Entrevista com Moishe Postone: “Crítica e Dogmatismo”

Por Anej Korsika, via Scriboman, traduzida por Aukai Leisner

Moishe Postone (nascido no Canadá, em 1942) é teórico crítico e professor de história na Universidade de Chicago. Ele é conhecido tanto por sua interpretação do antissemitismo moderno quanto por sua reinterpretação da teoria crítica marxiana.


I.

Korsika: Professor Postone, em sua revolucionária monografia Tempo, Trabalho e Dominação Social o senhor nos fornece uma releitura detalhada da crítica da economia política de Marx. Você poderia refletir sobre a evolução do seu pensamento? Sobre os eventos e tradições teóricas na Universidade de Chicago e, mais tarde, em Frankfurt, que o motivaram a se dedicar a esse projeto seminal?

Postone: Quando eu era um estudante na Universidade de Chicago, eu estava dividido entre dois interesses e objetivos, teoricamente falando. Embora eu me considerasse uma pessoa de esquerda, me parecia que o marxismo tinha muito em comum com o positivismo, por um lado, e com noções novecentistas de progresso, por outro. Eu me impressionei muito mais à época com as críticas conservadoras à modernidade. Eu achava que elas captavam os problemas da modernidade mais plenamente que o marxismo. Isso ocorria em parte porque, à época, tínhamos em Chicago muitos acadêmicos emigrados, que haviam fugido da Alemanha nazista. Eles traziam toda uma gama de discursos intelectuais que criticavam várias formas de positivismo a partir de várias direções, que achei isso muito poderoso.

Eu comecei a mudar de atitude em relação a Marx quando descobri os Manuscritos Econômico-Filosóficos, que foram fortemente recebidos nos Estados Unidos em meados da década de 1960. Nesse momento, eu me agarrei à noção de que havia um jovem Marx muito interessante e um Marx mais velho que, infelizmente, se tornou um vitoriano, tendo passado muitas horas no Museu Britânico.

Uma outra mudança para mim esteve relacionada ao grande protesto na Universidade de Chicago, em 1969. Após o protesto, estudantes que haviam participado se dividiram em vários grupos de leitura diferentes. Dois grandes que eu lembro eram Juventude como Classe (eu definitivamente não fazia parte desse, risos) e Hegel e Marx. Foi aí que eu descobri História e Consciência de Classe, de Lukács, que era completamente desconhecido aqui. Ele não foi completamente traduzido para o inglês até 1971. Apesar de desde então eu ter me tornado muito mais crítico de Lukács, lê-lo foi uma grande revelação. Sua ideia de que as categorias marxianas não são categorias de uma base econômica meramente refletidas na consciência, mas de que são de fato formas de ser social ao mesmo tempo sociais e culturais, objetivas e subjetivas, me soou enormemente poderosa e satisfatória. Era uma ideia que nos permitia lidar com o pensamento de maneira adequada à sua lógica interna e ao mesmo tempo contextualizá-lo, de maneira não-funcionalista e não-instrumental. Eu achei isso algo profundamente iluminador.

Mais ou menos ao mesmo tempo, eu li um artigo escrito por Martin Nicolaus, O Marx Desconhecido, que era uma introdução aos Grundrisse, que Nicolaus estava traduzindo. Eu o achei absolutamente fascinante! Me pareceu que o esquema que eu vinha adotando, que distinguia um jovem Marx filosófico e um velho Marx cientificista, explodia com os Grundrisse. Consequentemente, eu decidi escrever uma dissertação sobre ele. Um de meus orientadores de dissertação, Gehard Meyer, um emigrante alemão e economista político familiarizado com a Escola de Frankfurt, sugeriu que eu passasse um tempo na Alemanha. Minha pesquisa não era arquivística, no entanto ele disse que eu me beneficiaria muito do nível de discussão na Alemanha, que era muito mais elevado que nos Estados Unidos. Foi por isso que eu fui a Frankfurt.

II.

Korsika: Um dos pilares da sua reinterpretação é a noção de marxismo tradicional. Quais são as principais características dessa linha de pensamento?

Postone: Deixe-me começar a abordar essa questão descrevendo o que eu quero dizer com marxismo tradicional. Eu não me refiro a uma tendência específica identificável no pensamento marxista, tal como o marxismo da Segunda Internacional ou o Bolchevismo. Refiro-me sim a um entendimento de Marx em que o trabalho não é somente explorado no capitalismo mas constitui a perspectiva a partir da qual a sociedade (capitalismo) é criticada. O capitalismo é entendido essencialmente em termos do mercado e da propriedade privada; sua superação é assim vista em termos da superação da exploração do trabalho e o advento de sua própria noção de trabalho. Me parece que esse é o núcleo duro do marxismo tradicional. Essa descrição engloba uma vasta gama de teorias que diferem entre si de maneiras significativas. No entanto, ao criar esta categoria eu tentei especificar mais precisamente o que eu estava tentando fazer com Marx, e como meu projeto diferia daquela vasta gama de teorias, incluindo a Escola de Frankfurt.

III.

Korsika: Ao invés de tentar localizar onde o projeto do socialismo realmente existente deu errado e o que poderia ter sido feito melhor, você afirma que esse sistema nunca esteve fora da formação social capitalista, representado, ao contrário, um momento histórico específico no desenvolvimento do capitalismo. Podemos então falar da social democracia no Ocidente e dos regimes socialistas no Leste como duas expressões diferentes da mesma formação social histórica?

Postone: Sim, e eu penso que quanto mais nos afastarmos deles, mais eles nos parecerão similares. Eu não quero dizer que, num sentido político, um seja exatamente igual ao outro. Existem diferenças muito significativas – particularmente para a experiência concreta das pessoas, não estou tentando negar isso. No entanto, se passarmos a um nível mais alto de abstração, me parece que a social democracia e as economias comunistas planejadas foram realmente parte da mesma época histórica do capitalismo. Elas se desenvolveram mais ou menos ao mesmo tempo, atingiram seu ponto máximo aproximadamente ao mesmo tempo e entraram em crise e declínio no final dos anos sessenta e início dos anos setenta. Embora muitas pessoas acreditem que a crise da União Soviética começou nos anos 1980, eu penso que foi antes que as formas estatais de economia se encontraram com certos limites que não conseguiram superar. Eu ainda não me sinto em posição de especificar esses limites; a maioria dos estudos existentes dos limites históricos da configuração pós-guerra focam exclusivamente no Ocidente e em sua configuração fordista/keynesiana. Eu me interesso por uma teoria que possa englobar e analisar também a União Soviética.

Retrospectivamente, uma das diferenças entre o modelo soviético e a social democracia, foi o radical domínio nacional (estatal) sobre a economia implicado pelo socialismo realmente existente. Essa foi talvez a única maneira, durante uma certa época do desenvolvimento do capital, pela qual uma nação periférica foi capaz de desenvolver o capital nacional. Isto é, o que se desenvolveu foi o capital nacional, não o socialismo. Talvez o socialismo pudesse ter se realizado se a revolução tivesse sido mundial, mas me parece que o corolário do socialismo num só país é na verdade nacionalismo num só país. Isso também afetou profundamente a consciência da esquerda que, ao menos em sua forma comunista ortodoxa, tornou-se uma curiosa espécie de movimento nacionalista – uma que se relaciona a uma nação que está em outra parte.

Korsika: Sua teoria do anti-semitismo e do Nacional-Socialismo como tipo peculiar e fetichizado de anti-capitalismo desenvolve uma perspectiva radicalmente nova sobre a catástrofe do Holocausto. O que se estava realmente tentando eliminar nos campos de concentração e como podemos enxergar as formas contemporâneas de anti-semitismo?

Postone: Para aqueles entre os seus leitores que não estão familiarizados com o meu trabalho – eu faço uma distinção entre anti-semitismo e outras formas de racismo. Eu defendo que há uma profunda incompreensão sobre o anti-semitismo (em sua versão moderna). O anti-semitismo moderno não é bem uma teoria da inferioridade dos judeus; é uma teoria do poder dos judeus. Eu tenho defendido que, como tal, ele é uma forma fetichizada de anti-capitalismo. Isto é, a sensação de perda de controle sobre as suas vidas que as pessoas têm (que é real) é atribuída, não às estruturas abstratas do capital, que são muito difíceis de apreender, mas a uma conspiração judia. Isto é, atribui-se agência às estruturas. Eu penso que isso ajuda a iluminar o programa nazista de extermínio. Embora isso talvez não faça nenhuma diferença para as vítimas, eu faria uma distinção entre extermínio e assassinato em massa. Na Polônia, por exemplo, os nazistas assassinaram milhares e milhares de pessoas, mas sobretudo intelectuais e outros líderes sociais, tais como padres, em torno dos quais a consciência nacional polonesa poderia se aglutinar. Eles mataram os intelectuais e os padres para escravizar o resto da população. Eles não queriam escravizar os judeus, eles queriam exterminá-los. Havia uma incompreensão desse fenômeno por parte de muitos judeus. No gueto de Lodz, por exemplo, muitos judeus trabalhavam em fábricas que eram importantes para a Wermacht. Eles estavam certos de que, porque estavam fazendo um trabalho importante para o exército alemão, seriam poupados. Expressavam uma forma de racionalidade – a de que você não mata sua própria força produtiva. Eles estavam errados.

Eu estou sugerindo que é porque, dentro do quadro dessa visão de mundo, os judeus são vistos como a encarnação do mal, ao invés de inferiores, porque são vistos como representando uma tal ameaça, que eles têm que ser eliminados. Na minha compreensão, portanto, o anti-semitismo é uma forma populista reacionária de anti-capitalismo. Ele é e tem sido profundamente incompreendido por boa parte do pensamento de esquerda.

Korsika: Talvez possamos continuar com essa linha de pensamento, especialmente em relação ao artigo História e Desamparo, que você escreveu como uma reflexão sobre a guerra no Iraque, especialmente em relação à paralisia em que a esquerda se encontra.

Postone: As questões são complicadas e muitas pessoas estão bravas comigo por causa do artigo (riso). Eu penso que as reações à guerra no Iraque apontavam uma espécie de falta de orientação por parte da esquerda. O que eu penso é que, no mínimo, a esquerda deveria ter problematizado a questão como um dilema: um país imperial estava invadindo um país controlado por uma ditadura brutal e fascista. As reações de boa parte da esquerda indicaram que a oposição aos Estados Unidos é vista como critério suficiente para ser de esquerda. É como se as pessoas nunca tivessem ouvido falar da era do “anti-imperialismo” fascista nos anos 1930 e 1940.O Japão, a Alemanha e movimentos fascistas por toda parte se opunham ferrenhamente aos Estados Unidos. Existia uma forma fascista de “anti-imperialismo”. Isso foi omitido da consciência histórica. Eu mesmo era contra a guerra, mas não nos termos mais difundidos. Eu achei significativo que, até onde me é dado saber, nenhuma das enormes manifestações contra a guerra no Iraque jamais contou com uma figura de oposição iraquiana, alguém à esquerda, alguém que fosse crítico de ambos os americanos e, especialmente, do regime Baathista. Ao invés, tudo foi colocado em preto e branco, estruturado por uma forma reificada de anti-americanismo. Para mim, isso era uma indicação de um certo anti-imperialismo falido. O que eu escrevi nesse artigo é que, não importa o quão inocentes nos pareçam hoje, os movimentos de massa contra a guerra americana no Vietnã eram diferentes. Muitos eram guiados pela ideia de que os vietnamitas estavam construindo algo progressista, que os americanos procuravam impedir. O anti-americanismo aqui estava ligado ao apoio a uma ordem mais progressista, o socialismo.

Independentemente do fato de se pensar se isso foi justificado ou não, esse motivo foi completamente abandonado, especialmente em relação ao Oriente Médio. Eu acho lamentável que alguns na esquerda busquem ligar a crítica ao regime de Mubarak ao anti-americanismo, referindo-se a Mubarak como um fantoche americano. Os americanos, no entanto, não criaram o regime. Mubarak o herdou de Sadat, que o herdou de Nasser. A esquerda tendeu a excluir regimes árabes nacionalistas realmente existentes de seu âmbito crítico, o que, acredito, trouxe consequências negativas. Que algumas pessoas na esquerda – para o desgosto de muitos progressistas no Oriente Médio – estejam se alinhando com forças reacionárias como o Hezbollah e o Hamas, aponta o grau em que a esquerda perdeu sua bússola política e moral.

Korsika: Opondo-se a autores do marxismo tradicional que basicamente defendem que o trabalho precisa ser liberado do capital, sua abordagem enfatiza que o trabalho em si é o problema central, sendo uma categoria histórica específica.

Postone: Deixe-me começar com uma reflexão lateral. Uma das coisas que eu achei bastante reveladoras sobre os Grundrisse, para voltar ao início da nossa entrevista, foi que Marx não estava interessado simplesmente no fim da exploração do trabalho proletário, mas sim na abolição desse trabalho. A maioria das interpretações da mais-valia não compreendiam esse ponto. A ideia de que Marx estava interessado na auto-abolição do proletariado e não na sua realização, me levou a começar a repensar Marx fundamentalmente. Quanto mais profundamente eu explorava seus trabalhos, mais eu percebia que ele não tratava a categoria de trabalho simplesmente como uma atividade que media as interações humanas com a natureza (a maneira como Habermas entende o conceito.) Na verdade, para Marx, o trabalho no capitalismo é único na medida em que constitui uma forma muito peculiar de mediação social que é abstrata, intangível, universal e além do controle das pessoas que o criam. Então, em certo sentido, a análise de Marx sobre o trabalho em suas obras da maturidade representa um desenvolvimento da ideia de alienação, presente em suas obras de juventude. Eu acho que isso tem enormes implicações, porque significa que a noção marxista de práxis é fundamentalmente diferente das compreensões atuais de práxis em termos de imediaticidade. Tais compreensões tendem a recapitular a antinomia de estrutura versus agência. Para Marx, no entanto, a práxis está ligada a formas historicamente únicas de mediação social, que geram o que muitas vezes se consideram estruturas. Essa configuração complexa vai além da oposição entre estruturalismo e pós-estruturalismo.

Tal entendimento também lança nova luz sobre a problemática da história. O capital é para Marx o que ele chama de valor auto-valorizante, é uma categoria dinâmica. Eu sugeriria que uma teoria do capital é uma teoria da existência de uma lógica histórica. Da perspectiva da análise de Marx, a noção hegeliana do desenrolar-se da história humana é uma projeção sobre a humanidade do que na verdade é válido somente para o capitalismo. Nietzsche e pensadores que o seguem focam na contingência da história. Eles o fazem por ter a consciência de que a ideia de lógica aplicada à história significa na verdade uma forma de heteronomia. A fim de salvar a possibilidade de agência, no entanto, eles negam as reais restrições à agência que a lógica do capital realmente representa. Eles as declaram inexistentes. Como resultado, o funcionamento do capital é obscurecido. Com a justificativa de empoderar as pessoas, então, tal filosofia acaba por desempoderá-las, porque ofusca a lógica do capital. O que Marx faz, com seu conceito de capital, é tornar a história, no sentido do desenrolar de uma lógica histórica, historicamente específica. Porque é historicamente específica, tem um começo e pode ter um final. Isso é diferente de Hegel. A noção de contradição em Marx comanda essa dinâmica, mas também aponta para além dela. É claro que eu tento reformular essa contradição: não é uma contradição entre capital e trabalho (o trabalho sendo uma forma de capital na análise de Marx) mas entre o potencial que o capital gera e sua inabilidade de deixar que esse potencial se realize. A contradição é temporal.

VII.

Korsika: Qual é sua compreensão da noção de proletariado que Lukacs identificou com o sujeito-objeto da história? Porque parece que hoje em dia essa noção está sendo considerada anacronística e vários outros conceitos, tais como trabalho cognitivo, estão se desenvolvendo. Ademais, como entender a luta de classes sem cair em regressões históricas?

Postone: Eu penso que a luta de classes é uma dimensão intrínseca do capital. É uma luta contínua que está integrada às estruturas do capital. Por um tempo as pessoas pensaram que, com o sucesso de formas social democráticas após a Segunda Guerra, a luta de classes seria algo do passado. Não é. Desde o desmantelamento da síntese fordista/keynesiana, o peso está agora sobre o outro lado e a classe trabalhadora está sendo esmagada. No entanto, há uma diferença entre dizer que a luta de classes é parte constituinte do capitalismo e dizer que ela aponta para além do capitalismo, no sentido de que a abolição do capital será a vitória do proletariado. Eu acho que há muita dificuldade em conceituar a necessidade de apoiar a classe trabalhadora, de um lado, e perceber, do outro, que um movimento anti-capitalista tem que ir além da classe trabalhadora. Movimentos da classe trabalhadora foram tremendamente importantes de várias formas, a mais óbvia sendo que eles ajudaram a humanizar o capitalismo enquanto desenvolviam formas de agência política e social de massa. O fato de as pessoas terem ou não as redes de seguridade que a social-democracia desenvolveu realmente faz diferença na maneira como elas vivem. No entanto, embora os movimentos da classe trabalhadora tenham humanizado consideravelmente o capital, eles também foram parte do motor de desenvolvimento do próprio capital. Na análise de Marx da luta pela jornada de dez horas diárias, por exemplo, a vitória da classe trabalhadora leva ao que ele chamou de mais valia relativa, que é uma forma muito mais dinâmica de capital. Então há uma relação dinâmica complicada entre o capital e os movimentos operários; é um erro olhar para ela estaticamente e simplesmente declarar que os trabalhadores acabaram somente reforçando o capital. Numa tal perspectiva, o capital e os trabalhadores são retirados do tempo-espaço.

No entanto, eu penso que somos confrontados por uma crise que está fora do campo de visão das pessoas que me criticam por ter deixado a classe trabalhadora para trás. O próprio capital está diminuindo o tamanho da classe trabalhadora e estamos tendo um crescente exército de mão de obra de reserva. Marxistas mais ortodoxos costumavam presumir que a classe trabalhadora continuaria somente crescendo. Mesmo hoje em dia algumas pessoas estão dizendo que, embora o tamanho da classe trabalhadora esteja diminuindo nos Estados Unidos, está crescendo na China. No entanto, minha compreensão é de que os números da classe trabalhadora permaneceram estáticos nos últimos dez anos na China. Se esse for o caso, é incorreto presumir que o declínio do proletariado industrial no Ocidente corresponde a um crescimento da classe trabalhadora em ex-países de Terceiro Mundo, como a China. O que está acontecendo não pode ser entendido totalmente como exportação de empregos. O principal fator é o uso capitalista de tecnologia e processos de racionalização, que está destruindo vários empregos. Acho que estamos numa corrida contra o tempo e não acho que ninguém tem uma visão política acabada de superação do sistema baseado no trabalho proletário.

VIII.

Korsika: Concluamos com algumas questões relativas à situação política contemporânea. Primeiro, qual é sua perspectiva sobre a China como poder global emergente, especialmente em relação àqueles autores que defendem que estamos lidando com uma nova forma de capitalismo?

Postone: É uma forma muito interessante porque abriu-se ao capital global. Essa era a diferença entre Deng Xiaoping e Gorbachev. Gorbachev queria reformas políticas mas a União Soviética estava entrando em colapso econômico. Deng, por outro lado, desenvolveu reformas econômicas que trouxeram à China enormes quantidades de capital, enquanto mantinha o controle político. É um tipo curioso de forma mista. A informação que tenho é de que mais de 50% das empresas chinesas são propriedade de capital estrangeiro, algo que teria sido completamente impensável uma ou duas gerações atrás. Eu não acho que o Partido Comunista ainda considere isso uma ameaça. Teria sido uma ameaça antes, porque teria impedido o desenvolvimento de um capital nacional. Agora os chineses não veem as coisas assim. Talvez a formação de uma economia nacional pelo Partido tenha sido uma importante pré-condição histórica para esse desenvolvimento mais recente, que eu considero parte integrante da época neoliberal.

Mas a China é também uma hegemonia ascendente, eu acho que não se pode questionar isso. E acho que isso se tornou um fator no pensamento estratégico americano. Por exemplo, eu afirmaria que isso teve um papel na guerra americana no Iraque. As forças armadas americanas pensam que desde que controlem o Golfo Pérsico elas podem impedir a transformação de um grande competidor econômico (China) num competidor militar. Eu penso que a questão do controle do Golfo tem um papel muito mais importante no pensamento estratégico americano do que você imaginaria ao ler gente como John Mearsheimer e Stephen Walt, que parecem ver tudo no Oriente Médio pelas lentes de Israel-Palestina. A política americana em relação ao Iraque deve ser entendida contra o pano de fundo da Revolução Islâmica no Irã. Antes, os americanos podiam contar com duas grandes forças no Golfo, o Irã sob o xá Reza Pahlavi e a Arábia Saudita. O xá foi deposto e os sauditas começaram a ocupar uma posição ambígua, dado seu apoio a movimentos islâmicos radicais. Contra esse pano de fundo, eu penso que um dos motivos para a invasão do Iraque foi o de criar ali um estado cliente. Eles o fizeram não tanto porque precisassem do petróleo diretamente, mas porque eles queriam ser capazes de controlar o fluxo de petróleo. E ao mesmo tempo os chineses estão construindo uma enorme base naval no Paquistão, muito próxima da boca do Golfo Pérsico. Então, essa espécie de pensamento geo-estratégico de larga escala está movendo ambos chineses e americanos. (A fim de driblar os americanos, os chineses também estão construindo oleodutos pela Ásia.)

O que eu acho muito triste é que houve um tempo em que a esquerda tentava entender mudanças globais de poder.

Korsika: De 2008 em diante o capitalismo vem enfrentando a sua maior crise histórica. Ao invés dar razão ao argumento histórico da esquerda, parece que a crise desmascarou toda a pobreza teórica e regressões que se acumularam nessa tradição de pensamento nas últimas décadas. Sob essa chave, como você entende os levantes nos países árabes? Parece que esses eventos foram vorazmente adotados pela esquerda e serviram como cortina de fumaça para esconder o seu vazio.

Postone: Eu tenho uma visão um pouco diferente sobre as revoluções e levantes árabes. Eu acho que eles apontam o grau em que a esquerda ocidental fracassou em sua compreensão do Oriente Médio. Uma coisa é ser crítico da ocupação e das políticas israelenses, simpatizar com o movimento palestino por auto-determinação, posições das quais eu compartilho. Outra completamente diferente é comprar a linha árabe nacionalista segundo a qual a única coisa que movia as massas árabes, reificada como “rua árabe”, era Israel-Palestina. A ideia de que todos os problemas do Oriente Médio vêm de fora, especialmente de Israel, era uma ideologia de legitimação para os vários regimes autoritários. O que ela indicava era que o único problema do Oriente Médio é Israel. E a esquerda ocidental comprou totalmente essa ideia e estava disposta a relevar a supressão de movimentos progressistas no mundo árabe pelas ditaduras supostamente anti-coloniais. Eu não acho que as pessoas olharam seriamente para o nacionalismo árabe como uma formação. Com “nacionalismo árabe” eu não me refiro à ideia do direito à auto-determinação nacional. Eu me refiro ao nacionalismo árabe “realmente existente.” Me refiro aos regimes baathistas na Síria e no Iraque, Nasser/Sadat/Mubarak, Líbia, Tunísia, Argélia, Yemen. Eles são diferentes um do outro, mas eu acho que têm muito em comum. Eles são todos completamente autoritários e dependentes de polícia secreta. Mas porque eles não eram reis, boa parte da esquerda os considerou progressistas – progressistas que mataram sua própria esquerda.

Eu não entrarei no mérito do papel negativo do bloco soviético na promoção desse falso reconhecimento. É suficiente dizer que essa afirmação do nacionalismo árabe como progressista estava atrelada à Guerra Fria: o Egito e a Síria se tornaram estados clientes do Pacto de Varsóvia. Depois da derrota desses representantes em 1967, a União Soviética mudou seu foco para os movimentos palestinos. O Oriente Médio passou a ser interpretado pela lógica da Guerra Fria. Entre as muitas dimensões negativas disso estava o efeito sobre os intelectuais. Antes havia intelectuais comunistas como Doris Lessing, que eram nacionalistas da União Soviética (Lessing mais tarde se referiu a ela mesma nesse contexto como tendo sido uma “idiota útil”). Mais recentemente, muitos na esquerda ocidental se tornaram nacionalistas árabes. Uma das coisas que eu acho muito emblemáticas sobre os levantes no mundo árabe hoje é que Israel/Palestina não é uma questão central. Isso não significa que as pessoas sejam indiferentes à questão mas que, ao contrário do que ouvimos por décadas sobre a “rua árabe,” não se trata do foco dos levantes. O que é central é sua própria miséria e isso não tem nada a ver com os americanos. Tem sim a ver com o neoliberalismo, que tornou a repressão política intolerável em função da crescente diferenciação econômica que está acontecendo em todas essas sociedades (está acontecendo em Israel também). Há uma diferença muito maior entre ricos e pobres. Eu sou um pouco pessimista, porque não tenho certeza de que isso possa ser resolvido mesmo por uma sociedade democrática. É com isso que estou um pouco apreensivo.

Mas eu acho que as revoluções árabes expuseram a esquerda anti-imperialista no ocidente. Me parece que isso sublinha que estamos testemunhando uma grande crise na esquerda. O problema mais sério não é simplesmente que a esquerda faliu, mas que escondeu sua falência de si própria, com dogmatismo. Está evidente há décadas que o socialismo tradicional não é o caminho para o futuro. Por uma série de razões, eu acho que tem sido muito difícil para a esquerda pensar numa nova visão de mundo. De modo que, por exemplo, tornou-se muito fácil para muitos, em face da atual crise econômica, simplesmente regredir a uma posição anti-finanças. Mas posições anti-finanças não atacam nem a fonte da crise nem apontam para sua solução. Eu não tenho a solução, mas acredito que a esquerda tem se recusado a enxergar seriamente quão problemática é sua situação, desde o final dos anos sessenta. Uma consequência tem sido a tendência entre muitos de se tornar dogmáticos, furiosamente anti-imperialistas. Isso tornou a vida consideravelmente mais fácil – tudo o que você precisava era de um critério: se é contra os Estados Unidos, nós apoiamos! Como resultado, boa parte da esquerda foi para a cama novamente com regimes autoritários bastante repulsivos. Por mais brutal e terrível que o colonialismo tenha sido (na Líbia, por exemplo, os italianos mataram milhares de pessoas) eu não acho que isso sirva para justificar Gadafi. A esquerda deve abandonar essa visão maniqueísta, que serviu como ideologia de dominação. Eu acho que na Argélia isso ficou claro. Sim, o colonialismo francês foi extremamente brutal, mas o caráter brutal do FNL foi simplesmente ignorado, mesmo durante os anos 1990, quando mais de 200,00 argelinos foram mortos numa guerra civil.



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