Constituição é o nome de quê?

Por Luis Eduardo Gomes do Nascimento

A constituição não é um significante primeiro, mas deve ser considerada como tal na medida em que instaura um campo de ações linguísticas possíveis. Aqui já se aponta para o caráter performático da constituição. A perfomatividade não pode ser confundida com um gesto vazio, mas como abertura de mundos possíveis. A constituição, como livro, para usar Caetano, permite ‘lançar mundos no mundo”.


A constituição não se reduz a uma forma lógica desprovidada de materialidade. Há muito se tenta equacionar a relação entre normalidade e normatividade. Se toda normatividade implica na criação de esquemas e categorias, no rastro delas, está a constância de certos fatos, portadores da normatividade. A normatividade ancora-se na faticidade. Essa relação transporta-se para dentro da normatividade que, imbuída da faticidade, não se mumifica numa racionalidade abstrata e a si, num céu de conceitos a priori, nem também se dispersa a ponto de uma facticidade qualquer ou construída falaciosamente possa corroer a tessitura textual e intertextual do direito.

A faticidade juridicamente relevante é aquela que a normatividade agasalha, não uma suposta opinião publicada por órgãos de imprensa comprometidos com as classes dominantes. A dialética entre norma e fato não deve ser operacionalizada para que haja uma corrosão do texto nem para produzir uma normatização apócrifa dos fatos, como diz Müller, mas, para permitir que o trabalho do texto, que se dá no insterstício do sujeito e do objeto, se produza superando os obstáculos hermenêuticos numa espiral interpretativa voltada à produção de sentidos partilháveis no comum.(1)

A constituição como evento se revela como poesia, isto é, como indicação não de um dado naturalizado, mas como abertura a mundos possíveis. A constituição, como ato simbólico, é a tentativa de superar contradições, por isso, não se enrijece em significados fixos nem se dispersa em sentidos frouxos, mas abre um campo analógico em que a luta pelos sentidos se produz.

Manter acessa a gênese da constituição é crucial para preservação do sentido literal possível. Na medida em que o texto se produziu no trabalho coletivo e social, nele mesmo, na sua visibilidade mesma, está presente a luta de várias gerações, lutas tingidas de sofrimentos intensos, de gritos e martírios do povo, das ‘raças’ lançadas em zonas de não ser. Como ler a constituição sem ver no seu rastro as expectativas frustradas dos povos negros e indígenas? A constituição não encobre o outro, mas, por força da instauração de uma discordância concórdia, permite que o outro negado mostre seu rosto histórico. É o seu sentido. Não obstante, a colonialidade do poder impede que a constituição seja, como diz um escritor edificante, um novo começo. De que começo se trata? Existe um começo? Como falar de começo sem atentar para uma tradição fundada na exceção e na violência? Como falar de começo sem atentar para a necessidade de remover os obstáculos hermenêuticos ao fazer da Constituição?

Na modernidade periférica, fendida em espaço de ser e espaço de não-ser, a igualdade, mesmo a formal, não se concretiza, e uma antinomia gritante se apresenta: a declaração formal de igualdade e práticas violentas de exclusão territorial, física e simbólica. Eis uma antinomia que mostra o nosso começo: nos territórios nutridos pela mais-valia, a lei; nos territórios explorados, a violência mais bruta.

A colonialidade, diz Fanon, compartimenta o espaço, grava os seres de acordo com a cor da pele, submete-os a uma exclusão perversa e não demonstra racionalidade: é um exercício de poder no estado bruto.

É preciso retomar com vigor a ideia de Müller de que a textificação é faca de dois gumes que pode ser canalizada tanto para a colonização dos sentidos quanto para construção correta dos sentidos sempre aberta à alteridade. Como interpretar o enunciado de Muller de que os textos se vingam? Invocamos aqui Engels, discípulo fiel de Hegel, que, no Anti-Durign, afirma: “Os proletários colhem a burguesia pela palavra: é preciso que a igualdade exista não só na aparência, que não se circunscreva à orbita do Estado, mas que tome corpo e realidade, fazendo-se extensiva a vida social e econômica.” (2)

Colher a constituição pela palavra significa estabelecer uma relação dialética entre experimentação e interpretação: instaurar, lembrando André Jean-Arnaud, uma prática jurídica social entendida como a ‘’atividade social que, quando confrontada ao processo de produção material e ao princípio de luta de classes, procura transformar as relações sociais regidas pelo direito em vigor.”(3)

Se a colonialidade se opõe à emergência do trabalho do texto enquanto instância que se exprime para além do subjetivismo e do objetivismo, devemos repetir o gesto de Espinosa. No tratado teológico-político, diante da apropriação privada da interpretação bíblica, instaura um conflito de interpretação (4) ao criar um método que permita a qualquer um encontrar, no trabalho do texto, o falar comum em que se estriba a produção dos sentidos.

O processo de interpretação e o processo de controle da aplicação do direito não pode ser limitado às instâncias de poder que, não raro, desgarram-se da razão comum e necessária, sobrecodificam sentidos hegemônicos sobre o texto.

Neste cruzamento, o direito é interpelado pela política. No Brasil, é preciso, mais do nunca, insistir na distinção, desenvolvida com Jacques Ranciere, entre poder e política. Existem duas formas de contar a comunidade. A primeira só conta os grupos construídos e erigidos por diferenças de nascimento, raça e gênero, e de funções e lugares que constituem o corpo social. A segunda envolve a parte de parte alguma, a inscrição política dos não contados (5). O poder colonial é uma engrenagem do primeiro tipo. Nessa lógica, os lugares estão previamente determinados pela ascendência de forma que toda a institucionalidade é parasitada, vergando-se aos interesses das classes dominantes.

Para superar isso, somente colhendo a constituição pela palavra, isto é, pela torção político-hermenêutica que coloque o comum acima da branquidão como propriedade.


  1. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2013. É preciso entender a normatização apócrifa em sentido mais amplo do que proposto por Müller. No processo penal, a apropriação privada da linguagem permite que fatos atípicos sejam qualificados como típicos, isto é, permite a normatização apócrifa dos fatos. Daí a importância crucial da epistemologia da prova. Sobre esta espinhosa questão consultar: PRADO, Geraldo. Prova Penal e sistema de controle epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Trata-se de obra seminal, de palmar importância.
  2. ENGELS, Friedrich. Anti-duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 89
  3. ARNAUD, André-Jean. O direito traído pela filosofia. Porte Alegre: SAFE, 1991, p. 163.
  4. Sobre o conflito de interpretação consultar: NASCIMENTO, Luis Eduardo Gomes do. As antinomias do direito na modernidade periférica. Paulo Afonso: SABEH, 2018. Nesse livro, dentre tantas novidades, inaugura-se, no Brasil, a hermenêutica jurídica analógica como forma de combater a afasia linguística que nos assola hoje.
  5. RANCIÈRE, Jacques. Nas margens do político. Lisboa: KKYM, 2014, 146-7.

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