Organizar para superar a melancolia política

Por Paulo Spina

Organizar é um verbo que circula nos bastidores dos movimentos sociais como explicação para atingir objetivos variados. Diversas formas de organização são debatidas pelos movimentos – das mais centralizadas e hierarquizadas às mais descentralizadas e horizontais. Entretanto, em geral, a potência do ato de se organizar e o seu significado são considerados óbvios e, portanto, não são aprofundados.


Um primeiro ponto sobre o significado da ação “organizar-se” é a percepção que este não é um ato para o outro, mas sim um ato para si. Neste sentido, só é possível organizar algo ou alguém se participarmos intensivamente por dentro do processo. Não iremos então organizar os outros, nós iremos nos organizar em conjunto. A mudança de perspectiva entre organizar o outro e se organizar é o simples entendimento que organizar é estabelecer laços[1]. Aqui não falamos das relações intermediadas pelo dinheiro tão comuns no nosso cotidiano, mas nos referimos a toda e qualquer lealdade tecida pelos laços afetivos que se fortalecem ao lutar em conjunto. Estes laços não são neutros e, portanto, é preciso discernir e direcionar as conexões para aquelas que potencializam a luta, pois o número de ligações possíveis é limitado.

Mas é necessário superar a lógica daqueles que entendem que a decisão de se organizar é apenas um ato generoso de doação a uma causa separada da sua vida prática. Este equívoco relacionado com as formas de organização de determinados grupos tem levado militantes a produzirem sintomas que enfraquecem o confronto político. Um dos sintomas principais é a desorganização de outras esferas da vida, que por vezes leva a uma desilusão ou uma fraqueza com a própria militância. Organizar-se só fará sentido se as próprias pessoas tornarem-se mais potentes.

Organizar-se significa saber que a luta não apenas muda a vida, mas mais que isso, a luta não pode ser separada da vida em comum. Os ativistas ao dizerem que a luta muda a vida trazem, em sua maioria, o enfoque material das possíveis conquistas. Mas a principal mudança que a luta em comum faz na nossa vida refere-se à nossa ideia ou crença na felicidade. Experimentada, a felicidade da luta partilhada já será incômoda a ideia tão difundida de que felicidade é prover (ou consumir) bem estar para e com a família.  Ao experimentar a felicidade dos laços compartilhados em uma luta comum o cotidiano não será mais como anteriormente. Mas aqui está uma das barreiras ao ato de se organizar. O que fazer com a pessoa que eu era antes? Como poderei não me dedicar tanto à família para me dedicar à luta? E por vezes como lidar com as contradições de trabalhar em um local que fortalece as mazelas do capitalismo?

Percebam como não é fácil uma pessoa se organizar e ser militante, mesmo após experimentar o gosto da partilha do comum persiste dilemas para os quais não há receita. Ou seja, é necessário enfrentá-los de forma ao conjunto se fortalecer. Sustentar as contradições do trabalho até conseguir sobreviver materialmente de outra forma ou em conjunto. Envolver a família nos laços de luta. Pode ser difícil, mas não é impossível. É preciso estar no mundo para criar outro mundo.

Para além de criar laços, organizar-se é a determinação de agir em conjunto. No livro “Aos nossos amigos”[2] afirma-se que há uma considerável diferença entre uma massa de pobres e uma massa de pobres determinados em agir em conjunto. Organizar-se significa partilhar de uma visão comum da situação, inspirar-se coletivamente, conspirar. O ato de partilhar de uma visão comum vai além de ter as mesmas ideias: significa partilhar tempo, partilhar recursos, partilhar problemas, partilhar soluções e partilhar conhecimentos. A intensidade da partilha faz as conexões mais fortes e estabelece a potência do ato de se organizar.

Organizar-se é ter uma inteligência coletiva estratégica, uma visão de conjunto sobre a realidade em curso. Realidade esta que é colocada a todo o momento em suspensão por diversos ataques. Organizar-se significa não deixar a decepção com os ataques – e também com aqueles que não se responsabilizaram pela mudança, mas apenas aprofundaram o status quo –, destruam solidariedades e produzam divisões, abatimento e certa melancolia política.

Estamos nos aproximando do final do ano, as luzes de natal começam a aparecer nas ruas e as festas começam a ser organizadas. É neste momento de fim de ciclo e inicio de um novo ano que muitas pessoas refletem sobre o que passou e fazem os planos para o novo momento. Para superar a melancolia política desejo a todos a descoberta de que organizar-se significa poder contar com o outro. Saber que não estamos sozinhos é uma forma não apenas de superar o estado de abatimento, mas, sobretudo, de ter felicidade em compartilhar a luta comum.


[1] A Insurreição que vem, Comitê invisível, p.170

[2] Aos nossos amigos, Comitê invisível, p.13

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