Uma conversa com Raquel Varela sobre Eu, Daniel Blake, de Ken Loach

Por Yasmin Afshar

A história do novo filme de Ken Loach, Eu, Daniel Blake, acontece em Newcastle, uma cidade inglesa de longa tradição de lutas operárias. Daniel Blake é um carpinteiro que, depois de um ataque cardíaco, fica impossibilitado de trabalhar e, por isso, procura obter um auxílio-doença. Ao enfrentar os obstáculos impostos pela burocracia do Estado, ele conhece Kate, desempregada, mãe de dois filhos pequenos, que procura, também em vão, obter o auxílio-desemprego.

A história representa o drama de milhares de trabalhadores na linha da miséria que dependem da assistência do Estado britânica. À diferença de outros filmes do cineasta trotskista, Eu, Daniel Blake não trata de uma alternativa de luta coletiva contra o sofrimento dos personagens. Daniel acaba por perecer em uma disputa solitária com o Estado assistencial.

Será o filme somente uma história de fracasso? Não é o que pensa Raquel Varela, historiadora do trabalho, professora da Universidade Nova de Lisboa e coordenadora do Observatório para as Condições de Vida da UNL. Na conversa que tivemos, ela discorreu sobre a passagem do Estado de bem-estar para o Estado assistencial, a influência dessa transição sobre os vínculos sociais e afetivos e sobre os obstáculos subjetivos a serem superados para a construção de um futuro comum.


Yasmin Afshar: O pano de fundo de Eu, Daniel Blake é a conversão do Estado de Bem-Estar Social inglês em Estado assistencial: da promoção de direitos universais, o Estado passou a garantir o mínimo necessário à sobrevivência dos mais pobres (via auxílios e renda mínima). Como a senhora explica essa transição? 

Raquel Varela: O que nós temos é um erro fulcral na esquerda, que confunde Estado de Bem-Estar Social universal com Estado assistencialista, focalizado e parcial – de sustentação das altas taxas de desemprego, do exército industrial de reserva e da população excedente. Enquanto que o primeiro eleva o valor da força de trabalho e a massa salarial, o segundo o faz cair. O segundo é o reverso do primeiro, têm formas e sentidos colidentes. Na verdade o que faz a assistência social – como a renda mínima e outros programas compensatórios – é utilizar dinheiros dos trabalhadores de setores médios para sustentar os períodos de desemprego dos trabalhadores pobres. Essa transição se dá a partir dos anos 1990, com a duplicação da força de trabalho em escala mundial e a aplicação dos programas desenhados pelo Banco Mundial em todos os países, recomendando que, assim que a taxa de desemprego começasse a elevar-se, começassem a se criar programas assistencialistas. Esse é um programa essencialmente capitalista, portanto – como digo, as grandes investigações sobre isto estão no Banco Mundial – mas que, infelizmente, foi adotado pela social democracia oficial e por parte da esquerda marxista-revolucionária, que viu nisso um “mal menor”, digamos assim. Para quem aposta no programa da transformação social global como saída política da presente crise, alguma autocrítica deve ser feita a respeito do significado histórico-universal deste Estado particular. Que o filme fale a respeito justamente do rincão do mundo que deu origem ao Welfare State, a Europa Ocidental, como a sua mais vigorosa antítese, é mesmo de se pensar. Um importante registro: parte da esquerda mundial e dos trabalhadores de todos os países não vergou a espinha. Sir Loach certamente faz jus a esse filão.

Yasmin Afshar: Quase todos os personagens que convivem com Daniel Blake estão desempregados ou vivem de “bicos” mal-remunerados, pequenos delitos e de eventuais benefícios do Estado. Que função cumprem esses auxílios estatais na era neoliberal?

Raquel Varela: O caso de Daniel Blake é o de um trabalhador manual produtivo, um operário altamente qualificado, com pendores de autonomia e criatividade típicas do que já foi um dia o mestre-artesão. O domínio sobre a totalidade do processo produtivo, o amor ao ofício, a autoestima social e política que daí derivam são a sua marca. É o trabalhador em parte não-alienado – ou pelo menos o trabalhador com mais e maior força anímica e criadora, e isso tem muito a ver, na minha opinião pessoal e política, com o fato de Ken Loach ser parte do movimento trotskista e o trotskismo considerar que há nesta parcela específica do mundo do trabalho uma vanguarda de cena da transformação social global – que tenta auxiliar os trabalhadores desempregados, precários e subempregados. É claro que é tudo mais complexo do que isso, tanto na arte como na vida, pois o próprio trabalhador manual clássico – ou seja, o personagem-tipo de Daniel Blake – acaba por cair na possibilidade de indigência quando não luta, coletivamente. Aliás, no filme, ele acaba morto, derrotado porque enfrentou – sozinho – o Estado.

O dado importante aqui também é que o Estado aparece como o que é. O Estado não aparece como um “amigo assistencial”, mas como uma teia burocrática, em que os serviços de desemprego, na verdade, são para manter as pessoas desempregadas, e não para auxiliá-las. Ou seja, é para gerir o preço da força de trabalho, pois é o desemprego, o exército industrial de reserva, que gera o valor do salário de quem está empregado. E o Estado, através dos serviços de desemprego, cumpre esse papel. E de uma forma até algo complexa aqui: porque os próprios serviços do Estado estão já privatizados. Ou seja, entra aqui toda a questão da burocratização política e do Estado moderno. Mas a proposta de Loach não é uma sociologia do trabalho ou uma politologia do Estado. Trata-se de um olhar arguto sobre as riquezas e as misérias do mundo do trabalho contra o mundo do capital.

Yasmin Afshar: O filme retrata o controle burocrático do Estado da miséria contemporânea. O que é a miséria? Como ela se reproduz a partir dos anos 1970 na Europa?

Raquel Varela: A miséria, de fato, é relativa. Aquilo que é dado como miséria no Brasil não é dado como miséria na Dinamarca, porque isso tem a ver com o patamar da luta de classes, ou seja, com as conquistas sociais. Aquilo que é intolerável para um trabalhador miserável dinamarquês – por exemplo, não ter saúde gratuita – é aceitável para a classe média brasileira – pagar a saúde. O índice de miséria normalmente vem associado ou à ideia de um valor fixo por dia, estabelecido pela ONU, que é o limite/linha da pobreza; ou então vem associado ao salário médio, como é em grande parte dos países. Ou seja, quando há uma queda do salário médio, também cai a linha de pobreza. Não caem os pobres, cai é a fasquia a partir da qual eles são considerados pobres. Eu penso que, hoje em dia, nós não podemos nos valer dessas estatísticas para o trabalho político e social de mudança e transformação das relações mercantis – portanto, de derrubada do modo de produção capitalista, para dizer então com todas as letras. Por quê? Porque miséria no Século 21 também deve ser uma criança não saber ler, não tocar um instrumento, não saber apreciar um quadro de arte – porque a miséria tem a ver com a produtividade alcançada. E a produtividade aumentou, em alguns países países ocidentais, em média, 5, 6, 7 vezes, nos últimos 50-60 anos, portanto, desde a grande guerra. O segundo pós-guerra fez consolidar uma nova etapa do capitalismo dos monopólios e com isso inscreveu na letra da lei o complexo categorial do que primeiramente foram as políticas públicas (universais) e, depois da crise do capital pós-73 – com a quebra do padrão ouro-dólar e todas as mudanças associadas – os programas compensatórios (focais). Isso não é o mesmo no centro do sistema e na periferia – mas é curiosa a fala de um dos personagens precarizados, vizinho de Sir Daniel Blake, o ‘China’, a dizer que a sua condição salarial é, em verdade, “pior do que está na China”. É também curioso que esse vizinho não despeja o lixo, é individualista, e Loach critica isso – não o suficiente para o retirar da classe trabalhadora, porque Blake abraça-o e cuida-o, mas critica-o por ele não ter respeito pelos outros trabalhadores. O mesmo se passa com um do bairro que deixa o cão fazer cocô no jardim. Loach tem compaixão por todos os trabalhadores mas o nosso herói do filme tem outra moral, superior, evidentemente.

Yasmin Afshar: Os impactos afetivos da miséria e do desamparo é um todos principais temas do filme. Que influência a situação de desemprego e dependência da assistência do Estado pode ter sobre os vínculos de solidariedade?

Raquel Varela: A questão é que nas associações mutualistas ou nos sindicatos operários em que havia seguridade social (e saúde associada a isso), as pessoas sentiam que estavam a dar um contributo, uma quota, e teriam um beneficio de volta por esse associativismo. Enquanto que o Estado parece ser muito mais distante das pessoas. Muitas vezes as pessoas nem sentem que estão a pagar algo. Por exemplo, o subsídio-desemprego é um desconto da folha de pagamento dos trabalhadores ativos. Mesmo os programas focalizados são dinheiro de todos os trabalhadores – obviamente uma parte pequena dos trabalhadores mais pobres e a maior parte dos trabalhadores médios. Não é uma dádiva do Estado, o Estado não está a dar nada a ninguém. Mas essa relação não fica tão clara quanto nas associações mutualistas. Eu diria, ainda, que o desemprego é profundamente desmoralizante. As pessoas sentem-se completamente excluídas da sociedade, porque justamente o que organiza a sociedade é o trabalho, a produção social da vida em coletividade. O que acontece – e o filme demonstra de forma tocante – é a desefetivação dos seres sociais que, pouco a pouco ou de forma brutal, vão apagando as suas luzes para aquilo que Karl Marx chamou de “omnilateralidade do ser genérico”, isto é, a totalidade complexa do que somos e do que podemos vir a ser através do desenvolvimento humano em geral. O filme mostra pontos altos e baixos do mesmo Daniel Blake, por exemplo, na sua oficina maravilhosa de madeiras e ferramentas, com cuidados e delicadeza no trato em geral da vida e do trabalho, mas também um embrutecido Daniel enrolado em cobertores e a vender toda a mobília da casa para não congelar de frio no inverno do Norte da Europa. O mesmo acontece com a mãe desempregada, que vai dos estudos universitários iniciais para a prostituição ocasional, pequenos furtos, mentiras casuais. A dignidade de lutar por trabalho, o movimento social contra o desemprego, não se faz notar no filme. Mas em se tratando da obra e da vida de Ken Loach poderíamos relacionar inúmeros exemplos nas telas e fora delas. Loach e seus associados não pararam de lutar em movimentos, sindicatos e partidos de combate. O mapa dos afetos e a coordenada de convicções andam de mãos dadas. A saída contra a solidão é, mesmo, coletiva.

Yasmin Afshar: A angústia e a ansiedade afetam inclusive os filhos de Kate. Algumas de suas intervenções recentes se dedicaram ao tema da educação das crianças, além de a senhora ser mãe de gêmeos. Da sua perspectiva, qual a diferença entre ser criança na Europa hoje e nos anos 1970?

Raquel Varela: Há algo que aparentemente melhorou: em média, o acesso de cuidados de saúde, pelo menos até os anos 1980-90 na Europa, o acesso de cuidado à saúde e a educação em média melhorou. Mas eu penso que hoje já estamos em um retrocesso. Pois quando analisamos a alimentação, por exemplo, não se trata só da fome calórica, mas também da fome de alimentação propriamente nutricional. Do ponto de vista da capacidade de brincar das crianças, piorou, e muito! Eu diria que as crianças foram as primeiras a sofrer esse impacto absolutamente brutal da distopia da tecnologia, ou seja, do homem-máquina. Todos os estudos hoje, com populações relativamente grandes do ponto de vista da amostragem, demonstram que as crianças que passam mais horas a ver televisão e com videogames têm muito mais doenças associadas. E eu penso que no futuro a grande diferenciação vai se fazer entre aqueles que sabem se concentrar e que dominam a ciência fundamental – a programação por trás dos computadores – e aqueles que só sabem apertar os botões – que é a larga maioria populacional. Há muitas crianças com analfabetismo de nexo psicofísico, com a coordenação motora algo afetada. Suas noções de tempo e espaço, a abstração geográfica, o sentido de proporções estão em franco declínio histórico. O que dizer então, por exemplo, de seu juízo estético? Brincar é fundamental para o desenvolvimento infantil e suas funções psíquicas superiores, que nos distinguem como parte da humanidade. Interagir livremente em espaço aberto. Temo que a poiésis, a criação, da grande maioria das crianças que sabe deslizar um mouse ou acessar o touchscreen não é a mesma de uma criança que brinca de esconde-esconde. As máquinas não nos libertaram um pouco mais; nos fizeram um pouco mais brutos, porque quem determina o seu desenvolvimento não está nem um pouco interessado nestas questões mais amplas. A humanidade vive uma crise de direção. Para onde vamos, como ente espécie? É a isso que a pergunta sobre a educação das crianças deve nos levar. Refletir sobre o nosso presente e o nosso futuro.

Yasmin Afshar: Para Daniel Blake, existem coisas inegociáveis, que não estão a venda. A dignidade (“self-respect”) é, para ele, o sentimento de reconhecimento de sua própria humanidade. A senhora acredita haver uma “economia moral” da classe trabalhadora, como afirmava o historiador marxista inglês Edward Palmer Thompson? Seriam essas coisas “inegociáveis” a motivação decisiva para lutar contra as injustiças sofridas?

Raquel Varela: A economia moral thompsoniana é um grande debate na teoria da história das classes e grupos sociais “de baixo”. Tem a ver com o antagonismo social entre o direito consuetudinário e a propriedade privada na sua gênese e devir. Para isso recomendo, com muito vigor, a obra Os despossuídos (Karl Marx, Boitempo, 2017). E eu acho sim que há algo como uma moral econômica das classes trabalhadoras, sem dúvida alguma. Nomeadamente, não pode ser outra senão aquela que deriva do próprio trabalho. Nós devemos trabalhar. Quem tem saúde deve trabalhar. Ele, Daniel Blake, aliás, não pode trabalhar porque não tem saúde. Mas quem tem saúde deve trabalhar. A ideia de que nós temos uma parte da sociedade a trabalhar para uma outra parte da sociedade ou de que vivemos à conta do trabalho dos outros – que é o que acontece quando as pessoas são ricas, são capitalistas, vivem não só do seu trabalho, quando trabalham, mas vivem do trabalho dos outros – é injusta. Mas a ideia de que alguém pobre não deveria trabalhar é uma ideia profundamente equivocada. O trabalho é a produção coletiva da sociedade como um todo. Cada um deve fazer aquilo que sabe e pode, não pode ficar sem trabalhar. Portanto a política justa é a política de divisão do trabalho por todos, para o pleno emprego. Veja-se agora a polêmica com o Rendimento Básico Incondicional – numa altura em que estão a privatizar o Estado social e temos taxas reais de desemprego de 10 a 20% em todos os países ocidentais, “alguém!” teve a ideia brilhante de dar um cheque de 500 euros aos trabalhadores para vegetarem no desemprego e irem ao mercado comprar saúde e educação. Como a esquerda não compreende o engodo?

A dignidade do trabalho está clara no filme. Até porque, no filme, o trabalho está associado à dignidade: o controle que Daniel tem das ferramentas, por exemplo. A única coisa que ele não vende é sua própria caixa de ferramentas e seu trabalho não-alienado, os peixinhos dependurados. Ele, aliás, quer voltar a trabalhar, é um ataque cardíaco que não o permite. Uma esquerda vertebrada e um forte movimento de trabalhadores deve se colocar de pé não pelas rendas mínimas, mas pelo pleno emprego, redução da jornada de trabalho sem redução de salário, divisão entre todos do trabalho. Devemos voltar a discutir qual é a nossa moral e qual é a deles.

Yasmin Afshar: É comum ouvirmos dizer que a Previdência primeiramente criada na Prússia, por Otto von Bismarck, em 1880. Ao lado de outros pesquisadores, a senhora remonta sua origem à experiência da Comuna de Paris, em 1871. O que está em jogo nessa disputa histórica? Afinal como os communards inventaram a Previdência?

Raquel Varela: Justamente, a primeira experiência de uma segurança social universal, ou seja, de que os de agora descontam para os que já não estão a trabalhar, entra em funcionamento na experiência do autogoverno da Comuna de Paris, quase na metade do Século 19. E a ideia da segurança social sob controle do Estado de forma generalizada nem é de Bismark, é de Hitler. Portanto, todos os regimes ditatoriais utilizaram a segurança social como uma fonte de receitas. O que foi logrado com Bismark foi, digamos, uma série de políticas públicas, em parte pela pressão da social democracia alemã e pela urbanização. O tema e o problema são realmente fascinantes e os novos estudos e pesquisas do Estado Social são revigorantes. Se nada de novo pode surgir da falta de memória, o papel da historiografia social do trabalho não é menor nesta polêmica.

Yasmin Afshar: A senhora costuma dizer que o Estado de Bem-Estar Social já foi uma bandeira contrarrevolucionária mas que é hoje uma causa revolucionária. Por quê é assim?

Raquel Varela: O Estado Social foi criado em 1945, em troca de os trabalhadores em armas – ou seja, milhões de soldados na Europa – entregarem os fuzis. Daí foi criado o Estado Social e a política do pleno emprego, em que as pessoas não podiam ser despedidas sem elevadas indemnizações. E isso permitiu uma elevação salarial geral – quer do salario direto, quer do indireto, que é o Estado Social. Mas isso era possível com taxas de crescimento a 7%, em que os lucros cresciam e os salários também. Hoje, isso não é mais possível. A conservação da ordem do capital, do modo de produção, implica hoje a destruição do Estado Social. Não é possível manter a remuneração dos capitais privados e o Estado Social. Em um primeiro momento, era a prevenção da revolução social para além das fronteiras da URSS. Hoje, faz parte da luta entre a economia política do trabalho versus a economia política do capital.

Yasmin Afshar: Há alguns anos a senhora acompanha de perto a luta trabalhista dos estivadores europeus. Em outro filme de Ken Loach, Os Estivadores de Liverpool, de 1996, o diretor acompanha a greve dos estivadores daquele porto. Qual a relação entre esse movimento passado e a greve dos estivadores do porto de Lisboa em 2014?

Raquel Varela: Os estivadores de Liverpool são um extraordinário exemplo de uma ativa e altiva luta solidária entre trabalhadores precários e fixos – em que os trabalhadores fixos fazem greve de solidariedade aos trabalhadores precários e que, por isso, são demitidos e depois começa uma luta internacional em defesa de Liverpool. Os trabalhadores de Lisboa eram trabalhadores fixos que fizeram greve para que os trabalhadores precários se tornassem fixos – e foi exatamente isso que aconteceu. Acabaram de ser assinados os contratos e isso é uma vitória indiscutível, que levanta nossa moral. Ou seja, contra a ideia de que as pessoas vão perder seu emprego (afetos, identidade, sentido de pertença e ‘self-respect’) e receber do Estado e a favor da ideia de que as pessoas têm que ter um salário digno e direito inalienável ao trabalho. Faz tempo que não ganhamos dessa forma. E faz tempo que precisávamos ganhar. Mas muito tempo não é sempre.

Yasmin Afshar: Seu último livro, escrito a quatro mãos com o psicanalista Coimbra de Matos, Do Medo à Esperança, aborda problemas sociais a partir de dois afetos centrais. Na definição de Spinoza, o medo é a expectativa de que um mal nos aconteça, enquanto a esperança é a expectativa de que nos aconteça um bem. Em ambos, entretanto, trata-se de uma possibilidade mais ou menos remota. Mas a esperança pode também ser entendida como a espera passiva de algo, vinculado, eventualmente, a uma crença religiosa – em um futuro incerto. As palavras e as coisas. Em que medida a esperança pode ser um afeto de engajamento ativo no aqui e agora?

Raquel Varela: Poderia falar de esperança ou de ânima, alma, por que não? [risos]. Ou, ainda, a Vitamina ‘E’, de ‘Entusiasmo’, que significa mesmo ‘levar os deuses adentro’. A inspiração que dá forma ao título deste livro é justamente Baruch Spinoza. É o tempo-de-agora! As pessoas devem ser levadas a acreditar na força que têm. Acreditar ou não na nossa força é fundamental. Essa é aliás uma das funções dos partidos revolucionários: levar a acreditar na sua força potencial, sem mitificação e sem mistificação. Portanto, a esperança é isso: dizer às pessoas que não há obstáculos objetivos ao fim do capitalismo e à construção de sociedades livres e iguais. Há obstáculos subjetivos que podem – não quer dizer que vão, pois não creio em “fins”, teleológicos, da história – ser sinceramente contornados. E a esperança em trabalhadores como Daniel Blake é aqui e agora claramente o mais central. Ou seja, pessoas que vivem do trabalho, e só do trabalho, pessoas com honra, com dignidade, com moral – essas pessoas são absolutamente fundamentais para uma mudança social. Mas Blake precisa de uma organização – e uma organização precisa de Blakes. Sem organização coletiva que dispute o poder político todo o movimento é estéril: já deveriam não duvidar disso depois do que aconteceu ao movimento anti-globalização, primaveras árabes, Occupy Wall Street, cerco ao parlamento em Espanha, greves gerais na Grécia – quem tem partidos organizados é quem define o rumo da sociedade em última instância. Quem não tem mexe-se ao som da música dos outros.

Volto ao livro. A arte do encontro entre o marxismo e a psicanálise já rendeu alguns altos momentos da teoria e da cultura do “Breve Século”. Não raro a historiografia se enriqueceu da psicologia ou da interpretação do indivíduo se passou à análise das sociedades. Mas o que neste livro tem lugar é algo diferente disso. Há aqui um elemento de dissidência, posto que não se trata de qualquer marxismo, nem de qualquer psicanálise. Já ouvi dizer que o melhor do amor e da revolução é não ter de escolher entre o amor e a revolução. Mas é, também, não ser obrigado a optar entre paixão e rigor, profundidade e clareza, responsabilidade e compromisso. O melhor de nós está no outro. Do começo ao fim, como alfa e ômega de todas as questões, está a nossa capacidade de construir, renovar e cultivar as relações. Bertolt Brecht dissera, a certa feita, que “amor é a arte de criar algo com a ajuda da capacidade do outro”. Os impasses e desafios do espírito de nosso tempo são o motivo gerador que alinhavaram essa conversa entre gente tão parecida e tão diferente quanto Coimbra e eu. Lá dizemos, por exemplo, que força e violência não são o mesmo. Que não basta analisar os “de cima”; é preciso criticar os “de baixo”. E, sobretudo, que no princípio não foi o verbo nem a ação; mas a relação. O que poderá surpreender a alguns é que se faça uma conversa assim tão a sério, em meio a tantas gargalhadas. É a última nota que registro: eis aqui uma obra de paixões vivas, de projetos de vida, de construção do futuro comum. Por que não?


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2 comentários em “Uma conversa com Raquel Varela sobre Eu, Daniel Blake, de Ken Loach”

  1. Vamos lá… É sempre oportuno e interessante para a formação escutar o que as gerações passadas tem a dizer para as presentes e futuras…

    A ortodoxia, entretanto, ou incide no mesmo – fazendo análises naturalista e chamando-as de materialista -, ou reforça os lugares comuns sob um verniz novo. Em todo caso, talvez numa entrevista não seja possível – como não é mesmo – aprofundar temas interessantes que pipocam aqui e ali. E sabendo disso, nesse espaço de comentários urge só provocar para que algumas reflexões possam ser colocadas.

    A entrevistada diz que “primaveras árabes” – que ela compara equivocadamente com Wall Street – e grandes manifestações ao redor do parlamento grego e etc., São simplesmente manifestações espontâneas e – de novo – carecem de direção. Joga, de novo, com a moralidade das “direções pervertidas” da classe trabalhadora cujo partido messiânico ainda não fora formado e etc., Quem conviveu com um tipo de marxismo conhece o lugar de onde tais análises partem. (Nada contra, se Trotsky errou era um homem de seu tempo, o problema são seus seguidores permanecerem no mesmo dilema).

    De início parte de uma divisão naturalista entre Estado de bem estar social universal e Estado assistencialista, tipicamente sociológica que não vê as implicações e interrelações historicamente determinadas de um incidindo no outro. Erro de saída, erro de diagnóstico. E novamente a luta se baseia na tomada do poder político como se esse fosse separado (como o capital nos faz crer diariamente) do poder econômico. Logo, sua conclusão e de que as manifestações “espontâneas” são suprimidas pela falta de interesse na tomada do poder político. Pela falta de um corte classista e organização para gerir o Estado por meio de um partido de esquerda. Mas isso de fato é assim? Será que houve para a classe trabalhadora falta de direção? Ou ao contrário o que houve foram muitas direções cujo peso histórico de se atrelar a política burocrática do Estado Blakiano fizeram fracassar todas as “boas intenções”? O problema até aqui não é exatamente acreditar que a forma partido pode ainda dar frutos, quando o que causou até agora fora só a manutenção e modernização das relações intercapitalistas? No jogo político todo aquele que faz governo é uma facção e como tal tem que cair – essa fala não é minha mas da mente assombrosa de Hegel na Fenomenologia.

    Para finalizar minha impertinência, no pórtico de Auschwitz havia uma defesa do trabalho semelhante a que a entrevistada faz. Não cara senhora: o trabalho não dignifica os homens! E no modo específico da produção capitalista, independente de quem tem o poder nas mãos, ele é só violência contra a humanidade. Assim como foi na URSS desde quase o princípio. Mas, essa postura não surpreende tendo em vista que para seu mestre só faltava uma revolução politica.

    Abraços respeitosos!

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