Em nome da lei quem se vinga?

Por Luís Eduardo Gomes

No episódio “Não Matarás’, do decálogo do genial diretor polonês Krzysztof Kieslowski, o jovem estudante recém-formado, enquanto aguarda sua chamada para o exame oral de admissão para o exercício da advocacia, pergunta a si mesmo: mas em nome de quem a lei se vinga?


A pergunta, ao usar a inquietante expressão “em nome de quem’’, remete ao espinhoso problema da representação.  Os processos decisórios não acontecem num espontaneísmo, necessitando-se, portanto, da mediação institucional. A mediação social dos processos decisórios, por meio de instituições, não ancora em si mesma, mas emana do poder comunitário. Como a sociedade não tem um essência pré-estabelecida, isto é, não é fundada num dado natural imutável, a questão da representação suscita grandes problemas.

Que imagem do social-histórico guardamos? Devemos afastar a imagem ingênua e profundamente arraigada de que o social-histórico se ancora num fundamento natural ou teológico, constituindo uma conta-por-um equilibrada. Quando Marx usa a categoria de lutas de classe já revela que existe uma impossibilidade de a sociedade se representar como totalidade perfeita sem qualquer contradição.  A ficção de uma unidade harmônica surge da necessidade ideológica de afastar as contradições e os excessos irracionais da própria sociedade.

A sociedade como presença plena só existe, portanto, sob a forma de uma hegemonia mítica. A ideia de vontade divina bem como a de contrato social (1) são formas míticas cujo fim é ocultar a absoluta contingência de toda formação social. A política, o Estado e o direito existem porque a sociedade não é uma unidade estável e sacrossanta, mas é marcada por um vazio constitutivo.

O valor da democracia emana de que é o único regime que se autoinstitui explicitamente de maneira permanente (2). Toda vez que a sociedade se esclerosa numa imagem perfeita e orgânica a democracia está ameaçada. Aqui tangenciamos o nó decorrente da expressão “em nome de quem”. Se a sociedade é marcada por um vazio constitutivo como ela então se representa como totalidade? Como a lacuna é preenchida? Que mecanismo é usado para ofertar tal imagem unitária?

Faz-se necessário erigir um significante-mestre que, superando de forma provisória o impasse fundamental do social-histórico, preenche a lacuna: “Então, o que é o Significante-Mestre? Vamos imaginar uma situação confusa de desintegração social em que o poder de coesão da ideologia perde a sua eficácia: numa situação assim, o Mestre é aquele que inventa um significante novo, o famoso ‘ponto de basta’ [point de capiton], que estabiliza novamente a situação e a torna legível;” (3)

Daí que a pergunta inicial pode ser assim respondida: é sempre em nome de outro nome. Um nome que, por ostentar um algo grau de generalidade, pode servir de chave-mestra de um determinado sistema social. Por exemplo, com a ruína da teoria do direito divino, surge a necessidade de um novo significante-Mestre capaz de soldar as fissuras. A própria transição de uma soberania divina para a popular se explica a partir dessa mirada. Tais significantes tem o condão de sair de uma situação particular para ascender à condição de representar o todo. É sempre um ‘significante’ que colmata a lacuna constitutiva do social-histórico, garantindo a ilusória e, portanto, sempre provisória unidade.

Por isso, em torno de tais significantes se articula um luta renhida que ultrapassa o mero nominalismo, revelando um encarniçada materialidade. Se as palavras servem para confundir as coisas, é porque a batalha acerca das palavras, sobremodo dos significantes vazios, é uma batalha sobre as coisas (4). Por isso, o jurista exemplar que é Friedrich Müller, num livro essencial, arranca o significante povo de seu uso prostituído, deixando bem claro que “sem a prática dos direitos do homem e do cidadão, o ‘povo’ permanece uma metáfora ideologicamente abstrata de má qualidade”(5).

A pergunta é provocativa. Primeiro, porque associa lei e vingança. Na tradicional ocidental, a lei é expressão da razão, do comedimento e da temperança. Já Aristóteles dizia que “a lei é a razão desprovida de emoção”, inaugurando uma tradição que persiste ainda hoje. Norberto Bobbio, ao dissecar o positivismo jurídico, assinala que o positivismo ético moderado sustenta que a lei seja a forma mais perfeita de direito (6).

Segundo, porque deixa entrever que, por trás da lei, encontramos obscuras relações de poder e não a manifestação de um poder anônimo, impessoal e alheio aos embates e aos conflitos sociais. Rompe-se com a imagem da sociedade como um todo orgânico e unificado, da lei como expressão da vontade geral, e do corpo social como formado pela universalidade das vontades.

Tal imagem confortável serve justamente para conjurar os sintomas que indicam as fissuras, as falhas que demonstram a impossibilidade de se construir uma sociedade não antagônica. É uma verdadeira operação ideológica. No livro Fahrenheit 451, temos um exemplo típico deste mecanismo. No primeiro encontro casual entre Montag e Clarice, esta pergunta:

“-É verdade que antigamente os bombeiros apagavam os incêndios em lugar de começá-los?

– Não. As casas sempre foram à prova de fogo, pode acreditar no que eu digo.

– Estranho. Uma vez me disseram que, muito tempo atrás, as casas pegavam fogo por acidente e as pessoas precisam dos bombeiros para deter as chamas” (7)

A passagem confirma a tese de que o papel da ideologia é impor as evidências como evidências de modo a impossibilitar a diferenciação do aparecer da sociedade com o ser da sociedade (8). Para Montag, era evidente que os bombeiros sempre queimavam livros. Ao naturalizar uma dada ordem social, obliterou o seu caráter contingente, ignorando que toda sociedade é fruto de uma eleição, de um projeto jogado e não algo enraizado e fundado na ordem natural. Nisso achava natural que a repressão instituída perdurasse.

Marx assinala: “Uma sociedade onde um só órgão se crê detentor único e exclusivo da razão do Estado e da moral concreta do Estado, onde um governo se opõe por princípio ao povo é uma sociedade onde a má consciência inventa leis de vingança” (9)

Aqui já se antecipa o tema da fetichização da esfera pública. O fetichismo político se consolida quando o ator ou órgão político, olvidando a base comunitária de todo poder (potentia), posta-se como instância autorreferente, isto é, como causa de si mesmo (potesta) arrogantemente envergado contra o povo e vergado de forma complacente aos interesses privados.

O poder fetichizado só sobrevive à custa da aniquilação do poder comunitário, investindo sempre na constrição dos espaços de liberdade, na castração do pensamento crítico, na propagação do interesse contra a virtude. Daí que o jovem Marx aponta para leis de vingança, voltadas para repressão de todas as formas de contestação do poder corrompido.

Vislumbra-se uma homologia assustadora entre a assertiva de Marx com a compreensão lacaniana da lei como superego, como instância que emite um comando absurdo e que, por trazer implícita a mensagem obscena de domínio absoluto, provoca adesão às suas injunções. As leis de vingança são experimentadas como traumáticas, desprovidas de sentido, não podendo ser integradas no universo simbólico do sujeito (10).

Marx revela que todo direito fundamental entra numa lógica estranha em que é afirmado e negado ao mesmo tempo. À afirmação aparentemente ilimitada de um direito sucedem limitações que aniquilam o núcleo do próprio direito. Já antecipa a semiologia política ao dizer: “Assim, desde que o nome liberdade seja respeitado e impedida a sua aplicação efetiva – de acordo com a lei, naturalmente- a existência constitucional da liberdade permanece íntegra, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência comum” (11).

No nosso cenário, devemos perguntar: quem, em nome da lei, se vinga?

Á liberdade de reunião sucedem ações truculentas das polícias; o direito de greve foi tão constringido a ponto de perder seu núcleo essencial; o devido processo legal convertido em mero simulacro para perseguir o inimigo, sempre erigido ideologicamente; denúncias, que são hipóteses, apresentadas pela tela em tom infalível ainda que a metodologia científica demonstre que toda hipótese é falseável (12): (lembre-se que convicções, diz Hume, tem conotação psicológica mas de nada servem do ponto de vista da lógica); a liberdade de expressão para os quem detém os meios de comunicação; mandado de busca e apreensão genérico nas favelas em que cidadãos são transformados em vidas desnudas; Unidades de Polícia Pacificadora que fazem da favela um lugar da exceção; reintegração de posse de imóvel público pelo exercício da autoexecutoriedade. E o pior: impeachment sem crime de responsabilidade. Enfim, o movimento pendular, nesse momento, é para negação dos direitos fundamentais.

Muitas tarefas se impõem à dogmática crítica: a) a construção de uma hermenêutica para além das ilusões do universalismo ante rem de Dworkin (13); b) a construção de uma epistemologia da prova; c) a criação de mecanismos de proteção dos direitos sociais; d) o desvelamento dos mecanismos sutis de exceção que, sub-repticiamente, insinuam-se na prática do direito e etc. Tudo isso à luz da premente necessidade de pensar desde baixo, ou seja, desde a América Latina (14).

Colaborou decisivamente para ruína da tessitura constitucional a forma como se deu uma apropriação privada da linguagem (15) sob o influxo de uma mídia que transforma em ouro puro o mais vil dos interesses. Mas o momento é de confissão. Em nome da lei quem se vinga? Os mesmos de sempre que, nutrindo ódio à igualdade, só aceitam um simulacro de democracia e fazem da esfera pública um balcão onde o povo brasileiro é imolado. São as hereditárias oligarquias.

Nesses tempos turvos, os poetas da resistência nos alertam para a decisão de continuar:

“O JUIZ

Quem ousará contestar o que eu tenha decidido?

VITÓRIA

Não podeis decidir tudo. A dor tem, também, os seus direitos.” (16)

*A Cipriano Barata e a Nilo Batista, dois sentinelas da liberdade


  1. A constituição, nesse sentido, está mais para armistício do que para pacto social.
  2. CASTORIADIS, Cornelius. Figuras do pensável: as encruzilhadas do labirinto, volume VI, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 207.
  3. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 56-7.
  4. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 117.
  5. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 52. Müller afirma que o Brasil deve ser um grande laboratório de novas formas de pensar, fazer e ser e que a Europa, lição que deveríamos assimilar, não é exemplo para nada. Além do mais, Müller acerta ao dizer que o Brasil é um país de modernidade periférica e não tardia. A modernidade guarda um mito racista, não tendo, portanto, nada de exemplar. Sua suposta universalidade exclui as mulheres, negros, índios; enfim, é uma falsa universalidade. É por isso que Enrique Dussel criou o conceito de transmodernidade como crítica não europeia da modernidade.
  6. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia de direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 231.BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2009, p 21.
  7. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2009, p 21.
  8. ALTHUSSER, Louis. Posições (1964-1975): Lisboa, Livros horizonte, 1977, p.116.
  9. BENSAID, Daniel. Les dépossédés: Karl Marx, les vouleurs de bois et le droit des pauvres. Paris: La Fabrique, 2007,
  10. ZIZEK, Slavoj. The sublime object of ideology. London: Verso, 2008, p. 36.
  11. MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte: São Paulo: Centauro, 2006, p. 32. Esse livro destrincha o Brasil atual.
  12. Devo essa ideia ao meu amigo processualista Diogo Fernandes.
  13. Ver nosso: https://18.118.106.12/2017/03/06/a-aporia-de-dworkin-e-a-recaida-na-metafisica-da-presença
  14. É incrível como não estudamos autores latino-americanos de estatura universal como Enrique Mari, Enrique Dussel, Franz Hinkelammert e outros.
  15. Nosso (com o amigo Paulo Cesar) http://emporiododireito.com.br/a-licao-politico-hermeneutica-de-espinosa/
  16. CAMUS, Albert. Estado de sítio. São Paulo: Abril Cultural, p. 87.

 

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1 comentário em “Em nome da lei quem se vinga?”

  1. Uma apreciação límpida de um cenário lamacento! De resto, de se lamentar o apoucado contingente atento às nuances dissecadas na boa análise produzida. Meus parabéns ao pensante articulista.

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