O Dialético Ilyenkov

Por Alexei Tsvetkov, via ОТКРЫТАЯ ЛЕВАЯ, traduzido por Oleg e Anna Savitskaia

Quando começou o conflito militar entre a China e o Vietnã, ele estava em prantos ao lado do receptor de radio e recusava-se a falar com quem quer que fosse. Sartre poderia ter escrito um livro e Goddard feito um filme sobre uma pessoa assim, mas eles estavam longe demais. A editora AST (projeto “Anedonia”, editor Ilya Danishevsky) lançou um novo livro do publicitário esquerdista Alexei Tsvetkov, que é uma coletânea de artigos e memórias “Marxismo como estilo”. Abaixo, segue um trecho deste livro.   


Anos 40: Dialética de Artilharia

Filho do famoso escritor soviético que tinha amizade com Nicolai Zabolótzki 1, Evald Ilyenkov terminou a guerra em Berlim como oficial de artilharia e, assim que se viu com uma hora de tempo livre, foi prestar homenagem a Hegel em seu túmulo. No front, foi condecorado com duas ordens e medalhas, mas, para visitas, mostrava antes uma pasta marcada “Somente para o Führer”, que guardava como um souvenir.

Entre um combate e outro, o artilheiro lia “A Fenomenologia do Espírito” em alemão. Para ele, a grande guerra era um conflito militar entre o hegelianismo de esquerda e o de direita e, diante da lápide, agradeceu ao filósofo o fato de o hegelianismo de esquerda ter se provado mais confiável e hasteado a sua bandeira sobre a capital alemã, e não ao contrário. Um gênio sempre é fruto de uma equipe e resultado de uma política concreta. Os alemães foram os primeiros a introduzir o culto à educação, fundando a Universidade de Humboldt em 1810 e procurando, com essa “iluminação desde cima”, evitar o análogo alemão da recente revolução francesa. O patriota prussiano Hegel aparentemente confirmou o êxito dessa estratégia, mas a maioria de seus discípulos, tanto diretos quanto indiretos, mostrou-se extremamente rebelde.

Ilyenkov permaneceu germanófilo pelo resto de sua vida: traduzia Kant e Lukács, datilografava seus próprios livros numa máquina de escrever alemã (um troféu de guerra), desenhava suas próprias decorações para a opera “O Ouro do Reno” e conhecia pessoalmente todos os intérpretes de Wagner dignos de nota em Moscou, cujas partituras lia antes de se recolher para dormir, a fim de colocar a sua consciência em ordem.

Anos 50: Incêndio Termonuclear na Universidade

Após a morte de Stalin, leciona na Universidade Estatal de Moscou e escreve a sua própria “Cosmologia”. Trajando seu sobretudo militar, o qual teimou em não trocar pelo civil por muito tempo, ele formou uma família dos melhores intelectuais-shestidesyatniki 2  soviéticos assim como muitos dissidentes e emigrantes futuros.

O que ensinou a eles? As contradições internas são o motor de qualquer desenvolvimento. Os limites passam dentro das coisas e dos fenômenos e o confronto de qualquer fenômeno consigo mesmo é a lei principal do ser, a condição da existência. Assim, por exemplo, o espírito humano desabrocha de verdade somente ao sobreviver à experiência atordoadora de encontro com sua própria causa material.

Nada é a forma mais geral de Algo. O espaço e o tempo são apenas os modos de transição da qualidade para a quantidade.

Compreender correta e profundamente a mais ínfima parte do mundo significa compreender toda a nossa realidade por inteiro.

Mas a idéia favorita de Ilyenkov é a de alienação do sentido como a condição de qualquer manifestação. Tudo se torna “si mesmo” somente ao sair dos seus limites estabelecidos, como um ator no teatro que se torna si mesmo somente ao representar o outro. O homem se torna homem nos resultados de sua atividade. A consciência alienada jaz no fundamento da representação política.

Na sua forma mais geral, tal lógica leva o filósofo a uma idéia alarmante que ele não expõe a estudantes, mas articula em “Cosmologia”: o sentido supremo da vida racional no universo se realiza somente após a autodestruição dessa mesma vida e desse mesmo universo. O sentido da existência material revela-se no incêndio termonuclear. 100% ateu, Ilyenkov escreve o apocalipse marxista, o seu próprio programa do fim do mundo.

O resfriamento, a desaceleração, a extinção, a entropia, a perda de força – eis a lei principal do universo. A razão surge no universo como um processo inverso à entropia, como um desafio ao destino, capaz de fazer com que a realidade regresse ao estado primordial da explosão plasmática e “resetar” toda a energia do universo sem deixar nem sequer um átomo no mesmo lugar. Dar ao mundo mais uma “juventude ígnea”. O homem é uma ferramenta única de autocompreensão, autodestruição e autorrenascimento do universo. O domínio da energia atômica é apenas a primeira alusão à nossa missão principal – o grande sacrifício por causa do qual estamos aqui.

Poucos expressaram, com tanta precisão impávida, o páthos revolucionário e fálico do modernismo que borra as fronteiras entre o morto e o vivo no ato de destruição criadora. A cosmologia de Ilyenkov nos devolve o páthos dos hinos védicos – Shiva, que dança com o fogo em suas numerosas mãos, cria e queima os mundos inúmeras vezes. Mas o homem de um futuro sem classes, livre das ilusões salvadoras de almas e do medo da morte, ocupa o lugar de Shiva. O homem como a figura paradoxal de um jogo de construção que desfaz toda a peça construída para devolver a energia ao mundo.

Os estudantes da época do “degelo” 3 apaixonados por Roerich 4 e ioga passavam de mão em mão a cópia datilografada de “Cosmologia”. Foi exatamente a lógica de Ilyenkov que permitiu ao matemático e dissidente Shafarevich “denunciar” o comunismo como um culto secreto do não-ser e da negação dos fundamentos da vida.

O incêndio termonuclear da última revolução não pôde agradar a censura soviética.

Na Itália, Feltrinelli, famoso na Rússia por ser o primeiro editor do “Doutor Jivago”, encarregou-se de publicar o seu livro. No entanto, na Europa, Feltrinelli é lembrado como “milionário vermelho” que odiava o capitalismo e sonhava com a revolução mundial. Em seu iate pessoal, trazia armas do Magrebe à Europa para criar “uma rede de células guerrilheiras urbanas”, financiava as “Brigadas Vermelhas” e morreu destroçado pela sua própria bomba. A aflição hamletiana com o ser foi o que cativou o milionário vermelho nos textos de Ilyenkov.

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Anos 60: Comunismo em 20 Anos

Agora lhe permitem viajar à Europa. Mas, até por ali, continua fumando fortes cigarros cubanos porque apóia o socialismo tropical e não as corporações de tabaco ocidentais. No mundo rebelde e dançante dos anos 60, o marxismo atravessa o segundo renascimento. O ano de 1968 promete mudanças irreversíveis quer na fábrica, quer na universidade, quer na família. Marcuse, Fromm, Adorno, Habermas… Ilyenkov é praticamente o único do lado soviético que pode manter a discussão com eles no mesmo nível.

É tão fácil se encantar com seu radicalismo boêmio. Surrealistas e estrelas de rock são seus amigos. Estudantes rebelados os citam nas manifestações. Eles fazem malabarismos com os termos feministas, estruturalistas e psicanalíticos, sentados em cafés elegantes e discursando sobre o fetichismo da mercadoria, que organiza o nosso mundo interno à maneira de um supermercado com sua hierarquia de mercadorias, ou sobre a indústria cultural que se apossa de quaisquer formas de protesto, mas não as próprias funções do protesto. Para eles, a União Soviética é um “país de trabalhadores, deformado por burocratas” ou até “o capitalismo estatal”, que nunca virou socialismo e é obrigado a tomar os desejos por realidade, habituando seus cidadãos às mentiras constantes. Em todo caso, a URSS ocupou firmemente seu lugar no “microssistema” de mercado, cedendo o papel revolucionário à China maoísta.

Mas Ilyenkov não se encanta com eles, nem às ocultas, e promove um debate sério, procurando lugares duvidosos em seus discursos bonitos. Um dos equívocos fatais da nova geração de esquerdistas ocidentais lhe parece estar em contrapor dois Marx (o jovem humanista romântico e o economista rigoroso tardio).

O Marx tardio investigou a fonte principal de alienação – a contradição entre o caráter coletivo do trabalho e a apropriação privada dos frutos deste trabalho. O homem vai ao trabalho que odeia a fim de adquirir coisas que não precisa e gerar lucro para as pessoas que não conhece. A mão invisível do mercado está em sua garganta como a violência anônima do capital. É exatamente essa sensação, a de que a pessoa vive a vida que não é a sua, que engendra, nas formas transmudadas da cultura de massa, o culto aos zumbis dos quais foi drenada a vida, aos mortos condicionalmente vivos, assim como aos vampiros e alienígenas sinistros que nos usam para seus propósitos incompreensíveis. O que deixa Ilyenkov desconcertado é o fato de que os “novos esquerdistas” falam cada vez menos sobre a solução político-econômica do problema da alienação, sobre a expansão global do mercado de valores abstratos, e contrapõem cada vez mais “o afastamento” de arte inversamente dirigido ao automatismo da percepção e do comportamento na nova arte à alienação. Nas formas lúdicas da nova arte e da contracultura, os boêmios esquerdistas encontravam tudo aquilo que não tinha permissão para ter lugar na realidade, que não podia ser realizado politicamente, todas as oportunidades adiadas e todos os sonhos baldados. Assim, o evento da Revolução é substituído pelo lugar da Galeria.

Não obstante, ele foi expurgado da Universidade de Moscou por “deturpar o marxismo”. Mas isso não o impediu de escrever artigos para grossas enciclopédias soviéticas e dedicar-se à “ciência do pensamento”. Nem impediu que os discípulos mais fieis da escola de Ilyenkov contribuíssem para o novo programa do partido.

Voltando à parte que tratava do futuro. O crescimento do consumo + a formação do novo homem + a automatização do trabalho tornariam possível alcançar o comunismo. Acrescentava-se verbalmente que era possível fazê-lo em 20 anos. A esfera da acessibilidade universal se expandiria a tal ponto que a esfera “mercantil” desapareceria, cedendo lugar à distribuição cientificamente organizada de todas as coisas e o mundo inteiro seria estruturado como uma grande biblioteca. A ficção cientifica soviética, finalmente, se tornaria a realidade. Aconteceria uma revolução antropológica, um deslocamento de todas as relações da competição para a simbiose. O talento se tornaria a norma e a mediocridade, a patologia. A longevidade, conforme os cálculos de Ilyenkov, subiria para 130 anos. No fim do século XX, a humanidade teria apenas dois projetos concorrentes de modernização – o soviético e o americano. Exagerando um pouco, todas as pessoas do planeta deveriam fazer uma escolha e dividirem-se entre si em povo soviético e povo americano antes da batalha final.

Ele é lido atentamente pelos irmãos Strugatsky 5 do período “É difícil ser um Deus” 6. Embora a cosmologia de Ilyenkov transpareça mais tarde em sua obra “Um bilhão de anos antes do fim do mundo”, em que os cientistas compreendem que a sua ciência prepara o inevitável fim do mundo, o mundo velho resiste magicamente e não há uma saída correta disso. Os pedagogos inovadores, que se denominam de “comunardos” 7, discutem com Ilyenkov como reformar o currículo escolar para formar pessoas novas em 20 anos. Aliás, os “clubes comunardos” seriam abolidos, os novos livros de Strugatsky deixariam de ser publicados e as pessoas como Ilyenkov não seriam permitidas viajarem à Europa.

Anos 70: Ver com os Olhos dos Outros

Após a época de “degelo”, durantes os asfixiantes anos Brezhnev, a dedicação às práticas privadas torna-se o estado de espírito geral dos sonhadores mais amadurecidos e encanecidos: pode aperfeiçoar-se na profissão, colecionar algo, estudar uma língua e ensinar os filhos a serem pessoas dignas e educadas, e o comunismo… bem, depois veremos…

Ilyenkov encara este tema de “pequenas coisas” a seu modo. Um ex-colega de faculdade lhe propõe verificar na prática a sua própria teoria da consciência em uma escola para crianças cegas e surdas na cidade de Zagorsk, a 80 km de Moscou.

De onde surge a personalidade? Com que ela se constrói? Quando perguntavam capciosamente a Ilyenkov quantos por cento o ser humano é social e quantos por cento ele é biológico, o filósofo soviético respondia: “Ele é social 101%”. Ou seja, o ser humano nasce alguns anos mais depois de seu aparecimento físico e, normalmente, morre um pouco antes de sua morte física.

A consciência do ser humano pode ser “soldada” assim como um receptor de radio, tendo diante de si o seu esquema e compreendendo o seu princípio da ação. Ilyenkov gostava de montar seus próprios modelos de gravadores e aparelhos de TV, passando horas a fio com um ferro de solda na mão, e confidenciava que as idéias mais precisas e originais lhe vinham à cabeça justamente a essas horas. E quando as peças de ferro lhe enfastiavam, passava a fazer encadernação. Uma pessoa danificada pode ser reencadernada como um livro. A identidade é a reprodução de si mesmo com a ajuda dos outros.

O que distingue principalmente o homem do animal é a capacidade de sua linguagem, mas a linguagem é possível somente onde e quando o ser humano apreende a olhar para si através dos olhos de outras pessoas e, no final das contas, através dos olhos de toda a humanidade.

Na experiência de Zagorsk, isso foi implementado literalmente – ensinar as crianças a “ver” através dos olhos de outros e, nos casos mais complexos, a perceber todas as informações externas através das pessoas circundantes.

Ele pega as mãos das crianças centenas de vezes antes que elas próprias possam fazer um gesto elementar de forma consciente. Ensina a pensar com os dedos para dominar a leitura dos pontos em relevo e, em seguida, desenvolver paulatinamente a linguagem oral. Passa dia após dia com um menino cego para desenvolver seu ouvido musical.

Eles se lembrarão dele como um mágico que veio a eles através do silêncio e da escuridão para ensiná-los a transformar a ação no gesto, o gesto no símbolo, o símbolo na palavra. O mágico que lhes abriu a janela para o conhecimento no seu universo firmemente cerrado.

Graças aos seus “esquemas sensório-motores”, quatro de seus educandos aprenderam a falar, escreveram poesias e até defenderam seus trabalhos de pesquisa em psicologia e matemática. Os resultados semelhantes jamais foram obtidos em parte alguma do mundo.

A cozinha do apartamento de Ilyenkov na travessa de Kamergérskiy tornou-se um dos clubes de intelligentsia mais interessantes durante os anos de estagnação. Com tudo a que tem direito: bardos, atores do teatro de Taganka, ciberneticistas, metodologistas, escritores de ficção cientifica, inventores provincianos e visitantes estrangeiros dos movimentos guerrilheiros do terceiro mundo. Mas naquela cozinha, o próprio Ilyenkov ouvia mais do que falava e trocava piscadelas com um louva-a-deus esmeraldino que habitava ali mesmo, nas flores. O filósofo considerava o louva-a-deus como um dos animais mais graciosos que se pode ter em casa.

Quando todos cansavam de conversar, ouviam Aleksándr Galich 8 ou “Jesus Christ Superstar” em gravadores caseiros de Ilyenkov.

O dono da cozinha permaneceu, contudo, avesso à “originalidade nociva” da contracultura ocidental, explicando apaixonada e esmeradamente que os hippies americanos eram a entropia social, o resfriamento, a aquiescência com a saída da Grande História por causa da ilusão pessoal. O sentido da originalidade não consiste em fazer sobressair a sua “distinção dos outros”, mas em expressar o Universal melhor do que os outros. Os anos 60 nos Estados Unidos foram uma época de baby boomers e de resultados do New Deal “rosa” de Roosevelt, isto é, a socialização do mercado que se tornou fonte de inspiração para os países escandinavos e o Canadá. Mas este programa não foi levado adiante na época da “guerra fria”, e a concepção hippie do mundo, apesar de todo o seu colorido gritante e o misticismo mosaico, transmudou-se em uma expressão viva de renúncia a todas as grandes esperanças reformadoras. Em contrapartida, na Pop Arte e no conceitualismo, Ilyenkov viu o desprezo alegre do homem burguês por si mesmo.

Nos anos 70, Ilyenkov se dedica à explicação final do problema do “ideal”. O ideal como a possibilidade objetiva, oculta dentro de todas as coisas, que pode ser realizada somente com o auxílio da atividade racional do ser humano e a reflexão que a acompanha. O exemplo mais evidente do ideal é o valor da mercadoria. O ideal como um sistema de noções e o homem como um meio de realização das noções. O pensamento como o lado ideal do nosso trabalho.

Faca de Encadernação

Diferentemente da maioria de seus interlocutores (Zinóvyev, Tschedrovitsky, Mamardashvily, Pyatigorsky), ele nunca tentava ser um dândi, antes, preservava certo lunatismo externo, a indiferença à sua imagem. E quanto ao seu cabelo um tanto comprido, explicava-o pelo fato de que raramente pensava no cabeleireiro.

O dramatismo e o contraste wagnerianos, que ele valorizava tanto no ser, assomaram, com o passar dos anos, ao seu próprio rosto. Agora ele tornou-se quase um aposentado. Mas Ilyenkov não esperava a aposentadoria, mas sim o comunismo. E fez tudo, quanto podia imaginar-se, para pôr em prática o programa do partido.

O novo homem não surgiu. A alienação e a reificação não diminuíram, mas aumentaram. As relações dinheiro-mercadoria não se evaporaram e a propriedade estatal soviética não se tornou verdadeiramente pública. Os valores não aboliram os preços, mas, muito pelo contrário, cederam a eles. As explicações oficiais de que, no socialismo, os preços dos bens eram “justos” enquanto no capitalismo não o eram, lhe afiguravam como uma crassa mediocridade oriental e não o marxismo. O passo seguinte à revolução em direção à mudança da sociedade nunca foi dado. As duas ondas da criatividade mundial – a dos anos 20 e a dos anos 60 – ficaram no passado e foram substituídas pelo novo declínio mental.

O filósofo não se sentia mais capaz de produzir sentido e continuar a guerra cósmica contra o resfriamento do universo e a dispersão da luz primária. Entrava no estado de negra melancolia alcoólica e, em vez de responder a qualquer pergunta filosófica, recitava, cada vez mais freqüentemente, sua favorita cantiga infantil de dez negrinhos.

Seus estudantes da universidade, já amadurecidos, compravam calças jeans no mercado negro e jaquetas de camurça iguais à que usava Serge Gainsbourg, se interessavam pelo misticismo oriental e pela possibilidade de emigrar e, é claro, riam de seu leninismo retrógrado e amor enternecedor à “Sófia Vlásiyevna” 9. Duas condições básicas são necessárias para qualquer sucesso social – a estrutura e o público. Seu professor não os encontrava à sua volta na qualidade necessária.

Passaram-se 20 anos à espera do comunismo e, pelo visto, Ilyenkov era o último a lembrar-se disso, o que lhe deixava muito consternado, pois via isso como a sua derrota pessoal. No entanto, os antidepressivos soviéticos que lhe prescreviam, os escondia discretamente da família debaixo do travesseiro.

O filósofo conhecia bem a anatomia e cortar a artéria de seu pescoço não foi tão difícil. Ele o fez com a faca de encadernação que ele mesmo tinha feito a partir de uma serra. Segundo as leis da dialética, qualquer ferramenta pode transformar-se em arma, assim como o operário pode transformar-se em soldado.

Sufocando-se em seu próprio sangue, ele saiu do apartamento e tombou na escada, realizando, em miniatura, aquilo que via como objetivo final de toda a vida racional. O triunfo da dialética do ser é o momento de retorno à grande explosão – o suicídio plasmático da realidade. O homem racional em suas atividades racionais anseia por reproduzir por inteiro toda a natureza existente.

A mim me bastaria apenas a sua biografia para explicar a quem quer que seja o que era a época soviética e o que era o projeto modernista de refazer o mundo e o homem.

Nessa Torre de Tatlin, se entrelaçam à bandeira vermelha sob o Reichstag – “a visão” de crianças cegas – o clarão insuportável da explosão nuclear, inundando a abóbada celeste – retratos de Mao nas paredes da Sorbonne ocupada pelos estudantes – o reset termonuclear do mundo através do sacrifício cósmico final.

De acordo com o paradoxo favorito de Ilyenkov, o sentido completo do “soviético” pode ser revelado a nós apenas agora depois que o soviético acabou e esfriou.

Nós não lembramos e nem usamos de maneira alguma aquilo que existia aqui não faz tanto tempo assim. Portanto, merecemos tudo que tinha acontecido e vai acontecer por aqui.

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NOTAS

1 Nikolai Zabolótzki (1903 – 1958) – poeta russo-soviêtico considerado o mais expressionista dos poetas russos e importante tradutor de poesia.

2 Shestidesyatniki – grupo de intelectuais mais importantes e influentes soviéticos da década de 60.

3 Época de “degelo” – um período  na história da URSS (1953-1964), conhecido como “degelo de Kruschov”, que começou com a morte e condenação de culto à personalidade de Stalin, e foi marcado pela desativação do sistema dos campos de trabalho forcado GULAG, um aumento da liberdade artística e de expressão.

4 Nicolai Roerich (1874 – 1947) – pintor, escritor, poeta, historiador e professor russo, um profundo conhecedor das tradições da espiritualidade oriental.

5 Os irmãos Arcady (1925 – 1991) e Boris Strugatski (1933-2012) – escritores soviéticos de ficção científica que escreveram em parceria a maioria de seus livros.

6 É Difícil Ser um Deus – um livro dos irmãos Strugatski.

7 Comunardos – uma associação informal que surgiu na União Soviética nos anos 60 e unia os clubes comunardos informais que, de uma forma ou outra, eram seguidores da metodologia de ensino conhecida na literatura pedagógica como metodologia comunarda, metodologia de formação criativa coletiva, metodologia de Ivanov, etc.

8 Aleksándr Galich (1918 -1977)  – poeta, cantor soviético.

9 Sófia Vlásiyevna – um eufemismo de brincadeira da União Soviêtica

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