Ensaio sobre o delírio – notas acerca da lírica esquizofrênica de Manoel de Barros

Por Julio d’Avila, graduando Ciências Sociais USP

O mato-grossense Manoel de Barros é autor de uma extensa obra poética, dispersa em diversos breves livros[i]. Ele sustenta que poesia deve ser publicada de modo esparso, é contrário a livros grandes.Essa postura já nos dá indício de que a experiencia oferecida pela poesia de Manoel possui algo de único, algo que o autor reconhece, algo proposital. Seus livros são sempre pequenos porque devem ser lidos num fôlego só, e aquilo que absorvemos pode ser repetido ou numa nova leitura do mesmo livro ou num outro livro, também sucinto. É como se oferecesse uma sensação, um sentimento, do mesmo modo que andamos em montanhas-russas para sentirmos excitação e agito, lemos Manoel de Barros para passarmos por um determinado tipo de experiencia intelectual, excepcionalmente revigorante. O que o autor providencia é um rompimento com a ideologia e uma forte crítica da linguagem, mas, consciente de que estamos absolutamente imersos em uma condição que nos bombardeia com mensagens ideológicas a partir de uma linguagem da ordem, do sistema, Manoel de Barros oferece sua lição em várias doses tragáveis, proporcionando um remédio que estará ao dispor do leitor. Sua poesia deve ser encarada como uma pílula anti-ideologia, o antídoto à alienação.


Manoel de Barros começou a produzir poesia “profissionalmente”, isto é, com a publicação de um livro, com a obra Nossa Senhora da Minha Escuridão, apreendido e chamuscado pela Ditadura Vargas. Isso ocorreu porque Manoel de Barros era comunista, filiado ao partido até 1945 (rompe após a eleição de Luis Carlos Prestes, presidente do PCB, ao Senado, por julgar que se tratava de uma aliança com o poder) e participou ativamente da Juventude Comunista. Seu primeiro livro a ser de fato publicado e estar disponível é Poemas Concebidos Sem Pecado, de 1937. É um livro de poesia extremamente crítico e social, mas ainda sem ter a lírica esquizofrênica das obras posteriores. É importante assimilar esse caráter crítico e questionador do poeta porque para muitos ele desaparece com a chegada do novo lirismo. Outros inclusive defendem que Poemas Concebidos Sem Pecado não tem nenhuma intenção crítica. Um poema do livro, “Maria-Pelego-Preto”, desbanca essa tese e é um bom exemplo de como o autor enxerga a sociedade, algo que se refletirá na lírica esquizofrênica:

Maria-pelego-preto, moça de 18 anos, era abundante de pelos no pente

A gente pagava pra ver o fenômeno.

A moça cobria o rosto com um lençol branco e deixava pra fora só o pelego preto que se espalhava quase até pra cima do umbigo. 

Era uma romaria chimite!

Na porta o pai entrevado recebendo as entradas.

Um senhor respeitável disse que aquilo era uma indignidade e um desrespeito às instituições da família e da Pátria!

Mas parece que era fome.                                            

No poema, Barros faz uma desconstrução do senso comum, daquilo que é suposto, esperado, e assinala que a realidade costuma ser mais trágica do que o usualmente se imagina. Aponta a falência do “primeiro discurso”, da primeira explicação. Antes de ser um ataque aos valores da família, o ato de Maria-pelego-preto é um ato de fome. A banalidade do discurso comum oculta a brutalidade do Real. É um poeta consciente de si, dos seus deveres e que logo se insatisfará com as limitações do poema-denúncia ordinário.Delirar, fazer a palavra delirar, é o fundamento crucial da poesia do autor e, para Manoel, por a palavra a delirar é obriga-la a submeter-se a uma frase, um contexto, no qual ela cumpre uma função inteiramente avessa a seu papel habitual – não como uma metáfora ou figura de linguagem, mas como se estivesse ali por engano já que está despossuída de sentido, lógica ou propriedade usual. Um exemplo do Livro sobre Nada ajuda a compreender do que se trata exatamente o delírio:

Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde.

Um outro caso, extraído dos Arranjos Para Assobios, também facilita:

Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo

sapo ficou teso de flor!

e pulou o silêncio

Tudo o que é dito em sua obra é absolutamente impossível a não ser que se passe no universo do poeta. Mas esse universo não é procedente ou coerente, ele é sensível, absorvível, visível. E é isso que o torna esquizofrênico. A palavra esquizofrênica não tem aqui o sentido clínico ou corriqueiro. Trata-se do conceito deleuziano[ii] de esquizofrenia, isto é, algo que é inteiramente despossuído da lógica do sistema, criando uma lógica original, e por isso extremamente perigosa à ordem, por nos revelar que aquilo que parece natural e evidente não passa de uma construção ideológica. O que faz tudo isso ser mais extraordinário é que esse mundo, o universo do poeta, não é diretamente descrito. Ele não faz relatos sobre ambientes, cores, estruturas de modo compreensível. Aquilo que compreendemos nos atinge na forma de um sentimento que produz uma consciência de um lugar onde aquilo que lemos, ouvimos e sentimos é possível. Luiz Ruffato desvendou Barros, descrevendo sua obra como “sinestésica”. Nos seus versos incognoscíveis sobre qualquer assunto, uma ordem brota. É como se ele nos mostrasse um mundo inquestionavelmente real e sussurrasse, subversivamente: “eu que fiz”, trazendo-nos a verdade sobre nosso mundo: que ele também foi construído por alguém e falsamente apreendido por nós como verdadeiro, nosso e natural. A questão é: como a lírica de Manoel de Barros faz isso?

O que o poeta faz, essencialmente, é nos mostrar como o discurso, a linguagem, mesmo que despropositada e alheia à política (como nos exemplos anteriores citados aqui), constrói uma atmosfera, um ambiente em que, a partir da estética criada, uma ordem é formada – uma noção do que pode e não pode existir. Ou seja, ele nos mostra que um dos meios de estruturação e constituição da ordem é a linguagem, ainda que completamente desconectada de qualquer órgão ou aparelho de ordem e poder. Depois de fazer isso, o poeta infringe todas as regras do nosso linguajar, deturpa e refaz as propriedades das palavras, dando significado ilimitado à linguagem. Importante ressaltar que isso não mostra ou denuncia que ele tem inclinações pós-modernas, ou algum viés de negador de uma verdade, de defensor de relativizações e que tudo não passa de uma criação linguística – como se traísse ou contradissesse seus posicionamentos políticos comunistas, materialistas. Na verdade, ele apenas nos mostra como, para além daquilo que julgamos como certo e definido, existe um âmbito diferente, impensado, justamente porque certos significados são definidos pela ordem. Ele pensa nos horizontes do impossível, exatamente como Alain Badiou, mostrando que o “impossível” é uma determinação, categorização criada com o intuito de cercear os limites da palavra, do discurso, da política.

Não conheço nenhuma outra obra que tenha esse potencial e esse poder. Não se trata de criar um universo fantasioso, como em romances infanto-juvenis ou de produzir metáforas oníricas como os surrealistas[iii], mas de implodir um universo a partir da criação de um outro, sendo o mundo de Barros uma gestação moldada a partir de rearranjos do nosso. Ele nos desorienta com aquilo que nos é familiar e conhecido, trocando as coisas de lugar de tal modo que enxergamos algo que nos transtorna por ser assimilável e inassimilável ao mesmo tempo, conhecido e estranho. Na epígrafe de seu romance O Homem Duplicado, José Saramago, outro materialista brilhante, escolhe palavras que perfeitamente transmitem essa mensagem fundamental de Barros: “o caos é a ordem por decifrar”. Ou seja, a ordem e o caos são compostos pelos mesmos elementos, embaralhados de diferentes modos.

Em tempos de crise da esquerda, podemos aprender muito com Manoel de Barros. Para ele, o impossível não é um horizonte, mas uma fronteira. Não é algo intocável e distante, mas algo criado pelo o homem para definir território. No caso, o território da ordem. Disruptiva e revolucionária, a lírica de Manoel de Barros soterra o poema-denúncia porque oferece uma experiencia de transcendência, um ensinamento que nasce no nosso interior, um afloramento orgânico, e que permite que a ideia cresça de dentro para fora, provendo algo que é ao mesmo tempo universal e único.


[i] Todos os poemas citados aqui foram extraídos da excepcional coleção que a editora Alfaguara tem da obra de Manoel de Barros, e a análise de Luiz Ruffato também vem dessa coleção, está no prefácio de Arranjos para Assobios.

[ii] De Gilles Deleuze

[iii] A proposição de que o Surrealismo é primordialmente um movimento fundamentado nos sonhos é disputada por Adorno em seus ensaio nas Notas de Literatura I, mas a interpretação que o filósofo oferece também em nada se assemelha com aquilo que Manoel de Barros produz.

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2 comentários em “Ensaio sobre o delírio – notas acerca da lírica esquizofrênica de Manoel de Barros”

  1. Caro Júlio,
    Deixo aqui meus sinceros elogios ao texto. De um brilhantismo excepcional, extremamente instigante e com um teor crítico incorrigível. A-rra-sou.
    Acho interessante isso que você colocou de pensar o delírio [aqui me refiro ao Dunker] não como uma crença fora da realidade, mas como uma convicção de que a realidade depende mais de nós mesmos do que dela própria. E, portanto, a importância do caráter delirante das palavras para a criação de um mundo que nos é estranhamente familiar.
    Texto incrível, beibe.

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