não-comunistas são capazes de cantar a melodia de Degeyter e, sobretudo, reconhece-la instantaneamente. A associação com o espectro (a toupeira ou o Kraken) é imediata. É a melodia que unifica as dezenas de versões que esta canção possui nas mais distintas línguas. Poderíamos, sem muita dificuldade, imaginar comunistas de todos o mundo cantando esta canção em uníssono cada um na sua respectiva língua, seria uma verdadeira Torre de Babel. Um coral gigantesco onde um não entenderia o outro mas, reconhecendo aquela simples melodia, saberia instantaneamente que aquele outro é um camarada. E não é improvável que isto já tenha acontecido em algum momento da história.

Ora, o que isso pode nos mostrar? Ao meu ver, ao invés de nos concentrarmos tanto nas diversas letras e poesias militantes feitas mundo afora, deveríamos prestar mais atenção nas melodias que elas, quando canções, carregam. É a melodia ou, sem maiores rodeios, a música, que unifica e que possibilita a internacionalização da coisa toda. Ela ultrapassa a linguagem.

Dentre os vários problemas e questões que isto nos coloca, abordaremos aqui apenas um. Vimos que é verdade que é a música que unifica e possibilita as mais diversas traduções e versões de uma mesma canção. Que é ela que é realmente identificável. Porém, aqui, na Internacional e em outras canções, existe sempre um suporte linguístico que nos assegura que ela carrega aquele sentido. Nas suas mais diversas versões a letra da Internacional diz mais ou menos a mesma coisa (ou ao menos deveria). Como fazer o mesmo em uma música unicamente instrumental, que não carregue consigo uma linguagem, sem que haja margens para dúvidas? Não tem como pois, sendo a música apenas sons não dá para determinar se aquela é uma música instrumental comunista, fascista ou liberal. O som não tem posicionamento político. Os exemplos levantados por Slavoj Zizek na obra Em Defesa das Causas Perdidas, quando o autor nos fala da Ode à Alegria do último movimento 9ª Sinfonia de Beethoven, devem bastar para nos darmos conta desta aporia constitutiva da música[1]. Não tem como escapar, essa abstração de sentidos é um atributo intrínseco a esta expressão artística.

O que fazer então? Uma possibilidade para saída deste impasse é um gesto arbitrário, uma decisão que cabe ao compositor, de não importa qual tipo de música, realizar: dar um título. Como uma forma de subjetivação daquele objeto criado, um título pode demonstrar a posição daquele que criou aquela música. É como impor um suplemento desnecessário àquele objeto que depois de incorporado se torna, retroativamente, essencial, indissociável. Por exemplo, nos Estados-Unidos vários músicos de ‘jazz de vanguarda’ a partir dos anos 60, registraram músicas ou álbuns inteiros com títulos que tornavam as suas posições claras, sobretudo em relação àquele momento político do país. Podemos citar alguns exemplos, como as composições “Alabama” (1963) do saxofonista John Coltrane[2], “Oh Lord Don’t Let Them Drop That Atomic Bomb on Me” (1962) e “Once Upon a Time, There Was a Holding Corporation Called Old America” (1965) do baixista Charles Mingus, o álbum Afrisongs (1975) do pianista Muhal Richard Abrams, o saxofonista Archie Sheep gravou vários álbuns como Poem for Malcom (1969), Attica Blues (1972)[3], The Cry of My People (1972) Force: Sweet Mao – Suite Africa ’76 (1976) e The Long March (1979) (estes dois últimos em duo com o baterista Max Roach[4]), entre vários outros. O caso mais emblemático, porém é o de Charlie Haden com a Liberation Music Orchestra que registrou músicas intituladas: “Che Guevara, “Passionara” et “Sandino”, uma versão instrumental de “Nkosi Sikelel’i Afrika”[5], versões de músicas da guerra civil espanhola, entre várias outras. Haden gravou quatro álbuns com a Liberation Music Orchestra: um homônimo de 1969, The Ballad of the Fallen (1982), Dream Keeper (1990) e Not in our Name (2005). As datas são importantes pois o primeiro tinha como pano de fundo a guerra do Vietnã, o segundo a Era-Regan, o terceiro a primeira guerra do Iraque e o quarto e último a segunda guerra do Iraque. Eles não foram criados nestes exatos momentos por acaso, as escolhas de tais momentos era parte da posição assumida por Charlie Haden.

Talvez fosse possível escutar cada uma destas composições ou álbuns abstraindo os seus títulos, afinal, antes do seu batismo, nada impediria que uma música chamada Che Guevara viesse a ser nomeada de Richard Nixon. Mas não foi o caso. De alguma forma o título encarna algo além da música, um posicionamento, uma decisão do autor que torna difícil, quiçá impossível, a separação entre os dois. Não é o conteúdo que porta aquele nome, mas a forma daquela obra, é ela que é implicada. Como ouvi-las e não imaginar estar face-a-face com Passionara ou junto com Mao-Tsé-Tung na longa marcha? O historiador Eric Hobsbawn nos dá uma pista quando ele observa que no caso destes músicos: “a reafirmação da tradição era política, mais do que musical. Pois, o jazz de vanguarda dos anos 60 era consciente e politicamente negro, como nenhuma outra geração de músicos de jazz o tinha sido”[6]. A música apontava para o futuro tendo o passado e o presente daqueles que a criavam como alicerce. Parece um pouco óbvio, mas teria sempre sido caso? Ou sobretudo, é este ainda o caso? Intitular as músicas e álbuns de maneira explícita era uma maneira de dar voz as demandas presentes naquele momento. Exatamente pelo fato das suas músicas serem essencialmente instrumentais a única forma de deixar nas suas artes a clareza das suas posições, a sua solidariedade na luta e mesmo as suas inspirações era intitulando os álbuns e composições com tais nomes. Todavia é importante ressaltar que aqui não cabe fantasiar uma hermenêutica, são tomadas de posições. Esta era uma ação ligada muito mais a uma atitude pessoal vis-à-vis o que se passava na sua sociedade do que propriamente uma tentativa de revelar um suposto conteúdo escondido na música.

Mais recentemente podemos observar a interessante tentativa feita pelo grupo Kefaya. Tendo Londres-UK como base, o grupo é liderado pelo violonista italiano Giuliano Modarelli e pelo pianista inglês Al MacSween, mas possuiu uma formação variada tendo ao todo 17 membros que vão desde espanhóis, e cubanos, passando por afegãos e palestinos. O primeiro álbum do grupo, lançado no último mês de outubro, é intitulado: Radio International[7]. O grupo descreve a sua música como “internacionalista”, como sendo um tipo de “jazz de guerrilha” ou uma “música global de protesto”. O nome do grupo é uma alusão à Primavera Árabe, sendo Kefaya uma palavra em árabe que significa “basta” e o nome não-oficial de um dos movimentos que desencadearam esse evento. As composições do álbum também carregam títulos que apontam em direção de diversas lutas e eventos que tomaram forma recentemente em todo o planeta: Indignados (Espanha), Intifada (Palestina), Whisteblower (para Edward Snowden), Manush (para Piyush Manush) são alguns dos títulos. Uma outra faixa, com um espírito otimista, é intitulada “New Routes”, algo como se estes eventos e figuras estivessem apontando para novas direções à serem seguidas. Há ainda uma versão instrumental da clássica canção italiana de protesto, “Bella Ciao” – talvez como uma lamentação de que no país de onde Modarelli[8]é originário nada semelhante, até agora, tenha tomado forma.

Por tentar unificar o internacionalismo dos músicos – todos de um nível técnico altíssimo, Modarelli é um daqueles grandes violonistas dos quais não ouvimos nem ouviremos falar – com o internacionalismo dos títulos das composições, a iniciativa do Kefaya parece criar uma constelação bastante consistente das posições que um grupo musical pode tentar tomar com o seu trabalho e criação artística em tempos conturbados como os atuais[9].

Todavia, isso resolve apenas parte do problema. Também está em falta uma nova música para podermos cantar com os camaradas dos lugares os mais distantes possíveis tendo certeza de estarmos do mesmo lado. Todavia, arriscamos dizer que em um momento em que pouca coisa parece ter um sentido imediato, em que a intuição parece girar em falso, talvez estejamos precisando andar na contramão e buscar melodias não intuitivas que não façam sentido imediato e que dificilmente possamos aprender logo no primeiro momento. Em uma época que exige um grande esforço da imaginação para se pensar além do capitalismo, precisamos de músicas que demandem um esforço extra da imaginação de quem canta e de quem ouve. Músicas sem imagens. Uma música genérica no seu material. Em um primeiro momento pode parecer que esta ideia seja quase que um absurdo. No entanto, a incorporação da angústia deste tempo da urgência pede algo que se materialize em um absurdo sonoro. Foi-se o tempo mais festivo, e ele não voltará. Neste momento de catástrofe completa, a ideia de um absurdo sonoro é quase tão grande quanto a de levantar a possibilidade de uma Hipótese Comunista. Por outro lado, talvez só os absurdos nos ofereçam uma saída de emergência.


[1] Ver: ZIZEK, Slavoj, In Defense of the Lost Causes, London, Verso, 2009, p. 270-274.

[2] Escrita como resposta a um massacre feito pelo Ku Klux Klan no Alabama onde quatro garotas foram assassinadas.

[3] Em referência a um levante de prisioneiros na cadeia Attica.

[4] Max Roach, que por sua vez, tem sob seu nome o álbum mais explosivo de todos : We Insist ! Freedom Jazz Suite (1960), mas que por não ser inteiramente instrumental não entra na nossa argumentação.

[5] Canto religioso emblemático para vários movimentos pan-africanos.

[6] HOBSBAWN, Eric, História social do jazz, São Paulo, Paz e Terra, 2004, p.19.

[7] No entanto, embora o seja, o Kefaya não atua sempre como um grupo estritamente instrumental. Muitas vezes, tanto ao vivo quanto no álbum, eles contam com a participação de cantores. Além disso, sob meu ponto de vista, este é um grupo muito mais interessante quando atua ao vivo do que neste primeiro disco, como por exemplo neste show: https://www.youtube.com/watch?v=ScNWLLRjZh4
Em todo caso, a discussão aqui se dá sob um ângulo menos musical e mais voltado para o posicionamento dos músicos e do grupo. Uma clara e interessante iniciativa em meio a um vazio que predomina no meio.

[8] No álbum solo do violonista há também uma faixa intitulada Arab Spring.

[9]  Devem existir outras iniciativas semelhantes mundo afora que ainda desconhecemos.

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