Da morte e das lutas que fazemos nossas

Por Daniel Santos da Silva

“Uma esquerda nova, pela qual tanto se reza e se bate boca, apenas seria de fato nova imiscuindo-se a todas essas esferas do diverso que se apresentam e agem como resistência contra a morte cotidiana e penetrando nas aberturas que aos poucos se nos vão sendo reveladas pela força própria da história. Essa esquerda, em uma espécie de dialética sem finalidade, superaria as dicotomias que a definem pela sua presença em um lado específico da arquibancada política.”


…a própria ideia de uma identidade nacional

pura, “etnicamente purificada”, só pode ser

atingida por meio da morte, literal e figurativa,

dos complexos entrelaçamentos da história e

por meio das fronteiras culturalmente contingentes

da nacionalidade moderna.

                                                Homi K. Bhabha

                                                                              I

Sobre a morte, sabemos que evocar o tema em conversas hoje corriqueiras, sobre semântica de golpes, por exemplo, pode deixar qualquer um desarmado. Em tempos de golpes “não sangrentos”, a linguagem da revolta parece travar, muitas vezes: o sangue que escorre cotidianamente em certas ruas das cidades, dos campos e nas florestas parece a muitos não ter envergadura política. Nada de inesperado, levando em conta que as lógicas próprias e fugazes de muitos dos que hoje falam raramente comunicam algo que não seja ancorado na pressa de expor dualidades e culpados. A elaboração escrita e o tempo reflexivo poderiam amenizar o problema, mas, ao fim, os suportes mais eficazes da comunicação não são as palavras escritas, mas certas disposições desejantes de cada um e de coletividades, arranjadas dentro de horizontes afetivos não únicos, mas comuns, ou que são feitos comuns. A materialidade da reflexão não é anterior à materialidade dos afetos, mesmo que lhe possa ser simultânea. Por isso a morte e o desejo relacionam-se tão profunda e insensatamente que poucos se propõem a comunicar-se com o outro partindo dessa relação. Para Feuerbach, “o instinto da comunicação é um instinto original”, com o que concordo plenamente, ainda mais porque o contexto servia para atacar o Idealismo. Mas é difícil esperar proezas, também, dos interiores da filosofia e das Humanidades acadêmicas que, mortos ou gangrenados paradoxalmente em sua dinâmica própria, reescrevem cotidianamente a historieta monótona de que a morte é algo distante ou, em último caso, nem deve ser pensada. Pobre, afetivamente, o estudioso que não pensa na morte.

De qualquer modo, é possível buscar – ainda que superficialmente, de início – inscrever a morte nos interstícios do deixar-se ser habitual e ensaiar perspectivas políticas: aos que clamam contra golpes, pode-se responder preguiçosamente que essa virada institucional (que pouco ou nada modificou institucionalmente no Brasil) não provocou mortes, mas que mortes e desejos moribundos a provocaram, em uma giratória impertinente de diferenciações fictícias, na medida em que a morte e a violência fundaram esta nação e agitam-se vivas até nossas últimas constituições. Aos que querem escapar à morte, a golpes de que for, pode-se perguntar pelo motor primeiro do que nos leva a fingir que apenas algumas mortes devem ser evidenciadas, numa autojustificação histórica e opressiva – e que acaba por fazer alguns descrerem nas possibilidades políticas dos sujeitos coletivos como sujeitos de ação, reduzindo-os a receptores e não causadores de efeitos políticos.

A descrença assim engendrada só pode ser interrompida por rompantes de personalidades (máscaras) que, ao fim, deixarão na imaginação das pessoas um lugar vago – com um delirante desejo de retorno – ou um campo semeado de ódio quase teológico, de tão irracional que soa e perigoso que se torna (do mais, as lutas e conflitos fundamentais da sociedade, como os conflitos entre classes, são mais profundos do que todas essas discussões permitiriam entrever). Quando se espera que a vida política venha de fora, de um solavanco exterior que reanime as massas, geralmente se experimenta a frustração e, por meios não tão díspares, cria-se uma vazão acumulada de raiva – a qual é igualmente afunilada, como numa descarga sanitária, caindo sobre alguma persona que o tenha feito por merecer, que seja culpada de traição;[i] os sentimentos políticos retornam, no caso, como expectativas surreais de moralidade. Quanto às expectativas que não são surreais, como a de segurança e de liberdade, muitas delas são encarceradas em uma estreita cela de ignorância – por sua vez travestida de confiança nos representantes -, sem vistas que deem para nada além daquilo que é projetado como benéfico por quem produz e se aproveita das instabilidades civis e econômicas.

Quando tratamos de projetos e de nação, uma ultrapersonalidade dinâmica e determinada, que é campo de produção imaginária de ser e de relações concretas – e à medida que nos apegamos à coisa como coisa comum, ela é motor de vida e de morte, de privilégio e de submissão -, não é difícil encontrar, em mil mediações, a regra de quem deva representar o vazio de ação dos inúmeros representados (que, enquanto representados, são continuamente incapazes de ação política); a regra, postulada e posta sobre todos como salvação comum (como constituinte de qualquer saúde política), não poderia deixar de ser, entretanto, questionada quando gera tanta controvérsia e destitui tantos símbolos sociais de sua primazia, conquistada a duras penas de negociações, inclinações de cabeça e apertos de mão entre supostos rivais políticos.

Acontecimentos como o mais recente golpe no Brasil – que burocrática e midiaticamente depôs uma persona e o imaginário que a acompanhava por outra mais próxima do “senso comum” capitalista -, por mais necessariamente que se sigam do que foi anteriormente dado como regra “democrática” no Brasil (histórica e enfezadamente antidemocrática), nestes momentos fulguram a exceção. De certa forma, tal perspectiva é verossímil, pois a deposição de um imaginário por outro, sem que nenhuma das partes desconstrua os fundamentos do lado oposto no conflito, é realmente exceção – uma que, enfim, acaba por postular a morte como regra (e cabe no momento a ideia de Raul, já que os desdobramentos desses conflitos se dão nas ditas instituições políticas e nelas devem, supostamente, ser avaliadas suas legitimidades: “nas alturas fazem escrituras, e não nos perguntam se é pouco ou demais”). Se as nações, histórica e fundamentalmente, apoiam-se em guerras para legitimar um estado de coisas, não deve surpreender que alguns meios da guerra sejam utilizados para reafirmar sentidos parciais de nação – porque todos os sentidos, já parciais, parcializam-se mais quando é um “projeto” de nação que está envolvido.

Inevitavelmente, os distúrbios institucionais recentes provocaram um sem número de discussões sobre a função da esquerda. Já vimos como a esquerda, se tomada unidimensionalmente e se dotada de poder, pode conviver ou mesmo provocar a morte como condição de vida e de privilégios de alguns. Casos particulares demonstram que muitos podem ser salvos da miséria, e isso transparece na pressa angustiada e raivosa do golpe além de ser evidenciado nos argumentos contragolpe, os quais em todo caso têm números a seu favor; dos últimos, alguns passearam pelo conceito de miséria sem aprofundá-lo, na maioria das vezes reduzindo-a a uma condição econômica (sem retirar das determinações econômicas seu peso, reduzir conceitualmente a miséria à impossibilidade de adentrar monetariamente na vida social é problemático, tão sério quanto reduzir a economia à jogatina financeira). Talvez não pareça um fato numericamente grandioso, mas essa postura unilateral empurrou para a miséria absoluta e para a morte tantos outros e outras que insistem em não ceder à vida unidimensional da política capitalista, mesmo à esquerda – mortes e violência contra as mulheres aumentaram depois da lei Maria da Penha; suicídios de partes minorizadas da população crescem geometricamente;[ii] o genocídio continua como forma de atuação não excepcional do Estado; talvez nunca as populações indígenas tenham sido tão vilipendiadas. Não vejo aqui limites intrínsecos à ação política institucional, mas às prioridades que acompanham as “políticas” estatais e nacionais.[iii]

E não é uma questão de culpados, certamente. Mas de guerra e de quais posicionamentos são urgentemente exigidos por ela. Os sentimentos são incontáveis ainda que se tente contê-los. Para alguns, as portas da percepção, já escancaradas pela dura repressão cotidiana (com um braço, sim, militar, deslocado do exército, em muitos casos, para as polícias militares das federações), como que são arrombadas diante do cinismo que mata uns para outros viverem mais comodamente – é difícil, sei, desapegar-se de números e seguir em frente, embora várias mudanças propiciadas pelos governos de esquerda, no Brasil, não se resumam a números (e não é difícil encontrar quem as enumere bem); contudo, sendo vividas como concessões de cima (por existir um “em cima”, não por zerar a incansável luta das muitas e dos muitos que desejam minimizar a distância entre o “em cima” e o “embaixo”),[iv] é-nos claro hoje como um dia de sol em Fortaleza que se tratam de conquistas relativas, pois facilmente perdidas se não mantidas pela força de quem de fato as deseja; parte considerável desse grupo empurrado para fora da miséria (e, em geral, de um ponto a outro da escala social), ao que parece, continua ideologicamente afastada da política institucional e sem voz, chegando a ter repulsa pela imagem da política (e parte, ainda, voltou-se contra esse mesmo governo, e as razões para isso devem, sim, ser discutidas).[v]

                                                                    II

Uma nação é, essencialmente, fundada em regras comuns de ação e de omissão, e muitas dessas regras, explícitas ou latentes, versam sobre como o diverso deve ser absorvido, caso o deva ou o possa. Desse ponto de vista, a constituição da nação exibe e reverbera fatores de maior extensão do que a inscrição da lei como determinação coercitiva dentre os cidadãos, pois é processada por crenças, medos e desejos que mobilizam coletividades para além do que exige ou pode exigir, por exemplo, o Estado. Por outro lado, essas mesmas potências de ação coletiva, que não podem ser formalizadas pelas leis ou pelas formas do estado (sem perderem muito do que as faz potência), são, constante e profundamente, manuseadas a partir de interesses que não são propriamente referentes às coisas públicas ou comuns. Se pensarmos bem, são essas mesmas potências que estão em jogo quando aspiramos a qualquer mudança profunda de nossas vidas e mesmo quando temos de resistir à tentação do desespero político.

O tempo, as origens e as particularidades conglomeradas em todos os projetos de nação brasileira, até hoje, são elementos que foram sendo forjados em e para uma unidade que jamais existiu – não é fácil ainda hoje, por incrível que possa parecer, persuadir de como a democracia racial é um desses elementos forjados para imitar uma determinação de caráter essencial à nação brasileira, enquanto também inverte, ideologicamente, as causas da grande diversidade de manifestações sociais, politicas e culturais em solo nacional. Como se a diversidade fosse constitutiva e institucionalmente incentivada, e não, ainda hoje, sinônimo de resistência.

Uma das consequências da mobilização interessada e totalizante dos desejos coletivos é, em todos os lugares em que a nacionalidade seja um valor em si, a permanência da morte como política de Estado. Morte dos que aqui já estavam e dos que por aqui aportam. Também dos que, não sendo claramente nem um nem outro, são violentados por aquilo que neles seria subversivo ou incapaz de autonomia – todos que escapam, por exemplo, das regras de patriarcado e de suas pobres modulações sexuais, e das mulheres, ainda hegemonicamente vistas como autônomas apenas no que diz respeito à organização de uma pequena economia do lar, ou pouco mais. Quando passamos a questões demográficas ou geopolíticas, as falácias dos projetos de nação continuam a aparecer.

Pensando nas diásporas do passado e do presente que trouxeram e trazem muitos para este território, geralmente a absorção dos indivíduos ingressantes é explicitada em termos filtradamente econômicos, de uma certa economia vigente no tempo, que pode ser a escravista ou a consumista (o que não é exclusividade do Brasil) – isso quando é mediada ou permitida pelo Estado ou por donos do capital. Independente disso, as singularidades diversas que passam a constituir um povo nunca são corpos estranhos de verdade. Quando vejo, hoje, propostas de absorção prioritariamente econômica de migrantes e refugiados, por exemplo, puxados pelos cabelos para fora do que consideravam lar, enxergo simultaneamente operar um engano similar àquele que pretende utilizar técnicas capitalistas de assimilação do múltiplo que resiste à homogeneidade imposta pelo consumo.[vi] As técnicas de assimilação capitalista, praticadas pelos Estados, levam a quê, senão ao recrudescimento de competitividades fundadas sempre na disparidade de condições materiais? Disparidades renovadas por injustiças constantemente atualizadas no tempo e no espaço. Isso não leva, a longo prazo, à circulação e expansão desses problemas que vemos existir desde sempre? Em um mundo com 60 milhões de refugiados, não nos é exigido uma reflexão 60 milhões de vezes mais profunda do que a locação espacial e econômica deles exige? Uma potência nômade[vii] como esta pode ser adequadamente absorvida pelo poder que se exerce sobre as vidas comuns de todos nós?

Demonstrar a impossibilidade de tal absorção e a violência implicada por sua tentativa foi uma das chaves para se compreender o internacionalismo da esquerda nos dois séculos passados. O que se pode perguntar, é em que medida essas potências constitutivas do múltiplo lutam ou podem lutar na linha de frente das instituições estatais e dos projetos de desenvolvimento levemente diferentes de um governo a outro? Claro, é equivocado pensar que o fascismo político está igualmente distribuído por todos os lados no jogo do poder; mas quando esses lados compartilham da mesma semântica, não se almeja a alguma espécie de pureza quando a estaca que se bate é o da utilidade da nação brasileira, mesmo que no enunciado a diversidade seja elogiada e incentivada? Nas esquerdas que disputam projetos de poder, não se acaba por assumir um campo semântico próprio que mascara a verdadeira potência constitutiva do que podemos ter de mais comum entre nós? Na ânsia de definir as missões da esquerda, os aspectos éticos facilmente são apartados dos imediatismos políticos, em outras palavras, na urgência de participar da máquina estatal, muitas elucubrações da esquerda, hoje, desprezam que é pelos desejos que somos guiados e por eles os vínculos que criamos podem ter estabilidade e serem produções apropriáveis coletivamente (que assim sendo, serão necessariamente dinâmicas). Nesse sentido, relembrar por que o socialismo apenas podia ser internacionalista pode ser instrutivo, ainda mais quando sabemos que criaturas tão chegadas e tão distantes como Marx e Bakunin conseguiam analisar as relações de poder de sua época cotejando ao mesmo tempo as diversas possibilidades que as diferentes histórias de cada povo produziam a favor da revolução.

Nenhuma força no mundo pode hoje barrar os rearranjos de configuração ética que o nomadismo impõe, o que, desejável ou não, é inevitável. Em que lado se deve estar diante disso que se impõe? Não há lados, senão aqueles imaginados. O que há de ser feito ainda está em processo de constituição, de organização, de formação de resistências – este que aqui ressalto não é senão um de vários aspectos a que devemos estar atentos, mas não é dos menos relevantes, sem dúvida. Assim como os indígenas provam que qualquer direito concreto é exercido como resistência, quando se é visto como o outro e alvo legítimo de violência, a migração em massa aponta para a constituição de novos conceitos irmanados à pluralidade e de novos movimentos sociais – mais firmes, talvez, do que os que atualmente intentam navegar pelas vagas das dicotomias políticas, que mascaram os verdadeiros conflitos que caracteriam a vida humana, ética e politicamente. Uma esquerda nova, pela qual tanto se reza e se bate boca, apenas seria de fato nova imiscuindo-se a todas essas esferas do diverso que se apresentam e agem como resistência contra a morte cotidiana e penetrando nas aberturas que aos poucos se nos vão sendo reveladas pela força própria da história. Essa esquerda, em uma espécie de dialética sem finalidade, superaria as dicotomias que a definem pela sua presença em um lado específico da arquibancada política.

                                                                      III

Pensando levemente em Hegel e na sua dialética idealista, e sem concordar com ela, sei que com efeito o trabalho de constituição de uma ética que exerça a política e de uma política que não insista em se isolar como campo autônomo exige a paciência do conceito. Não por que deva algum conceito afirmar-se por si e determinar as diferenças e as igualdades das coisas do mundo pelo que uma ideia impõe, mas porque, se pensamos também através de conceitos, eles devem ser forjados com a paciência de quem admite a indigência perpétua do saber, pois todo saber só é possível por certas disposições das coisas mesmas.

Isso significa, em primeiro lugar, que é sempre arriscado crer-se apartado dos imaginários que guiam grande parte das atuais ansiedades políticas (ver a si ou ao outro como uma planta exótica): a maior motivação de procurar assinalá-los é ver-me impregnado deles e, como muitos, sentir-me um tanto sem companhia mesmo quando estão à venda tantas fantasias já prontas e generalizadas em todas as partes. Em segundo lugar, e mais importante, é que podemos e devemos implodir os fundamentos, resistentes em quase todas as esferas, da dicotomia entre saber e ignorância – quando ameaçam, via austeridade, arrancar direitos conquistados, e baseiam isso em verdades cujo entendimento é restrito a poucos, a legitimação do poder sobre a massa da comunidade nem precisa mais passar-se por racional ou razoável. Força bruta e ignorância coletiva acumuladas matam indígenas no Brasil como em um estado de guerra. E a tantas outras pessoas. Não à toa a educação não pode tardar a ser “reformada”, de cima e impositivamente, a fim de desimpedir que a exceção seja percebida como regra, e que a opressão e os pactos com os opressores sejam tidos como necessários à estabilidade e à segurança nacionais. Os corpos individuais e coletivos, para conhecerem-se a si próprios, têm de ser capazes de exercer sua potência de múltiplas formas, resistindo ao máximo pela autodeterminação de seus afetos, os quais não são por si compatíveis com nenhuma das linearidades históricas que pretendem justificar uma nação. Claro, termos como nação e seus derivados e aparentados, como raça, povo, unidade, são conscientemente mobilizados por correntes de símbolos e de imagens que podem afetar sem por isso diminuir a potência de nenhuma luta em particular, podem até ser subvertidos – porém pelo que se disputa (o que disputamos em comum), senão pela possibilidade de que até os símbolos e as imagens que nos movem sejam frutos de potências singulares não submetidas a nenhuma violência discursiva ou física? Senão pela dissolução do poder (sobre) e proliferação das potências? Senão a retomada dos afetos próprios como arma de resistência?[viii]

Se alguém entender por isso que a luta há de estar sempre na esfera dos afetos (e dos mais habituais afetos) e que o campo político torna-se a explicitação comunicativa dos conflitos e dos encontros que nutrem a união das coletividades, concordarei imediatamente. Traduzir em pautas políticas concretas essa dimensão pressupõe desconstruir diversas projeções de separação, ainda que, para isso, distinções devam ser feitas – praticar a potência não significa, por exemplo, exercer o poder (sobre); uma mulher negra exigir fazer sua própria narrativa não significa querer realizar o conceito de raça. Dentre tantas coisas, toda resistência ao poder deve ser traduzida em certa comunicação, sem o que o discurso permanece vazio; para que seja comunicação, deve-se primar pelo que há de comum e pelo que pode ser produzido em comum, sem que haja uma ordem pré-disposta e imposta. A crescente miscigenação do mundo não requer quebra de comunidades – pois as pressupõe -, antes possibilita criar novas maneiras de se enxergar a política. Expressa pela luta das mulheres negras, indígenas, ciganas, esposas, filhas; dos negros, dos quilombolas; de todas e todos com imaginação sexual ativada em seus corpos e mentes; dos jovens ocupantes de suas próprias escolas; expressa assim tão ricamente, a resistência ao poder não pode cair em dicotomias, e necessariamente traz a real organização para as bases: os obstáculos a isso se mostram tanto mais ferozes quanto mais a luta é encaminhada por desejos reais e menos por fantasias pré-fabricadas. O tempo do desejo pode ser efêmero, mas também poder ser longo e subterrâneo, mas é sempre descentralizado: por isso é tão cobiçado, com o que se tenta impor sobre ele a força e a violência. Se as ações políticas institucionais não conseguem aprofundar e abrir todas essas temporalidades (intrinsecamente limitadas pelos atuais projetos políticos “oficiais e oficiosos”), a violência e a morte seguirão intocadas em suas raízes.

Outra distinção necessária, pois, é justamente entre a violência fascista e a violência que o desejo comum de liberdade pode engendrar. Quando a pluralidade busca resistir, vemos sem mais as barreiras fascistas tentarem se interpor, como quando surgem ameaças aos secundaristas que lutam por parte dos colaboradores do “Magazine” MBL.[ix] Ou como quando seguranças da CUT e de outras entidades agridem libertários e os entregam à polícia.[x] Como estamos, o múltiplo ainda implica choques violentos. A ilusão de segurança é proporcional à violência que tenta controlar a criatividade, mesmo assim é ela que pauta os mais absurdos projetos de nação contemporâneos (o controle quer ir da inflação a nossos corpos, sem rupturas). É difícil e arriscado categorizar, mas não perspectivar: mais profundo do que os projetos hegemônicos conseguem praticar, a criação de direitos e de potências hoje depende do desejo de criar novos territórios e novas motivações para a união, o que contradiz a ideia ou imagem de que a segurança passa pelo pertencimento a alguma entidade de exclusão – que tem sua identidade na exclusão do outro que não vive sob minhas regras (nacionais, econômicas, religiosas, etc.).[xi]


 

NOTAS:

[i]Recomendo vivamente uma passada por este texto de Eliane Brum: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/14/opinion/1457966204_346156.html?id_externo_rsoc=FB_CM.

[ii] Uma reportagem que pode introduzir à questão: http://www.theglobeandmail.com/news/world/os-esquecidos-por-dentro-da-crise-de-suicidios-indigenas-no-brasil/article34321173/

[iii] A Lei Maria da Penha nasceu da luta judicial contra o Estado Brasileiro, e mesmo essa conquista esbarra em estruturas ancestralmente excludentes no Brasil. Recomendo que se confira: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/a-complexa-luta-das-mulheres-indigenas-contra-o-estupro/

[iv] Algumas das mais salutares movimentações da esquerda no poder federal, no Brasil, foi em relação aos estímulos dados à ciência e à expansão da educação superior, e poucos retaliariam essa afirmação, embora com toda razão se possa reclamar da ausência de políticas mais profundas sobre a educação de base e a qualidade do ensino público (que depende mais das federações e municípios do que da União, mas como se fosse essa a questão). Enfim, por trás de tudo isso, o pensamento crítico pode chegar a questionar o alcance dessas movimentações do ponto de vista do combate efetivo às desigualdades impostas por sociedades historicamente desiguais. As seguintes palavras de Bakunin, no texto A educação integral, ps. 37-38, põem uma questão que, em minha opinião, deveria estar presente à esquerda que de fato crê na educação como base de mudanças sociais significativas; a citação é longa, mas o teor é claríssimo: “Quem pode, por conseguinte, negar que todos os progressos da ciência, sem nenhuma exceção, redundaram até agora no aumento da riqueza das classes privilegiadas e do poder dos Estados, em detrimento do bem estar e da liberdade das massas populares do proletariado? Mas é possível objetar. As massas populares não se aproveitam também destes progressos? Elas não são hoje muito mais civilizadas do que eram nos séculos passados? A isso respondemos com uma observação de Lassale, o célebre socialista alemão. Para julgar os progressos das massas operárias, do ponto de vista de sua emancipação política e social, não se pode comparar seu estado intelectual no século presente com seu estado intelectual nos séculos passados. Temos que considerar se, a partir de cada época determinada, uma vez comprovada a diferença que existia entre elas e as classes privilegiadas, elas evoluíram na mesma medida que estas últimas. Pois se houve igualdade nestes dois respectivos progressos, a distância intelectual que as separa hoje do mundo privilegiado será a mesma; se o proletariado progride mais e mais depressa que os privilegiados, esta distância será necessariamente melhor; mas se pelo contrário o progresso do operário for mais lento e por conseguinte menor que o do homem das classes dominantes no mesmo espaço de tempo, esta distância será maior; o abismo que as separava se tornou mais profundo, o homem privilegiado se fez mais poderoso, o operário mais dependente, mais escravo do que na época que se tomou como ponto de partida. Se nos colocarmos, na mesma hora, em dois pontos diferentes, você com cem passos de vantagem sobre mim, e se você der sessenta passos, e eu somente trinta por minuto, ao cabo de uma hora a distência que nos separa não será mais de cem, mas sim de mil e novecentos passos.”

[v] Em outros momentos eu faria ressalvas em alguns pontos, mas importa aqui a indicação de um discurso que se encaminha no mesmo sentido: http://www.ihu.unisinos.br/562003-em-seu-microcosmo-a-esquerda-fala-para-si-mesma-sem-uma-real-conexao-com-a-sociedade-entrevista-especial-com-salvador-andres-schavelzon .

[vi] Cada lugar terá suas discussões específicas, e a coisa se desenrola no Brasil a partir de suas peculiaridades históricas. Mas há uma mentalidade neoliberal que perpassa a questão, tal como é expressada, por exemplo, aqui: http://www.knowledgeatwharton.com.br/article/a-crise-dos-imigrantes-na-europa-equilibrando-riscos-com-ganhos-de-longo-prazo/.

[vii] O nomadismo, no caso, muitas vezes nada tem de contingente na vida de muitos, pois que constitui um paradigma de vivência no mundo …: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/o-quase-desconhecido-brasil-cigano/;  e também:  http://www.mma.gov.br/desenvolvimento-rural/terras-ind%C3%ADgenas,-povos-e-comunidades-tradicionais/comiss%C3%A3o-nacional-de-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel-de-povos-e-comunidades-tradicionais.

[viii] Por sorte cruzei há pouco com um texto de Peter Pal Pelbart, em que estas palavras estão escritas: “Ideais fortes precisam às vezes de centenas de páginas para serem devidamente desdobradas; Se Foucault nos serve para pensar a resistência nessa chave da reversibilidade eventual das forças em jogo, talvez seja preciso também recorrer a Espinosa, que diferenciava poder e potência, e até os opunha. Por isso, talvez trate-se menos de apenas tomar o poder do que de expandir a potência”.:  http://outraspalavras.net/brasil/peter-pal-pelbart-estamos-em-guerra/.

[ix]Conferir:https://medium.com/democratize-m%C3%ADdia/seguidores-do-mbl-amea%C3%A7am-jovens-secundaristas-nas-redes-sociais-68dc1f5ef779 .

[x] Conferir a matéria seguinte, existem muitas outras e algumas notas de repúdio de grupos libertários, facilmente encontradas na rede: https//medium.com/@tsavkko/ativistas-anarquistas-e-aut%C3%B4nomos-brutalmente-agredidos-por-membros-da-frente-povo-sem-medo-aba5e5d073e2 .

[xi] O seguinte projeto foi, há alguns anos, assinado pelo ex-líder do governo e elaborado pelo advogado-geral da União (AGU), Luís Inácio Adams, buscando mediar o conflito entre o direito dos índios de terem  reconhecidas suas terras ancestrais e os interesses dos grandes fazendeiros que as ocupam de ali permanecerem, mesmo quando não produzem nada com a terra. Em resumo, a proposta afirma ser “área de relevante interesse público da União”, entre outras, “as rurais já antropizadas em 5 de outubro de 1988, cuja produtividade atenda a função social da terra”. https://diplomatique.org.br/um-rolo-compressor-no-congresso-nacional-ameaca-os-povos-indigenas/ ; ou seja, aparta-se, como quem nada faz, os indígenas de toda função social, reconhecendo a irredutibilidade de suas populações aos padrões normativos do capital e do consumo, declarando, explicitamente, guerra a eles. O texto que indico vai além e mostra como essa lógica institucionalizada aparta dos indígenas até a noção de humanidade. Claro, vale sempre ir às palavras de quem viu a morte avançar, literalmente, como uma avalanche de lama: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/nao-foi-um-acidente-diz-ailton-krenak-sobre-a-tragedia-de-mariana.

 

 

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