Comentários de Marx a “Estatismo e Anarquia” de Bakunin

Por Karl Marx, via marxists.org, traduzido por Gabriel Landi Fazzio

Entre abril de 1874 e janeiro de 1875, Marx copiou em um caderno, em russo, extensos extratos do livro de Bakunin, inserindo seus comentários conforme reproduzido abaixo. Os comentários entre colchetes são do próprio Marx.Aos excertos em inglês reproduzidos na fonte pude fazer alguns breves acréscimos, traduzidos com muita dificuldade, (mesmo com os recursos digitais) da versão alemã. Essas poucas palavras do “velho Marx”, contudo, permanecem dignas de estudo, uma vez que situam muito bem sua madura concepção da ditadura do proletariado, em polêmica viva com o anarquismo russo.


“Já declaramos nossa profunda oposição à teoria de Lassalle e Marx, que recomenda aos trabalhadores, se não como ideal final, ao menos como o próximo grande objetivo – a fundação de um Estado popular, que, como eles o expressaram, não será senão o proletariado organizado como classe dominante. Surge a pergunta: se o proletariado se torna a classe dominante, sobre quem ele governará? Isso significa que ainda haverá outro proletariado, que estará sujeito a essa nova dominação, esse novo estado.”

Isso significa que, enquanto as outras classes, especialmente a classe capitalista, ainda existirem, enquanto o proletariado lutar com ela (pois, quando este alcança o poder de governo, seus inimigos e a velha organização da sociedade ainda não desapareceram), ele deve empregar meios coercitivos, portanto, meios governamentais. Ele próprio ainda é uma classe, e as condições econômicas de que derivam a luta de classes e a existência das classes ainda não desapareceram e devem ser coercitivamente removidas do caminho ou transformadas, sendo esse processo de transformação forçadamente apressada.

“Por exemplo: o krestyanskaya chern, o povo camponês comum, a multidão camponesa que, como é bem conhecido, não goza da boa vontade dos marxistas e que, estando como está, no nível mais baixo da cultura, será aparentemente governado pelo proletariado fabril urbano.”

Isto é, onde o camponês existe na massa como proprietário privado, onde ele até forma uma maioria mais ou menos considerável, como em todos os estados do continente europeu ocidental, onde ele não desapareceu e foi substituído pelo trabalhador assalariado agrícola, como na Inglaterra, os seguintes casos se aplicam: ou ele dificulta cada revolução proletária, causa sua ruína, como ele anteriormente fez na França; ou o proletariado (pois o proprietário camponês não pertence ao proletariado, e mesmo onde sua condição é proletária, ele acredita que ele próprio não seja) deve, como governo, tomar medidas através das quais o camponês encontre sua condição imediatamente melhorada, de modo a conquistá-lo para a revolução; medidas que irão, ao menos, oferecer a possibilidade de facilitar a transição da propriedade privada da terra para a propriedade coletiva, de modo que o camponês chegue a isto por sua própria vontade, por razões econômicas. Não deve bater sobre a cabeça do camponês, como seria, por exemplo, proclamando a abolição do direito de herança ou a abolição de sua propriedade. Esta última só é possível quando o agricultor arrendatário capitalista expropriou os camponeses, e onde o verdadeiro cultivador é perfeitamente um proletário, um trabalhador assalariado, como é o trabalhador da cidade, e assim tem imediatamente, não apenas indiretamente, os mesmos interesses que ele. Muito menos deve ser fortalecida a pequena propriedade, pela ampliação dos loteamentos camponesa simplesmente através da anexação camponesa das grandes propriedades, como na campanha revolucionária de Bakunin.

“Ou, se considerarmos esta questão do ponto de vista nacional, assumiríamos pela mesma razão que, no que diz respeito aos alemães, os eslavos permanecerão na mesma dependência servil em relação ao proletariado alemão vitorioso que o atual tem presenete em relação a sua própria burguesia.”

Estupidez de estudante! Uma revolução social radical depende de certas condições históricas definidas do desenvolvimento econômico como suas precondições. Também só é possível onde, com a produção capitalista, o proletariado industrial ocupa pelo menos uma posição importante entre a massa do povo. E para ter alguma chance de vitória, deve ser capaz de fazer o mesmo tanto para os camponeses quanto a burguesia francesa, mutatis mutandis, fez em sua revolução pelos camponeses franceses da época. Uma bela ideia, essa de que o domínio do trabalho envolve a subjugação do trabalho da terra! Mas aqui os pensamentos mais íntimos do Sr. Bakunin emergem. Ele não entende absolutamente nada sobre a revolução social, apenas suas frases políticas. Suas condições econômicas não existem para ele. Como todas as formas econômicas até então existentes, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, envolvem a escravização do trabalhador (seja na forma de trabalhador assalariado, camponês etc.), ele acredita que uma revolução radical é possível em todas essas formas do mesmo modo. Ainda mais! Ele quer que a revolução social europeia, cuja premissa é a base econômica da produção capitalista, aconteça no nível dos povos agrícolas e pastorais russos ou eslavos, para não ultrapassar esse nível, ainda que reconheça que a navegação marítima forme diferenças entre irmãos. Porém, apenas a navegação marítima, porque essa é uma diferença conhecida por todos os políticos! [1] A vontade, e não as condições econômicas, é o alicerce de sua revolução social.

“Se existe um estado [gosudarstvo], então há inevitavelmente dominação [gospodstvo] e, consequentemente, escravidão. Dominação sem escravidão, aberta ou velada, é impensável – é por isso que somos inimigos do estado.

O que significa o proletariado organizado como classe dominante?”

Significa que o proletariado, em vez de lutar seccionalmente contra a classe economicamente privilegiada, alcançou força e organização suficientes para empregar meios gerais de coerção nessa luta. No entanto, ele só pode usar tais meios econômicos conquanto abole seu próprio caráter como assalariado, portanto, como classe. Com sua vitória completa seu próprio domínio, portanto, termina, pois seu caráter de classe desapareceu.

“Estará o proletariado inteiro, talvez, à frente do governo?”

Em um sindicato, por exemplo, todos os membros do sindicato formam seu comitê executivo? Toda a divisão do trabalho na fábrica e as várias funções que correspondem a isso cessarão? E na constituição de Bakunin, todos “de baixo para cima” estarão “em cima”? Então certamente não haverá ninguém “no fundo”. Todos os membros da comuna administrarão simultaneamente os interesses de seu território? Então não haverá distinção entre comuna e território.

“Os alemães são cerca de quarenta milhões. Por exemplo, todos os quarenta milhões serão membros do governo?”

Seguramente! Uma vez que a questão começa com o auto-governo da comunidade.

“Todo o povo governará e não haverá governado.”

Se um humano domina a si mesmo, não o faz com base nesse princípio, pois ele é, afinal, ele mesmo e não outro.

“Então não haverá governo nem estado, mas se houver um estado, haverá governadores e escravos.”

Isto é, somente se a dominação de classe desapareceu, e não há estado no atual sentido político.

“Esse dilema é resolvido de modo simples na teoria dos marxistas. Por governo popular eles compreendem [ou seja, Bakunin] o governo do povo por meio de um pequeno número de líderes, escolhidos [eleitos] pelo povo.”

Asneira! Isso é baboseira democrática, imbecilidade política. A eleição é uma forma política presente na menor comuna e artel russo. O caráter da eleição não depende deste nome, mas da base econômica, da situação econômica dos eleitores e, assim que as funções deixaram de ser políticas, existe 1) nenhuma função de governo, 2) a distribuição das funções gerais tornou-se um assunto de negócios, que não dá uma domínio, 3) a eleição não tem nada do seu caráter político atual.

“O sufrágio universal de todo o povo…”

Uma tal coisa como todo o povo no sentido atual é um fantasma, uma quimera.

“Na eleição dos representantes populares e dos ‘governantes do estado,’ – esta é a última palavra dos marxistas, como também da escola democrática – há uma mentira, atrás da qual está oculto o despotismo da minoria governante, e somente mais perigosamente, na medida em que aparece como expressão da chamada vontade do povo”.

Com a propriedade coletiva a assim chamada vontade do povo desaparece para abrir caminho para a vontade real da cooperativa.

“Então o resultado é: orientação da grande maioria do povo por uma minoria privilegiada. Mas essa minoria, dizem os marxistas, […]”

Onde?

“… consistirá de trabalhadores. Certamente, com a sua permissão, de ex-trabalhadores, que, no entanto, tão logo se tornaram representantes ou governadores do povo, deixam de ser trabalhadores […]”

Tão pouco quanto um dono de fábrica hoje deixa de ser capitalista se tornar-se conselheiro municipal…

“[…] e passam a menosprezar todo o mundo dos trabalhadores comuns, do alto de sua posição no estado. Eles não mais representarão o povo, mas a si mesmos e suas pretensões ao governo do povo. Qualquer um que possa duvidar disso não sabe nada da natureza dos homens”.

Se o Sr. Bakunin soubesse apenas algo sobre a posição de um gerente numa fábrica cooperativa de trabalhadores, todos os seus sonhos de dominação iriam ao diabo. Ele deveria ter se perguntado qual a forma que a função administrativa pode assumir com base nesse estado dos trabalhadores, se ele quiser chamá-lo assim.

“Mas os eleitos serão fervorosamente convencidos e, portanto, educados socialistas. A frase ‘socialismo educado’ […]”

Nunca foi usada.

“… ‘socialismo científico’ […]”

Usada apenas em oposição ao socialismo utópico, que quer atar o povo a novas ilusões, em vez de limitar sua ciência ao conhecimento do movimento social feito pelo próprio povo; veja meu texto contra Proudhon.

“[…] que é incessantemente encontrada nas obras e discursos dos lassalistas e marxistas, ela mesmo indica que o assim chamado estado popular será nada mais que a própria orientação despótica da massa do povo por uma aristocracia nova e numericamente muito pequena de estudiosos genuínos ou supostos. As pessoas não são científicas, o que significa que serão totalmente libertadas dos cuidados do governo, elas ficarão inteiramente caladas no estábulo dos governados. Uma boa libertação!

Os marxistas sentem essa [!] contradição e, sabendo que o governo dos educados [que fantasia] será o mais opressivo, detestável, mais desprezado do mundo, uma verdadeira ditadura, apesar de todas as formas democráticas, consola-se com o pensamento de que esta ditadura será apenas transitória e curta”.

Não, meu caro! Que o domínio de classe dos trabalhadores sobre os estratos do velho mundo os quais eles estão combatendo só pode existir enquanto a base econômica da existência de classe não for destruída.

“Eles dizem que sua única preocupação e objetivo é educar e elevar as pessoas [políticos de salão!] economicamente e politicamente, a tal ponto que todo o governo será completamente inútil e o Estado perderá todo o caráter político, isto é, o caráter de dominação, e vai mudar por si só em uma organização livre de interesses econômicos e comunas. Uma contradição óbvia. Se o seu estado for realmente popular, por que não destruí-lo, e se a sua destruição é necessária para a verdadeira libertação do povo, por que se arriscam a chamá-lo de popular?”

A parte da insistência do Estado popular de Liebknecht, que é um absurdo, contrário ao Manifesto Comunista etc., significa apenas que, como o proletariado ainda age, durante o período de luta pela derrubada da velha sociedade, com base naquela velha sociedade e, portanto, também ainda se move dentro de formas políticas que mais ou menos lhe pertencem, ainda não alcançou, durante esse período de luta, sua constituição final e emprega meios para sua libertação que, após essa liberação, deixa de lado. O Sr. Bakunin conclui daí que é melhor não fazer absolutamente nada… apenas esperar pelo dia da liquidação geral – o juízo final.

“Através de nossa polêmica [a qual, obviamente, surgiu antes de meu escrito contra Proudhon e do Manifesto do Partido Comunista e mesmo também antes de Saint-Simon] contra os marxistas, [que bela confusão temporal do precedente com o seguinte!] levamos à sua confissão de que liberdade ou anarquia [o Sr. Bakunin traduziu apenas a anarquia de Proudhon e de Stirner em língua tártara desordenada] isto é, a livre organização das massas trabalhadoras de baixo para cima [que bobagem!] é o objetivo final do desenvolvimento social, sendo todo e qualquer ‘Estado’ – incluindo-se o Estado do Povo – nada senão opressão: por um lado, despotismo, por outro, escravidão.” (p. 280)

“Os marxistas dizem que esse jugo dominante, a ditadura, é um meio necessário de transição ao atingimento da mais plena libertação popular: a anarquia ou a liberdade é o objetivo, a dominação ou a ditadura é o meio. Assim, para a libertação das massas populares é necessário, em primeiro lugar, mantê-las na escravidão. Sobre essa contradição é que se assenta a nossa polêmica. Os marxistas garantem que apenas a ditadura – a ditadura deles, finalmente – pode criar a liberdade do povo. Respondemos dizendo que nenhuma ditadura pode ter um outro objetivo senão o de ‘se eternizar’ e produzindo e reproduzindo a escravidão nas pessoas que a toleram. A liberdade pode ser obtida apenas através da liberdade, [a liberdade do citoyen permanente, isto é, a liberdade do cidadão Bakunin] isto é, através da ‘insurreição de todo o povo’ e da livre organização das massas de baixo para cima”. (p.281)

“Enquanto a teoria político-social dos socialistas anti-estado ou anarquistas conduz ‘firmemente’ e diretamente à mais plena ruptura com todos os governos, com todos os tipos de política burguesa, não deixando nenhuma outra saída, a não ser a revolução social, […]”

Não deixando nada à revolução social senão a frase.

“[…] a teoria oposta, isto é, a teoria do comunismo de estado e da autoridade científica arrasta e envolve seus adeptos, também ‘firmemente’, nas intermináveis ‘negociatas’ com os governos e com os múltiplos partidos políticos burgueses, com o emprego da tática política, isto é, empurra-os diretamente rumo às posições reacionárias.” (p. 281)


[1] A esse respeito, em um momento anterior do texto, Marx afirma:

“Essa é a questão principal para o Sr. Bakunin: o nivelamento, por exemplo, nivelar toda a Europa na base do comerciante eslovaco de ratoeiras.

‘Por ora, a navegação marítima permanece sendo o principal meio para o bem-estar público dos povos [grande progresso em relação à ‘prosperidade dos povos’!].

Eis aí o único ponto em que o Sr. Bakunin fala sobre condições econômicas e reconhece que estas instituem as bases das diferenças de condições e independência dos povos.”

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2 comentários em “Comentários de Marx a “Estatismo e Anarquia” de Bakunin”

  1. Parabéns ao LP pela publicação da “polêmica” entre Bakunin e Marx, tendo como foco os comentários de Marx de “Estatismo e Anarquia” de Bakunin.De fato, esse texto produziu sérios efeitos na disputa entre duas correntes do socialismo no movimento operário internacional.

    Tendo isso em vista, Marx escreve a “Crítica ao programa de Gotha” para responder as críticas de Bakunin em relação à concepção de revolução (ou de reforma, pra ser mais exato) proposta pelo Partido social democrata alemão. Além da concepção de Estado popular (ou Estado Vermelho), outro fator importante da crítica de Bakunin a Marx diz respeito ao “pangermanismo” e seu “primo-irmão”, o “paneslavismo”. Sem esse paralelo, não se pode compreender as implicações do “Estado Popular” alemão proposta pelo Programa de Gotha e sua aliança (tácita) com o regime de Bismarck, ligado-os pelo bandeira do pan-germanismo. .

    Acima de tudo, o livro de Bakunin é um livro de geopolítica que analisa os conflitos entre Estados europeus e as insurreições populares, tecendo duras críticas à estratégia política do marxismo que logo se confirmaram com a centralização burocrática das revoluções populares em vários países. A burocracia operária (e sua ditadura do proletariado) e o Estado vermelho se fizeram realidade, juntamente com as implicações expostas por Bakunin nesse texto.

    Seria uma bela contribuição à luta de classes retomar as publicações de Bakunin e Marx em mesmo volume, para que o leitor possa apreender esse debate de maneira mais ampla.

    Saudações ao LP.

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