Breves notas sobre o objeto de “O capital”

Nicos Poulantzas[1], traduzido pro Danilo Enrico Martuscelli.

O problema que nos ocupará aqui, com algumas observações forçosamente muito esquemáticas, é o seguinte: qual é o objeto teórico d’O capital? De fato, é verdade que uma problemática original, um terreno teórico novo, como o que Marx produziu em suas obras de maturidade, distingue-se pela natureza das questões que coloca a um objeto, ao construí-lo assim em objeto de investigação teórica.


Contudo, essas considerações são menos evidentes do que parecem. Definir a novidade de uma problemática pela novidade do objeto teórico que ela define, delimitando-o, supõe toda uma concepção particular do nível teórico ao qual pertence a investigação científica, supõe portanto um gênero de perguntas que devemos expor na leitura d’O capital. Aqui a tarefa se complica se se admite que Marx – e falo aqui do Marx da maturidade – como ocorre com todos os pensadores que produziram uma nova teoria, não é contemporâneo de seu pensamento: nas indicações que ele mesmo nos oferece sobre esse assunto, ele não logra aprender sua própria novidade, e nós podemos empreendê-lo somente mediante uma leitura sintomal dessas indicações, interpretando sua própria linguagem, seus equívocos e seus silêncios. No entanto, não é uma tarefa inútil examinar brevemente, antes, duas interpretações errôneas e constantes d’O capital que prevaleceram até hoje e que estão em estreita relação: trata-se do que designarei como a interpretação economicista e a interpretação historicista, ainda que a interpretação economicista não seja mais do que uma variante da interpretação historicista geral.

De fato, essas duas interpretações foram frequentemente acopladas em sua oposição por remeterem a uma mesma problemática: O capital só foi lido, entre os “especialistas”, pelos economistas e pelos historiadores, que frequentemente pensaram, no primeiro caso, que O capital era um tratado de Economia, no sentido imediato de sua própria prática, enquanto para os historiadores, O capital era, em algumas de suas partes, uma obra de História no sentido imediato de sua própria prática. Do ponto de vista epistemológico, a “querela” foi abordada da seguinte maneira: para os economistas, O capital constituiria uma teoria “abstrata” de Economia, para os historiadores, constituiria essencialmente um método de investigação da História “concreta”: e o que é realmente importante, admitimos frequentemente que O capital era ao mesmo tempo um e outro, introduzindo aqui uma ruptura inaceitável, nesse contexto, com o estatuto teórico de seu objeto –  algo que Böhm-Bawerk já apontou -. Contudo, o que nos interessa aqui é que essas duas interpretações não souberam colocar para O capital a questão pertinente sobre seu próprio objeto teórico: projetaram sobre O capital o próprio objeto de sua prática, objeto que segue sendo um objeto ideológico, precisamente colocado em questão pelo objeto original d’O capital. Isso se deve, na minha opinião, ao seguinte fato: essas duas interpretações remetem, em sua oposição, a uma problemática comum, que designarei como a problemática historicista do sujeito, a qual resulta notavelmente numa concepção ora empiricista, ora especulativa do processo teórico do conhecimento científico, e não pode assim formular perguntas pertinentes concernentes ao objeto de uma teoria científica.

Com efeito, no quadro desta problemática, que é a do jovem Marx, os diversos níveis do conjunto de uma estrutura social, suas relações e seu princípio de inteligibilidade, são fundados em sua origem genética por um sujeito criador da sociedade e um princípio, unilinear, em seu autodesenvolvimento, da história. Transposta ao marxismo, esta problemática acaba considerando que esses níveis formam uma “totalidade” circular, na medida em que supostamente devem ser engendrados por um centro e que todo nível constitui um pars totalis, uma simples expressão desse sujeito central. Dito de outra maneira, supõe-se que as diversas realidades sociais revestem um sentido enquanto manifestam, sob formas e aparências fenomênicas variadas, uma essência. Sabemos que aqui se trata por exemplo da problemática de Hegel, para quem esse sujeito central é constituído pelo Espírito absoluto: no pensamento marxista, o lugar deste sujeito foi atribuído alternadamente à classe social-sujeito da história, aos indivíduos concretos-homem genérico-sujeitos da história, ao trabalho social, etc.

Neste momento, importa assinalar as consequências epistemológicas de tal problemática. Não se pode reconhecer nenhuma autonomia relativa e eficácia específica ao processo teórico, seja no nível do conhecimento científico (este nível é considerado necessariamente), seja na concepção especulativa hegeliana, enquanto sujeito central e princípio da história, seja como um pars totalis da totalidade social circular, simples expressão e fenômeno, no limite, reflexo deste sujeito. No limite ainda, nos dois casos, não podemos fundar a diferença de estatuto teórico entre o objeto real e seu conceito, ou seja, o objeto teórico. Com efeito, para esta problemática, o estatuto da teoria, do conhecimento científico, reside no desvelamento do sujeito, pelo processo de seu autodesenvolvimento, de sua essência, o que nesse caso significa nesse desvendamento de suas origens e autoconsciência de sua gênese, identidade ou homologia do sujeito e do objeto do saber: em síntese, o processo teórico reveste necessariamente o estatuto de uma historiografia da gênese do objeto real. Se esta problemática pode ter como consequência, é sabido, uma concepção especulativa – hegeliana – do conhecimento, também pode ter como consequência, como contraponto invariável, a concepção empirista: o par epistemológico especulação-empirismo emerge de princípios teóricos comuns.

Tal é o caso do economicismo, variável do historicismo, para o qual O capital constituiria uma teoria “abstrata” da Economia, interpretação dominante para a Segunda Internacional. Para o economicismo, o centro da causalidade histórica unilinear seria constituído, em primeiro lugar, pelos dados brutos que constituiriam, em si, os “fatos econômicos”; os outros níveis da realidade social, n’O capital, seriam apenas simples expressões-fenômenos do Econômico, princípio monista da história. O capital haveria constituído um “modelo” de um dado que forma um espaço econômico homogêneo em si e enquanto tal: o “modelo” seria elaborado mediante um processo de generalização-abstração a partir deste “dado econômico”. Tratar-se-ia, por exemplo, do modelo capitalista, uma das formas do Econômico, cujas diversas manifestações históricas, por exemplo na Inglaterra ou na França, seriam por sua vez simples concretizações-realizações. Contentemo-nos a assinalar, posto que nos alongaríamos demais se tratássemos deste problema, que essa concepção do processo teórico como simples generalização e abstração a partir do real, que possui o signo distintivo de objeto de ciência particular, ou seja, a concepção dos “modelos”, deriva estritamente de uma concepção empirista do conhecimento. Deste modo, a interpretação economicista d’O capital não compreende sua novidade que é a produção de um novo objeto teórico: ela lhe atribui o mesmo objeto que seria o dos “fatos econômicos” sobre os quais havia trabalhado a economia política clássica, ou seja, no limite, fatos “mensuráveis” e “quantificáveis” relacionados com a distribuição de “riquezas”. Entre Smith, Ricardo, etc., de um lado, e Marx, de outro, não haveria ruptura teórica, Marx teria simplesmente realizado a economia política clássica ao encontrar, oculta sobre o lucro, a renda e os juros – descobertos pelos economistas clássicos – e, por meio de uma “abstração” mais avançada, a mais-valia. Haveria levado a cabo a análise de um mesmo objeto, o Econômico como qualidade de fatos empíricos sempre dados, historicizando simplesmente as categorias econômicas concebidas como “eternas” pelos economistas clássicos.

Assim, passamos à segunda interpretação d’O capital, segundo a qual essa obra não constituiria em primeiro lugar uma teoria abstrata de Economia, mas um modelo de análise da história “concreta”: além disso, esses intérpretes verão com frequência n’O capital uma conjunção dos dois objetos. Não entrarei aqui também nos detalhes que concernem às relações que os diversos autores historicistas, de Lukács a Gramsci e a Galvano della Volpe, tentaram estabelecer entre o “lógico-abstrato” e o “histórico-concreto” n’O capital. O importante é ver aqui também que o objeto atribuído a O capital, o histórico-concreto, assim como as consequências que resultam dele, derivam de uma concepção empírico e pragmática do conhecimento. Tanto é verdade que o historicismo implica um certo conceito de história; este conceito consiste finalmente no processo “significativo” de autodesenvolvimento linear, de essência a existência, do sujeito central. A partir daí, esse sujeito é elevado ao estatuto privilegiado de “real concreto”, possuindo intrinsecamente as chaves de sua inteligibilidade: é o sujeito-objeto do saber. Nesse sentido, o objeto de uma ciência da história se centra no presente histórico concreto, objeto que se converteu no resultado da história passada e que, deste modo, desvela a realidade do autodesenvolvimento histórico. Trata-se aqui da interpretação bem conhecida a que se prestam numerosas passagens de Marx, segundo a qual o objeto d’O capital seria o capitalismo como resultado “concreto” de um processo histórico linear. Esse capitalismo-objeto permitiria explicar através de um corte de essência o passado histórico da mesma maneira que a “Anatomia do homem nos permite explicar a anatomia do macaco”. Esse capitalismo presente – corte de essência da história –, esse presente de um devir homogêneo e contemporâneo de si, apenas é erigido a esse estatuto, porque comportaria de fato, como ocorre com o saber absoluto de Hegel, uma coincidência entre o lógico-abstrato e o histórico-concreto, do saber e do devir. O capitalismo teria constituído esse estágio privilegiado da história no qual a ciência existe sob a forma imediata da realidade empírica, a história teria produzido esse presente excepcional em que as abstrações científicas – o trabalho abstrato, por exemplo  – estariam realmente presentes nos fenômenos, na existência empírica concreta. Deste modo, as categorias econômicas não seriam “eternas”, mas historicamente-dialeticamente-concretamente produzidas, permitindo, lidas na existência concreta do capitalismo, ao mesmo tempo o deciframento do passado. Em resumo, no caso d’O capital estaríamos diante de uma obra tipicamente hegeliana.

Pelas considerações precedentes se evidencia que o historicismo está finalmente fundado na concepção do sujeito central, implícita ou explicitamente admitido como princípio do devir linear. Já indiquei que o lugar desse sujeito na história marxista pode ser preenchido por várias entidades; somente mantenho aqui aquelas que nos permitem estabelecer nitidamente a comunidade das premissas epistemológicas entre o historicismo em geral e o economicismo em particular. Tratam-se das concepções historicistas “humanistas”, que concebem como sujeito central o trabalho humano social, ou também os homens, os indivíduos concretos – homem genérico – “que fazem sua própria história”. Com efeito, é surpreendente ver, por uma parte, que toda interpretação historicista d’O capital apela a um sujeito e, por outra, que esses sujeitos se reencontram sob a forma do trabalho ou dos indivíduos concretos, na interpretação economicista da obra de Marx. Se o erro dessa interpretação economicista reside no fato de considerar a Economia – objeto d’O capital – como  consistindo em um espaço homogêneo de “fatos econômicos dados”, como um objeto eterno e empírico no qual somente as categorias “abstratas” que o tratam, são consideradas como “históricas”, é preciso não esquecer que esse erro é possível com uma condição: que a homogeneidade do espaço econômico seja relacionada com um sujeito, unificando esse espaço “empírico”, e que este seja apoiado numa antropologia ideológica do homo oeconomicus. Tal é o caso, por exemplo, da corrente que relaciona a definição do espaço econômico com as “necessidades materiais” – eternamente em evolução, mas imutáveis como princípio epistemológico de delimitação do econômico – dos indivíduos concretos que fazem sua própria história: concepção  que encontramos no marginalismo – a “utilidade” – e que, transposta ao marxismo, termina por estabelecer uma continuidade teórica dessa obra feuerbachiana que são os Manuscritos de 1844 e O capital; ou também da corrente que delimita o espaço econômico a partir do trabalho humano social – e de seus “produtos”, ou seja, da “distribuição” das “riquezas” ou da “repartição dos ganhos” –. Este trabalho é considerado como o princípio simples e originário da história da qual o trabalho abstrato do capitalismo representaria o momento do saber absoluto: concepção “humanista” bem conhecida que resulta na interpretação do marxismo como “filosofia do trabalho”, de matriz ética, personalista ou existencialista, na concepção das relações sociais, ou seja, das classes sociais, como relações “inter-humanas”; e por outro lado, em todas as deformações tecnologistas.

Observamos aqui que as interpretações economicistas ou historicistas d’O capital coincidem  inclusive em sua oposição, ao atribuírem a esta obra objetos ideológicos pré-marxistas. Esse Econômico do qual supostamente O capital faz a teoria “abstrata”, é apenas o conceito-objeto da Economia política clássica, esta História “concreta” da qual O capital constituiria o desvelamento da gênese e do desenvolvimento, é somente o conceito de uma história pré-marxista. Desse modo, O capital é considerado seja como a verdade de… Ricardo, Smith, etc., seja como a inversão de Hegel. De fato, essas duas oposições somente se opõem em aparência: os termos do par teoria econômica abstrata-concepção histórica concreta estão estreitamente relacionados. Esta relação se funda exatamente na problemática historicista comum a ambas concepções e deriva, entre outras, da concepção empirista e pragmática do conhecimento, que esta problemática implica. Contudo, a relação economia-história existe realmente n’O capital, mas se trata de algo muito distinto, assim como muito distinto é o objeto d’O capital.

***

Com efeito, a obra de maturidade de Marx comporta uma ruptura epistemológica profunda com sua obra de juventude, ruptura que se esboça na Ideologia alemã e que se consolida n’O capital. Marx, em particular, produz assim um novo terreno teórico que rompe radicalmente com a problemática historicista do sujeito. Em O capital, tal como demonstrou Louis Althusser, o princípio epistemológico que rege a análise dos diversos modos de produção não é uma totalidade expressiva simples dos distintos níveis do conjunto social a partir de um sujeito central-essência, mas o de uma estrutura com dominante. Trata-se dos diversos níveis com especificidade própria, autonomia relativa e eficácia particular, cuja unidade está fundada na determinação, mas somente em última instância, do econômico.

Isso tem como consequência, em primeiro lugar, a concepção de um nível teórico, ou seja, do processo de produção dos conhecimentos científicos, em sua autonomia própria do processo real, na medida precisamente em que não se trata mais de simples autodesvelamento, por um processo de essência-existência, do sujeito central a si próprio. Em segundo lugar, tem como consequência a produção de um problema novo: se o econômico, nível determinante em última instância, não é mais um sujeito central, ou não está mais relacionado com um sujeito do qual os outros níveis somente seriam simples expressões – pars totalis –, trata-se de descobrir um novo tipo de causalidade, a causalidade estrutural. Trata-se de descobrir a rigor o tipo de determinação de uma estrutura social global com níveis específicos por meio de seus níveis, de uma estrutura global através de uma estrutura regional, tipo de determinação que só existe em seus efeitos sobre as relações dos diversos níveis. O econômico não é determinante em última instância, porque é o nível sempre dominante, mas porque determina o nível que detém o lugar dominante em um modo de produção, e que pode ser o econômico, o político, o ideológico, etc. Em consequência, no marco não mais de um sujeito-centro, mas de uma descentração do sujeito, não se trata mais da delimitação do econômico-objeto por um simples processo de abstração a partir de “fatos econômicos” empíricos que, enquanto tais, detenham sempre o lugar dominante. Trata-se de uma ruptura com essa concepção empirista-pragmática do conhecimento: o problema consiste em construir teoricamente o conceito de um modo de produção, descobrindo o índice de dominação e as relações de seus diversos níveis, ou seja, descobrimento de que nível detém o lugar dominante no modo de produção em questão. Assim como se trata de construir o conceito de um modo de produção descobrindo o funcionamento da causalidade estrutural que o especifica, trata-se também, para cada modo de produção, de construir teoricamente o conceito de econômico segundo seu lugar e sua função no modo de produção em questão. A rigor, o objeto da economia política marxista não é, como Marx entendia às vezes, historicizar simplesmente as categorias “abstratas” do Econômico – “fatos econômicos” em si, mas construir o objeto teórico do econômico, delimitando-o como estrutura regional de um modo de produção.

Tomemos alguns exemplos simples: ao descobrir o conceito de mais-valia no modo de produção capitalista, Marx não realizou simplesmente a economia política clássica, historizando-a, descobrindo uma simples palavra por detrás da renda, do juro e do lucro de Ricardo e Smith;, ou seja, extraindo dos fenômenos uma essência. Marx realizou uma profunda revolução teórica, pois rompeu, de um lado, com a concepção do Econômico–fatos empíricos, quantificáveis e mensuráveis  – as “riquezas” – e, por outro lado, com a concepção das categorias teóricas que consideram esse econômico como simples abstrações. Marx viu que se a mais-valia não é precisamente mensurável, porque constitui o conceito teórico de categorias tais como a renda, o juro e o lucro: descoberta que foi possível na medida em que construiu teoricamente o conceito do econômico no modo de produção capitalista, delimitando-o como processo de produção de mais-valia. Tomemos outro exemplo: rompendo com a antropologia humanista do homo oeconomicus que vê como lugar de definição do econômico a distribuição e os valores de uso, se Marx descobriu que esse lugar da distribuição é constituído pelo processo de produção, importa observar que este processo de produção remete precisamente às relações do conjunto dos níveis de um modo de produção, vale dizer, à causalidade estrutural de suas relações. O lugar do processo de produção, cujo espaço do econômico não é o mesmo – homogêneo – no modo de produção feudal, em que a delimitação em última instância do econômico se reflete em seus efeitos, Marx a indica, através de um papel dominante do político e do ideológico – a religião; e no modo de produção capitalista, no qual mais particularmente no estágio do capitalismo liberal, esse papel dominante é detido pelo processo mesmo de produção de mais-valia.

De todo modo, é nesse contexto no qual se situa a ruptura do Marx da maturidade com a problemática historicista em geral. O marxismo é, no sentido mais profundo, ou seja, teórico, um anti-historicismo e, neste caso, um anti-humanismo. A ausência de um sujeito central em Marx significa aqui ruptura com a antropologia econômica, inclusive com a ideologia do trabalho e das necessidades, com noções ideológicas, tais como alienação, reificação, etc., dado que essas noções supõem necessariamente uma essência de tipo hegeliano ou feuerbachiano e não possuem nenhum estatuto científico dentro do marxismo. Somente assim se torna possível a crítica de Marx ao objeto da economia política clássica e a delimitação de um novo objeto. Os “homens” apenas estão presentes na produção como suportes – Träger – de estruturas, ou seja, de relações de produção,  estruturas que os distribuem nesses lugares e funções que são as classes sociais. Em O capital, a história não é mais autodesvelamento da essência do sujeito central no “concreto”, no que se passa realmente, como identidade final do sujeito e do objeto. Não se trata mais de um desenvolvimento linear, carregado de sentido em si, em um tempo contínuo e homogêneo que é o do sujeito e no qual podemos fazer cortes de essência do tipo do saber absoluto, a fim de ler diretamente no presente concreto, coincidência privilegiada de essência e existência, o sentido do passado. Pela autonomia própria da teoria, que o marxismo supõe na ruptura com o historicismo, o objeto da ciência não é n’O capital o “real-concreto” como tal, mas como a construção teórica do objeto da história, e inclusive do conceito de história. Essa construção não se refere a um princípio de evolução simples que é o sujeito central, mas à estrutura complexa com dominante dos distintos modos de produção. Os níveis com autonomia própria dessas estruturas apresentam temporalidade diferenciais, ritmos específicos em defasagem entre si, segundo suas relações em um modo de produção e, por consequência, segundo o modo de determinação em última instância pelo econômico dessas estruturas, o nível sobre o qual incide o papel dominante, etc. Assim, como se trata de construir teoricamente o conceito de um modo de produção e definir teoricamente o econômico nesse modo, trata-se de construir em relação à cada modo de produção e à passagem de um a outro (transição), o conceito de história de acordo com as diversas estruturas assim obtidas. Nesse sentido, de fato, O capital não é uma obra histórica no sentido próprio do termo: contém em parte elementos para uma história e ademais indicações para a construção do conceito teórico de história.

Por meio dessas considerações, creio que se pode fundar, contra a oposição da teoria abstrata da economia-concepção concreta da história, a homogeneidade teórica do objeto d’O capital. A rigor, não se trata nem de uma obra “econômica” nem de uma obra “histórica” no sentido imediato. Trata-se de uma obra que permite a construção teórica do objeto da história e o objeto da economia, que são o conceito de história e o conceito de economia nos distintos modos de produção e seu arranjo: e com isso, delimita a economia como uma região de estruturas teoricamente fixadas, a propósito das quais construímos um conceito específico de história, do processo de transformação das formas do qual falava Marx.


[1]     Trata-se de comunicação pronunciada pelo autor no Congresso Frankfurt “Hundert Janre Kapitals”, em setembro de 1967: Nicos Poulantzas. Brèves remarques sur l’objet du “Capital” In: FAY, Victor (org.). En partant du “capital”; Paris, Éditions Anthropos Paris, 1968.

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