Considerações sobre interpassividade e protestos sob o neoliberalismo

Por Rodrigo Gonsalves, via Academia, traduzido por Aukai Leisner

Este é a tradução de um trecho de artigo maior publicado pela CT&T na começo deste ano. Trata-se de uma edição completamente voltada ao desenvolvimento do conceito de interpassividade aprofundado por Robert Pfaller em sua obra de 2017.


Poderia a noção de interpassividade desenvolvida por Pfaller oferecer pistas sobre a política? Como vimos ao longo deste artigo, a interpassividade possui uma certa fundamentação paraconsistente e demanda uma certa tensão da maioria dos fenômenos ou situações a que ela é exposta. No último trabalho de Pfaller, Interpassivity (2017), o autor apresenta novas explicações para algumas das curiosas formulações de seu trabalho anterior, On the Pleasure Principle in Culture (2014) – por exemplo, como a tentativa de resistir aos impulsos anti-culturais pode ser, na verdade, uma forma de concretizar a cultura. Como diz o autor: “A interpassividade é, portanto, a criação de uma solução de compromisso entre os interesses culturais e a aversão à cultura.” (Pfaller 2014: 27). Assim, Pfaller discerne dois níveis de delegação na interpassividade: a delegação do gozo e a delegação da crença (na performance encenada do gozo). É por isso que:

A interpassividade sempre acontece simultaneamente em ambos esses níveis: de um lado, o consumo é delegado a um meio de consumo – por exemplo, a leitura delegada a uma máquina de xerox; por outro lado, a crença na equivalência entre os consumidores e seu meio de consumo indireto também deve ser delegada. O sujeito interpassivo não acredita pessoalmente que ele/ela leu todas aquelas páginas por meio da máquina de xerox; essa crença é transferida para o público virtual do cenário. O gozo delegado, portanto, sempre implica fingir um gozo para uma certa agência observadora, com o auxílio de um meio de consumo e, ao mesmo tempo, confiar a crença nessa ficção àquela agência observadora. Em todo ato de gozo delegado há sempre, ao mesmo tempo, um gozo delegado e uma ilusão delegada. O gozo é delegado a um meio de consumo e a ilusão a uma agência observadora. O prazer “perverso” que aparece em certos casos de interpassividade, como no exemplo descrito por Zizek, parece repousar sobre o caráter duplo dessa renúncia: escapar ao mesmo tempo do gozo e da ilusão do gozo, pela delegação de ambos a outrem, parece ser muito divertido. Primeiro, abandona-se o gozo, depois, a ilusão do gozo – o que aparentemente produz um novo gozo, ainda maior. (Pfaller 2014: 30-32).

Essa duplicidade particular no interior da interpassividade nos fornece insights formidáveis para abordar a psicologia de massas (cf. Pfaller 2017: 205) e, além disso, força nossa atenção sobre uma formação grupal não do ponto de vista da identificação, mas a partir da ideia de delegação. Hoje em dia, há muitas discussões sobre manifestações e protestos, especialmente no atual contexto neoliberal, em que “podemos ver como esse imperativo categórico de nossa cultura conduz a formas bastante afirmativas de políticas pseudo-emancipatórias, e até mesmo à auto-exploração.” (Pfaller 2017:79). Pensemos nos enormes protestos que mais parecem festas de música “rave” (ou qualquer outro show de música), ou manifestações políticas que se assemelham notavelmente a exibições artísticas etc. Considerando o conceito de interpassividade aplicado à psicologia de massas, poderíamos talvez identificar esse particular aspecto do prazer delegado operando também nessas situações.

Imaginemos, por hipótese, um protesto interpassivo: num primeiro nível, as coisas se dariam como se os participantes encenassem uma transformação por meio de um protesto ou manifestação que defendesse formas de política pseudo-emancipatória e ideais de auto-exploração. Nos últimos anos, considerando os protestos pós-2008, muitas bandeiras foram erguidas exatamente em nome disso. Voltando a nosso protesto interpassivo hipotético, podemos ver que num nível objetivo, material, um grupo grande de pessoas está de fato protestando, mas subjetivamente… quem poderá dizer ao certo o que se passa? Como sugere Pfaller: “… muitas práticas da cultura contemporânea vão, de fato, na direção de um “evitar pela encenação” cada vez mais pronunciado, e as dificuldades do pensamento no senso comum são ainda mais conspícuas. O que passa despercebido na teoria goza de crescente popularidade na prática.” (Pfaller 2017: 12). Poderia então esse enorme grupo de pessoas que participa de protestos hoje em dia estar encenando essa política pseudo-emancipatória para impedir que uma mudança real aconteça? Será que essa ação performativa transformou-se numa espécie de evitação por meio da ação, da mesma forma que Zizek entende a função de evitação que o produto exerce em relação a seu consumidor? Se a resposta for afirmativa, o tipo de demanda que ecoa nesses protestos assemelha-se a um modo de sofrimento neurótico obsessivo sob o neoliberalismo. Assim, esse protesto interpassivo se daria como se as demandas dos manifestantes sustentassem (sem sabê-lo) o desejo de manter as coisas como elas estão – e isso através do ato mesmo de luta por mudanças. Essencialmente, a interpassividade nos permite enxergar como manifestações políticas podem na verdade apenas encenar mudanças para sustentar o Outro. Nesse experimento conceitual de conceber um protesto interpassivo, vemos que sua lógica, longe de provocar um nada produtivo a partir do vácuo criado pela aparente suspensão do Outro (algo similar ao discurso histérico, em termos lacanianos), as manifestações interpassivas acabam por encenar a transformação que sustenta o Outro. Como um ritual sintomático, os protestos interpassivos demandam mudanças apenas para manter tudo como está, de forma bastante semelhante à lógica da relação entre neurose obsessiva e o Outro na psicanálise lacaniana.

Nessa extrapolação, um protesto interpassivo se dá pela perpetuação do tipo mais perverso de narcisismo desde o advento da modernidade – trata-se de um “ato” de manutenção das coisas como elas são em que os indivíduos delegam com prazer suas próprias demandas a alguém que de fato acredita que protestos podem mudar algo, uma vez que eles próprios sabem que isso não é possível. E uma vez que o engajamento parece estar fora de questão, já que não há nenhum comprometimento possível para os sujeitos neoliberais, um protesto interpassivo realiza-se por meio da delegação do pensamento político a esse terceiro fantasmagórico, através da prática do protesto. Tal prática interpassiva ilustra bem o pressuposto de que um grupo pode de fato dar voz àqueles que não podem expressar suas demandas – encena-se um ato através de um ato. Considerando os diferentes níveis desse ato interpassivo, especialmente quando ele se torna um “agir como se”, um protesto interpassivo permite que os indivíduos se livrem de seus dilemas intrapsíquicos e sustentem o real do Capital – isto é, que acompanhem o ritmo da economia e sua agenda neoliberal – sem nenhum arranhão. De fato, trata-se aqui de uma mera extrapolação do conceito, mas parece uma formulação interessante, a ser investigada mais a fundo.

Quando Adorno e Horkheimer desenvolveram a noção de indústria cultural (1944), eles descreveram a cultura como uma mercadoria paradoxal. A lei da troca a teria devorado completamente, ao ponto de ela não mais poder ser trocada e, sendo tão cegamente consumida, não mais poder ser usada. Essa tentativa de demonstrar a totalidade do capitalismo indo além das fábricas, mergulhando na realidade da cultura, constatará que não nos restam grandes esperanças. O conceito de interpassividade, porém, fornece uma consideração crítica sobre a cultura que vai além desse primeiro diagnóstico. O problema do capitalismo já está aqui posto, de modo que as velhas respostas utópicas e soluções externas não parecem mais funcionar. Tudo se torna imediatamente ideológico e parece inocente pressupor algo melhor dos mesmos nomes falados. (Pfaller 2017:81). O materialismo filosófico de Zizek fornece as ferramentas necessárias às lutas da pós-modernidade e à construção político-econômica da sociedade sob o paradigma neoliberal. Uma de suas investigações teóricas é a noção de crença no interior do capitalismo, sem a qual a interpassividade não seria tão crucial no nível social.

Como estabelecido previamente, a interpassividade ocorre através da ilusão desse outro inocente ou, em outras palavras, aquele que de fato acredita no conto de fadas smithiano do livre mercado como entidade auto-regulatória, de modo que a dívida da riqueza virtualizada, tão cara aos keynesianos, jamais seja cobrada. Esse elemento fantasmagórico sustenta, para o sujeito interpassivo, a estranha ilusão da economia propagada pela ideologia neoliberal. Essa estranheza do capitalismo é capturada com precisão pelo conceito de interpassividade. Na obra mais notável de Mark Fisher, Capitalist realism: is there no alternative? (2009), o autor articula a ideia de interpassividade ao filme da Disney Wall- E (2008), mostrando que o filme “encena para nós nosso anti-capitalismo, permitindo que continuemos a consumir impunemente. O papel da ideologia capitalista não é tentar vender uma ideia, à moda da publicidade, mas esconder o fato de que as operações do capital não dependem de nenhuma forma de crença subjetivamente assumida. (Fisher 2009:13).Tomando emprestada a leitura de Fisher da interpassividade operante naquele filme, podemos compreender a relevância de tal conceito para explicar o mecanismo principal do realismo capitalista. Para Fisher, a ideia de super-identificação com o capital e a possibilidade de consumir sua própria crítica parecem ser o mecanismo por excelência da interpassividade. Esse entendimento é corroborado por Pfaller, especialmente em suas passagens sobre o extremo narcisismo reinante na contemporaneidade, o aspecto pseudo-transformador da política de afirmação e a defesa dos indivíduos de sua própria exploração. (Pfaller 2017: 79)

Além disso, a interpassividade explica o papel da crença no interior do capitalismo e, consequentemente, do cinismo. A teorização zizekiana da crença (cf. Žižek 2009a: 93: 206) no capitalismo é um solo comum entre Pfaller (cf. Pfaller 2017: 38-40)) e Fisher (cf. Fisher 2008: 13: 15: 78). A interpassividade traduz o gesto performativo do sujeito neoliberal, que “.. acredita que o dinheiro é apenas um símbolo despido de sentido, sem nenhum valor intrínseco, mas age como se ele detivesse um valor sagrado.” (Fisher 2008: 13) Assim, o valor crítico da interpassividade como ferramenta teórica liga-se a essa habilidade de identificar o papel da crença e do cinismo – trata-se de uma ferramenta que pode e deve ser usado desde o interior, ao invés de ser meramente um experimento de pensamento exterior. Como elabora Fisher:

“Para reaver uma real agência política, devemos primeiramente aceitar nossa inserção ao nível do desejo no impiedoso moedor de carne do Capital. O que se está renegando ao se projetar a abjeção do mal e a ignorância sobre um Outro fantasmático é nossa própria cumplicidade nas redes planetárias de opressão. O que precisamos ter em mente é que o capitalismo é, ao mesmo tempo, uma estrutura impessoal hiper-abstrata e que não seria nada sem nossa cooperação. A descrição mais gótica do capitalismo é também a mais acertada. O Capital é um parasita abstrato, um vampiro insaciável e um produtor de zumbis, mas a carne viva que ele transforma em trabalho morto é a nossa, e os zumbis que ele produz somos nós. Em certo sentido, as elites políticas são de fato nossos servos: o serviço miserável que nos fornecem é lavar nossa libido e reapresentar-nos obsequiosamente nossos desejos renegados como se não nos dissessem respeito. (Fisher 2008, p.15)”

A interpassividade é uma ferramenta crítica necessária para entender o realismo capitalista e o paradigma neoliberal de sociedade. As tensões culturais e políticas são forçadas, pela interpassividade, a entrar em colapso sozinhas, e o sofrimento humano é extimo, par excellence. Assim, a dicotomia filosófica clássica entre interno e externo não é capaz de traduzir os fenômenos interpassivos. A duplicidade no interior da interpassividade, sua lógica conceitual êxtima, permitem que ela seja uma ferramenta adequada para o diagnóstico das ilusões sem dono que cercam nossa realidade. Em termos políticos e sociais, portanto, a velha e inocente ideia de um elemento externo que chegaria para transformar a realidade não funciona mais. A fidelidade, o engajamento e compromisso são mercadorias raras no neoliberalismo. É por isso que o diagnóstico de Fisher parece tão pessimista: “Sem uma alternativa crível e coerente ao capitalismo, o realismo capitalista continuará a governar o inconsciente político-econômico.” (Fisher 2009: 78). É no campo do inconsciente econômico-político que essa batalha é perdida e as sugestões de mudança são repetições sintomáticas pseudo-emancipatórias. A interpassividade, por outro lado, força passagem em nosso modo de existência zumbi pós-2008, buscando uma alternativa viável. A interpassividade foca na semelhança estéril (morta-viva) dos comportamentos sociaIs, enfocando os gestos vazios e clamando pela ressignificação dessas práticas.

Talvez o exame da interpassividade no domínio da política nos permitirá uma melhor compreensão de repetições sintomáticas históricas, forçando-nos à consideração das ilusões que participam dessa equação e, assim, nos apontará uma saída. Uma alternativa crível e consistente para o inconsciente político-econômico ora governado pelo real do Capital poderá quiçá emergir de uma análise crítica da interpassividade que aponte para uma ressignificação das velhas respostas utópicas e das práticas delas derivadas, buscando uma prática teórica que compreenda a realidade sem ignorar ou negligenciar o papel das ilusões, levando em consideração seu valor para as ações interpassivas dos sujeitos sob o neoliberalismo.

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