Althusser e o jovem Marx

Por Pierre Macherey, via ViewPoint Magazine, traduzido por Aukai Leisner

“Sobre o Jovem Marx”, datado de novembro de 1960, apareceu pela primeira vez na edição de março/abril de La Pensée, sendo em seguida publicado em For Marx. O pano de fundo de sua redação foi o lançamento de uma edição especial da Recherches Internationales sobre o tópico do Jovem Marx, que reuniu estudos de acadêmicos marxistas sobre o tema, quase todos eles oriundos da Europa oriental.(1)Trata-se do primeiro texto importante de Althusser, com a exceção do pequeno livro sobre Montesquieu publicado no ano anterior, e caiu como uma verdadeira bomba sobre o meio intelectual da época. Neste texto é possível discernir as linhas gerais de uma orientação de pensamento, formando um ponto de partida para todas as abordagens futuras de Althusser.


O subtítulo que Althusser escolheu para este artigo, “Questões de Teoria”, joga abertamente com o título da longa introdução que Sartre escreveu para seu Crítica da Razão Dialética, “Questões de Método”, lançado no mesmo ano e publicado separadamente em Les Temps Modernes.(2) Imediatamente, dirige-se a atenção do leitor aos pontos fundamentais do estudo: ele não diz respeito a uma questão particular na história da ideias, mas avança toda uma concepção de trabalho “filosófico”, rebatizado sob o nome de “teoria” – a concepção de que Althusser continuaria a praticar no que ele escreveria, sem dúvida alterando algumas modalidades de sua implementação, mas sem perder de vista os pontos ali expressos.

O artigo de Althusser, dividido em três partes, aborda os problemas colocados pelas obras do Jovem Marx em suas dimensões “política”, teórica” e “histórica”.

A dimensão política do problema é que as obras do Jovem Marx – por definição anteriores ao seus textos de maturidade – foram redescobertas depois que o filósofo alemão já havia sido amplamente disseminado e estudado, constituindo assim uma oportunidade para uma empreitada “revisionista” à la lettre: isto é, a tentativa de reavaliar o significado de todo o pensamento marxista à luz desses primeiros escritos, que em sua maioria permaneceram desconhecidos até o século XX, com a exceção das Teses sobre Feuerbach, exumadas por Engels após a morte de Marx e apresentadas como “o gérmen brilhante da visão de um novo mundo.” Althusser resume o espírito dessa empreitada revisionista: “O Capital é uma teoria ética, cuja filosofia silenciosa é abertamente discutida nos Textos da Juventude de Marx.”(3) Aqui o caminho foi iluminado por aqueles que se tornaram os ardentes defensores da figura até então ignorada do Jovem Marx, “através da qual a Verdade falava”; enquanto no Marx tardio tal figura seria destruída, ou ao menos expressa de forma muda, acompanhando seus postulados explícitos com um silêncio ensurdecedor. Aqui também, surgiu o debate sobre a questão de saber quem era o “verdadeiro” Marx: entre a ortodoxia, rigidamente encampada sobre bases doutrinárias e os “revisionistas” de várias estirpes, concordando entre si apenas sobre a necessidade de remontar essa doutrina a suas fontes, e assim contrariar sua versão oficial, a fim de recobrar sua força e autenticidade.

Com o debate posto nestes termos, Althusser se deleita em afirmar que os teóricos ortodoxos – que adotaram uma atitude puramente defensiva, vociferando contra os hereges “revisionistas” – foram pegos completamente de surpresa, respondendo de forma claramente reacionária, animados por um “medo devoto”, como diz Althusser. De todo modo, deve-se lembrar que essa ortodoxia é responsável pela longa negligência em relação ao pensamento do Jovem Marx, e que cabia a eles redescobri-lo, com o auxílio dos trabalhos pioneiros de Franz Mehring ou, mais recentemente, de Auguste Cornu, estando assim presos numa armadilha que eles mesmos criaram à sua própria revelia. As virtudes usurpadas nas quais se veste a ortodoxia têm, como seu reverso, o crime da ignorância; uma ignorância crassa peculiar a um certo marxismo francês do pós-guerra, que buscava rapidamente tapar os buracos praticando o que Althusser chama – retomando uma fórmula de Adam Schaff, que também justificava, com certo um grau de inocência, essa abordagem – de uma leitura no “futuro anterior” dessas constrangedoras obras da juventude de Marx, praticadas em nome do “tribunal do marxismo plenamente desenvolvido”, de modo a forçar sua interpretação a caber na doutrina já estabelecida e supostamente incluída na soberana autoridade do tribunal.(4) Essa abordagem revela, ademais, uma profunda dificuldade de considerar o pensamento marxista como não tendo caído do céu de forma acabada: uma dificuldade que equivale ao mais puro idealismo.

Isso leva a um exame da segunda dimensão do problema, sua dimensão teórica, uma vez que, como escreve Althusser: “Mesmo quando trata-se de defender-se, não pode haver boa política sem uma boa teoria.”(5) Não é suficiente, na verdade, adotar um linha política “correta” para saber, no sentido específico do termo, como ler os textos do Jovem Marx – textos teóricos que, como tais, pedem uma leitura teórica. No entanto, a defensiva política no interior da operação “Jovem Marx” improvisada pelos guardiões da ortodoxia não é totalmente despida de fundamentos teóricos; na verdade, deve-se dizer que ela repousa sobre bases extremamente frágeis, tanto mais contestáveis por permanecerem implícitas. O pano de fundo dessa abordagem defensiva é uma concepção imatura de teoria, reduzida a uma doutrina tornada artificialmente autônoma e apartada da realidade. Essa era a condição para assumir a posição teoricamente indefensável – apesar de politicamente correta – de um “Marx total,” isto é, um Marx cujo pensamento constitui uma totalidade homogênea, auto-suficiente e indivisível, a ser aceita ou rejeitada en bloc. Althusser explica que essa maneira de entender o pensamento marxista reflete dois pressupostos – um analítico e outro teleológico. Ambos têm, como pré-condição, seu próprio pressuposto, que “considera a história das ideias como seu próprio elemento, postulando que nada acontece que não seja um produto da própria história das ideias e que o mundo da ideologia é seu próprio princípio de inteligibilidade.”(6) No entanto, essa presunção de uma “auto-inteligibilidade da ideologia” não repousa sobre outra fundação que não a recusa de reconhecer o que poderíamos chamar de o status prático-material da teoria, marcado por uma historicidade que escapa a uma tendência interna à história das ideias.

Althusser opõe a tal abordagem uma concepção que ele viria a enfatizar cada vez mais, antes de apresentá-la finalmente como “tese”: a recusa a reduzir a teoria marxista – como parecia natural e como Engels o fez pela primeira vez, com propósitos propagandísticos – a uma “visão de mundo”, isto é, a ideias, a uma perspectiva inevitavelmente idealista sobre a realidade; uma perspectiva autônoma em relação à ordem do real, recobrindo-o à maneira do que normalmente chamamos de uma “visão”. Se a teoria de Marx é revolucionária, isto é, engajada no movimento de transformação do mundo, é precisamente porque não pode ser reduzida a uma “visão”, independentemente do quão visionária; sua teoria não pode ser reduzida a um conjunto de ideias sobre o mundo ou sobre o que mundo diz de si mesmo – trata-se simplesmente de uma parte do mundo sobre o qual reflete, não na forma de uma doutrina acabada, mas de um “work-in-progress”, o resultado de um trabalho teórico. Esse trabalho teórico é indispensável se a teoria pretende transformar o mundo imprimindo-lhe sua marca.

Ao fim e ao cabo, foi sobretudo a representação de um marxismo eterno, aderindo rigidamente a uma doutrina singular e unificada, que teve que ser desafiada pela restauração desse processo, com toda a densidade de sua complexa textura, marcado pelas contingências da história real a que desde sempre pertenceu. Ao mesmo tempo, um outro argumento passou a tomar corpo: que o que se costuma chamar de marxismo não seria, em última instância, nada mais que um campo aberto de debate, cuja “teoria” estaria aberta a uma contínua reconfiguração. O fechamento desse debate condenaria o marxismo ao desaparecimento; o que é especificamente “teórico” para o marxismo não tem a ver com a pura teoria, mas sim com o permanente trabalho de produção, reprodução e transformação da teoria – que não seria de fato teoria ou teoria real, prático material, se fosse expurgada definitiva, quase miraculosamente, de suas impurezas. De modo que Althusser não estava propondo, como se acreditava então, a construção de uma nova ortodoxia baseada em seu próprio conceito de teoria; em vez disso, ele acreditava que sua teoria poderia servir como um instrumento crítico para a destruição de todas as ortodoxias, onde quer que surgissem e quaisquer que fossem suas motivações ou argumentos de que lançassem mão como prova de sua auto-inteligibilidade.

No artigo sobre o Jovem Marx, o primeiro alvo dessa perspectiva crítica é a teleologia; o real ponto de partida da abordagem de Althusser está localizado em sua interrogação dos pressupostos teleológicos. Ademais, isso permite um melhor entendimento do porquê Spinoza – introduzido ao final do artigo como a única verdadeira alternativa a Hegel, numa nota de rodapé sobre o processo de Aufhebung, ou “suprassunção”, onde se afirma a necessidade de a ciência romper com a ideologia – é uma referência filosófica essencial para Althusser, sempre presente em seu trabalho teórico.(7) Uma leitura dos textos de Marx no futuro anterior, buscando neles antecipações do Marx maduro – supostamente o Marx verdadeiro, a verdade de tudo o que leva a assinatura de Marx – torna esses escritos vetores ou canais de um destino: um itinerário que avança por etapas e deverá conduzir finalmente ao desvendamento de uma figura totalmente acabada, da qual aquelas seriam não mais do que esboços imaturos, como um “significado em suspensão” já presente e transparente através das formas mesmas de sua ausência. Althusser propõe uma outra concepção, em que esses escritos de juventude sejam apreendidos em seu conteúdo vivo, tais como foram escritos, sem possuir nenhum outro destino – se é que esse conceito ainda pode ser usado – que não eles mesmos. Daí a necessidade de investigar o que estava em jogo nestes textos a fim de melhor compreendê-los, em vez de impor-lhes normas interpretativas externas – o que acabamos fazendo quando sobrepomos esquemas argumentativos sobre os textos após os fatos que eles talvez tenham tornado possíveis em primeiro lugar, ou ainda “preparado, ao antecipar sua emergência.

O que estava em jogo para Marx e que riscos ele tomou ao escrever esses famosos manuscritos em 1844, sem poder saber – por razões óbvias – o que sua publicação muitas décadas depois implicaria, simplesmente porque eles não conduzem a nenhum outro lugar que não o que está literalmente neles inscrito? Ao formular tal questão, podemos ver mais claramente os problemas que advém de uma noção de visão de mundo: precisamente porque, analisados em si mesmos, em seus próprios termos, como outros escritos do Jovem Marx, eles não apontam, em absoluto, para um visão de mundo que possa ser destacada ou extraída deles, como o pressuposto teleológico que exige que tal coisa seja realizada quando o ciclo de maturação dessa visão de mundo for completado. Ademais, nada nos impede de abordar as questões com as quais Marx mais tarde lidaria ao escrever O Capital – certamente não com o objetivo de melhor definir os contornos de uma visão de mundo que já apreendeu as condições de sua própria inteligibilidade. Não vemos porque as regras de leitura aplicadas ao textos da juventude de Marx não poderiam também ser aplicadas a seus textos de maturidade.

Como entender então a gênese do pensamento de Marx? Para responder a esta questão, Althusser propõe o que chama de “princípios marxistas de uma teoria do desenvolvimento ideológico”, rompendo com o método analítico-teleológico e as pressuposições hegelianas que o assombravam. Os princípios são três:

O primeiro afirma que:

Toda ideologia deve ser considerada como uma totalidade real, unificada internamente por sua própria problemática, de modo que é impossível remover um elemento sem alterar todo o seu sentido.(8)

Esse princípio, que poderia ser chamado de princípio da totalidade, e cuja inspiração fundamental é estruturalista – embora Bergson possa ser considerado, com igual validade,  como uma influência importante – afirma que o que poderíamos chamar de uma experiência de pensamento aparece na forma de uma unidade concreta e não-segmentável, sendo portanto irredutível quer a uma agência quer a um fluxo independente de ideias; é, ademais, organicamente ordenada, a começar por sua problemática básica: é ela que abre a perspectiva singular dentro da qual todos os seus elementos encontram um lugar, de acordo com a necessidade específica de sua organização, funcionando assim como um esquema vital. Ao mesmo tempo, cada uma dessas experiências de pensamento se apresenta como uma totalidade autônoma, fazendo com que seja impossível colocá-las numa mesma trajetória evolutiva, como se fossem as etapas de um caminho único. Esse princípio da totalidade, expresso em primeiro lugar e tendo um status de pré-requisito, é necessário mas não suficiente: na verdade, sua implementação coloca um problema, na medida em que reintroduz o pressuposto da auto-inteligibilidade da experiência de pensamento em questão – a última deve se referir somente a si mesma, desqualificando qualquer critério de verificação externo à sua própria ordem.

É por isso que o princípio da totalidade deve ser complementado ou suplementado – poderíamos dizer até mesmo corrigido – por um segundo princípio, de acordo com o qual:

O significado dessa totalidade, de uma ideologia particular (neste caso, o pensamento de um indivíduo) não depende de sua relação com uma verdade interna a essa experiência, mas de sua relação com o campo ideológico existente e com os problemas sociais e relações sociais que sustentam a ideologia e nela se refletem; o desenvolvimento de uma ideologia particular não depende da relação de tal desenvolvimento com suas origens e seu fim, considerados como sua verdade, mas da relação existente no interior desse desenvolvimento entre as mutações de uma ideologia particular e as mutações do campo ideológico e dos problemas e relações sociais que a sustentam. (9)

Isso lembra muito um Bourdieu avant la lettre: uma experiência orgânica de pensamento – uma que seja organizada em torno de uma problemática fundamental e singular, como demonstrado pelo princípio anterior – somente se torna possível porque se inscreve num “campo” pelo termo intermediário com o qual se relaciona: com um certo número de “problemas e relações sociais”, para utilizar os termos de Althusser. O “campo ideológico” que desempenha um papel constituinte na formação e desenvolvimento de uma experiência de pensamento, e que não pode ser tratado como um pano de fundo neutro, deve ser considerado oscilante – isto é, ele afeta a experiência de pensamento em questão bem como a totalidade orgânica que ele forma por meio de um certo coeficiente de instabilidade: sua ordem é relativa aos “problemas e situações sociais que a sustentam”, para usar novamente gramática althusseriana. “Eles a sustentam” – em outras palavras, os problemas e relações sociais constituem a base material do campo ideológico; eles o refletem e a experiência de pensamento, por sua vez, reflete esses problemas e estruturas sociais, das quais ela é um modo de expressão ou manifestação histórica. Por essa razão, esse segundo princípio deveria ser chamado princípio da historicidade.

É significativo que a expressão do primeiro princípio seja organizada em torno da questão de uma “problemática”, enquanto a referência no segundo princípio é a “problemas sociais”, com um significado distinto mas não totalmente desvinculado do primeiro. Poderíamos concluir, a partir disso, que um todo ideológico pode ser considerado uma totalidade orgânica, reduzido a uma punhado de questões que estruturam fundamentalmente seus elementos desde o início. Mas de onde surgiu esse questionamento? Ele se desenvolveu no campo das puras ideias para em seguida se estabelecer no interior dum campo inteiramente intelectual, como se se tratasse de uma disputa de ideias? Isso não expressaria o fato de que, na experiência de pensamento em questão, algo causa um problema, afetando-a por meio do que chamamos um coeficiente de instabilidade? Mas se algo causa um problema aqui, não basta fazer um esforço para encontrar uma solução adequada, como ao responder um jogo de palavras cruzadas. Ao invés de enfrentar um problema diretamente, essa experiência de pensamento deverá lidar com ele de forma imanente, comunicando suas operações numa dinâmica aberta ao invés de fechada e, assim, expondo-se às mudanças que a colocam num ciclo global de transformações. Aqui, a referência de passagem aos “problemas sociais” adquire seu sentido completo: uma estrutura ideológica, com seus problemas fundamentais, reflete as dificuldades e contradições que atravessam a realidade social definidora de seu “campo” e – sem tender a um destino pré-determinado – se desenvolve na direção de suas mudanças, mudanças essas que não são a realização de um destino mas o resultado de um processo, em que a estrutura ideológica em questão está totalmente imersa. Se uma experiência de pensamento “reflete” a realidade social, o faz na medida em que recupera os “problemas” que causam seus próprios problemas, ao invés de apresentar a realidade como uma imagem panorâmica o mais fiel possível: é isso que Althusser chama de “questões teóricas”, que podem ser formuladas apenas numa perspectiva histórica de mudança e transformação. Em termos mais abstratos, poderíamos dizer que o que é refletido não é o estado mas sim o processo das coisas.

O primeiro princípio evidencia um caráter internalista, levemente temperado pelo segundo princípio, que introduz a ideia de que uma “experiência de pensamento” não é uma totalidade ordenada, mas uma totalidade em movimento, em que as coisas se movem sob uma pressão advinda da verdadeiro ponto de ancoragem dessa experiência – qual seja, uma estrutura social específica atravessada por conflitos que a fazem mover-se. Isso nos conduz ao terceiro princípio que, contrariamente ao primeiro, possui uma dimensão externalista. Ele afirma que:

o princípio motor de uma ideologia particular não pode ser encontrado no interior dessa ideologia mas em seu exterior, no que lhe subjaz: seu autor como um indivíduo concreto e a história refletida no desenvolvimento desse indivíduo, de acordo com os complexos laços entre o indivíduo e sua história.(10)

Vale notar que Sartre escreve algo bastante parecido em seu Busca de um Método: a relação entre ressonância e conflito entre um processo singular e o contexto global em que esse processo ocorre, fornecendo-lhe dimensões objetivas e subjetivas – algo como uma relação recíproca entre o objetivo e o subjetivo – explica as trajetórias desse processo, como mapeadas, por exemplo, pelo jovem Marx na Alemanha da década de 1840.

Após estabelecer esses princípios – que poderíamos catalogar livremente sob as respectivas autoridades de Bergson, Bourdieu e Sartre – Althusser reflete sobre eles de modo mais geral e, embora o termo não seja usado explicitamente, parece aproximar-se mais da noção de ruptura [epistemológica] que ele empregará mais tarde. Na verdade, ele esclarece que esses princípios:

não são princípios ideológicos no sentido estrito, mas princípios científicos: em outras palavras, eles não são a verdade do processo a ser estudado (como são todos os princípios de uma história escrita no “futuro anterior”). Eles não são a verdade de, mas a verdade para – eles são verdadeiros como pré-condição para colocar legitimamente um problema e, por meio dele, produzir uma solução verdadeira. Assim, esses princípios também pressupõe o “marxismo plenamente desenvolvido”, porém não como verdade de sua própria gênese, mas como a teoria que torna possível uma compreensão de sua própria gênese e de qualquer outro processo histórico.(11)

Vemos aqui a noção de verdade retornar com toda a força na forma de uma “verdade para”, que possuiria um grau de dignidade científica, distinta de uma “verdade de”, relegada ao nível da ideologia e sendo, portanto, desqualificada. Como deveríamos entender essa “verdade para”? Presumidamente como a verdade que surge de um processo de conhecimento que opera a uma certa distância de seu objeto porque, em vez de considerá-lo como uma totalidade já dada pela experiência imediata, cuja verdade poderia ser apreendida no máximo como “verdade de”, esse processo reconstrói completamente o objeto a fim de transformá-lo no que Althusser mais tarde chamará de objeto teórico, um objeto de pensamento, um “concreto-em-pensamento”, de acordo com o que ele designa como a pré-condição da colocação legítima de um problema. Podemos vislumbrar nessa análise as lições epistemológicas algo primitivas que Althusser colheu de suas leituras de Bachelard e Koyré, e que continuariam a basear as reflexões de Althusser e seus discípulos sobre o conceito de ruptura: uma ciência digna do nome não estuda objetos diretamente disponíveis, como que entregues de bandeja pelo movimento espontâneo da realidade e da vida, mas considera somente os objetos que ela problematiza por seus próprios meios, retrabalhando-os a partir de suas próprias investigações, colocando assim “questões teóricas” para esses objetos e gerando uma “verdade para”, que não se resume a uma questão de método, preocupada somente em obter acesso a uma “verdade de”.

Como essas considerações se aplicam ao Jovem Marx? Na medida em que, para utilizar os termos de Althusser, eles conduzem à “teoria que torna possível uma compreensão de sua própria gênese e de qualquer outro processo histórico.” O que Althusser chama de “marxismo plenamente desenvolvido” – e retornaremos a esse ponto em breve, embora  a expressão “marxismo constituído” teria sem dúvida sido mais feliz – permite que a obra do Jovem Marx seja repensada. Ele possibilita “uma compreensão de sua própria gênese” na medida em que essa gênese é tratada da mesma forma que qualquer outro processo histórico. Assim, sem se aproximar demais de uma doutrina que se regozija da própria auto-inteligibilidade, arrogando-se a tarefa de fornecer sua própria “verdade de”, mas ao mesmo tempo com o auto-distanciamento necessário a uma atividade que busca a “verdade para”, que se obriga a reconstruir seus objetos utilizando-se de “questões teóricas” para identificar o que no interior desses objetos conduz a mudanças e transformações; baseando-se em problemas que trabalham sobre os objetos de dentro e de fora, de acordo com uma dimensão dual, objetiva e subjetiva. Como escreve Althusser: “tudo depende do jogo entre o rigor de um pensamento individual e o sistema temático de um campo ideológico… no exato momento em que aquele indivíduo concreto, o Jovem Marx, emergiu no mundo do pensamento de seu próprio tempo para, por sua vez, pensá-lo”.(12)

Essa análise repousa sobre um pressuposto, indicado pela expressão “marxismo plenamente desenvolvido”; e há, é claro, a questão de saber o que distingue esse pressuposto de um simples preconceito. O que nos autoriza a afirmar a existência de uma teoria que logrou se distanciar, de uma vez por todas, dos objetos que lhe dizem respeito e consagrar, por uma espécie de unção divina, a prática da “verdade para”, uma vez que tenha exorcizado os demônios da “verdade de”? Não encontraríamos aqui, sob o disfarce da Teoria, uma ideologia da ciência, que apresenta a última como constitutiva de uma ordem distinta, fazendo uso de um privilégio exorbitante para afastar regimes de conhecimento que intervieram em sua gênese, tendo conquistado sua homogeneidade graças a essa separação? E não seria essa ideologia, em última análise, política, visto que responde, acima de tudo, à necessidade do partido dos trabalhadores e das massas de ter uma doutrina viável, ou ao menos viável o bastante para garantir teoricamente sua prática? Mas o fato de que uma “teoria” sirva para garantir a prática não a desviaria naturalmente do caminho da teoria autêntica?

Podemos pôr de lado provisoriamente essas interrogações, e buscar entender que elementos de “verdade para” esse marxismo plenamente desenvolvido – o qual, como Althusser imediatamente esclarece, não é um marxismo completo, no sentido de uma teoria que não teria novos conhecimentos a produzir – tem a oferecer para uma compreensão do pensamento do Jovem Marx, uma vez que esse é o principal objeto a que essa investigação nos conduziu. O primeiro desses elementos é o conceito já antecipado de “campo ideológico”. Como esse conceito – assumindo que ele mereça a dignidade de um verdadeiro conceito – pode ser considerado relevante para as “questões teóricas” em jogo? Porque ele encoraja uma reconstrução, ao lado dos pensamentos singulares que Marx produziu em seu próprio nome durante sua juventude, da complexa atmosfera temática dentro da qual sua empreitada foi historicamente conduzida, sem que uma conclusão –  se é que ela de fato ocorreu em algum momento – esteja de qualquer modo prefigurada em seus condições iniciais.

Desse ponto de vista, parece que estudar as obras do jovem Marx perde qualquer caráter “científico”, uma vez que passam a ser consideradas autônomas, sendo no máximo re-inscritas no contexto de uma “‘visão de mundo” auto-inteligível batizada com o nome de marxismo, supostamente governando sua própria gestão por meio de sua imutabilidade. A questão teórica que surge então, e que, podemos admitir, põe um fim à confusão que havia previamente reinado nos estudos sobre o Jovem Marx, pode ser capturada, de forma simples, nos seguintes termos: como foi que o que passaríamos a chamar de marxismo – um único termo que abrange uma realidade intelectual complexo e conflituosa – pôde ser elaborado a partir de materiais que não eram inicialmente parte do “marxismo”, não sendo assim desde já marxistas, mas que se provaram indispensáveis para a efetiva produção desse marxismo, cuja estrutura não era pré-inscrita no domínio das puras ideias onde se produzem as visões de mundo? Como o marxismo se constituiu a partir do trabalho de alguns indivíduos? Em primeiro lugar, há o próprio Marx, através das correntes mais amplas de pensamento que estruturaram o “campo ideológico” da Alemanha da década de 1840: essencialmente Hegel e Feuerbach, mas também as obras que surgiram a partir do culto intelectual a August Cieszkowski, que em 1838 defendeu uma filosofia da ação de uma perspectiva pós-hegeliana, bem como outras abordagens, mais secretas, como a do autodidata Moses Hess, que serviu como mediador para o socialismo utópico, ou mesmo as primeiríssimas descobertas no campo da economia política, realizadas por Engels, o jovem industrialista encantado pelas ideias revolucionárias e preocupado com a condição da classe trabalhadora. Esse intensa fermentação de ideias agitou não somente os intelectuais do período, mas também os grupos na Alemanha e na França que prefiguraram as primeiras formas organizacionais do movimento dos trabalhadores.

A relação de Marx com Feuerbach, um tema pelo qual Althusser se interessava vivamente nesta época, tendo ele próprio acabado de concluir uma tradução do Manifesto Filosófico de Feuerbach, é particularmente importante nesse sentido.(13) Quando, num certo momento de seu desenvolvimento intelectual, Marx emprega os esquemas de pensamento de Feuerbach deslocando seu ponto de aplicação – num primeiro nível, da religião à política, e num segundo nível, da política à economia, como Engels o inspirou a fazer com seu “Esboços de uma Crítica da Nationalökonomie” – deveríamos considerar que as formações teóricas geradas nessa condições resultaram numa combinação entre certos elementos que teriam sido extraídos de Feuerbach e outros que não, podendo assim prefigurar o Marx por vir, com essa combinação tendo dado origem a um pensamento misto, híbrido, cujo caráter composto poderia ser chamado de uma operação de decantação, apenas aparentemente inevitável?

Na verdade, não. O que precisa ser entendido – embora essa seja uma tarefa difícil – é que esse momento específico no desenvolvimento do pensamento do Jovem Marx apresenta a unidade de uma “estrutura sistemática típica”, definida por uma “problemática”; isto é, o que dá a essa estrutura sua própria coerência é o modo pelo qual reflete seus objetos, retrabalhando-os sob a luz das questões que podemos perguntar a seu respeito. Althusser acrescenta: “descobrir nessa unidade um conteúdo determinado que torna possível ao mesmo tempo conceber o significado dos “elementos” da ideologia em questão e relacioná-la aos problemas colocados diante de cada pensador pelo período histórico em que ele vive.”(14)

Em outras palavras, poderíamos dizer que a unidade de uma estrutura de pensamento tem, em última análise, uma base prática e não teórica. A expressão “questões teóricas”, ou “questões de teoria”, que é o subtítulo do artigo de Althusser, adquire uma nova dimensão, uma vez que as questões teóricas não são apenas ou simplesmente teóricas, ou intra-teóricas. As questões teóricas não devem ser entendidas apenas pelas questões que a teoria coloca ou coloca para si, mas também pelas questões em relação às quais a teoria se define ao reagir de acordo com os meios à sua disposição. Qual a importância disso? Esse aspecto ambivalente da teoria indica que o que está em jogo é a união dos dois extremos de uma corrente: apreender a unidade de uma estrutura teórica que produz determinados efeitos de significado e ao mesmo tempo medir em que ponto essa estrutura, apesar de formar um todo unificado, é afetada por um certo grau de instabilidade, uma instabilidade transmitida que lhe é transmitida pela conjuntura histórica da qual ela é apenas um componente; um conjuntura com seus próprios problemas reais, aos quais a teoria reage com seus próprios meios, isto é, seus meios teóricos.

Podemos começar a entender, então, porque Althusser, ao longo de todas as suas análises, foca tão insistentemente na noção de ideologia, que ele aplica sistematicamente ao pensamento do jovem Marx. A ideologia deveria ser entendida como uma estrutura de pensamento ao mesmo tempo unificada e instável, sendo assim impelida a um movimento permanente de reestruturação que explora suas dificuldades internas e externas – os dois tipos de dificuldades que uma ideologia enfrenta, na medida em que aborda problemas teóricos pelo confronto simultâneo com problemas reais. Deveríamos ter em mente que esse movimento de reestruturação não segue condições lógicas e que seu fim, se o há, não está anunciado no ponto de partida; sobretudo se considerarmos que a continuação desse movimento não segue a lógica da consciência teórico-reflexiva, mas opera de modo majoritariamente inconsciente e, portanto, cego. Como escreve Althusser a respeito da estrutura ideológica que determina o pensamento nessas condições: “no geral, o filósofo pensa em seu interior ao invés de pensar sobre ela.”(15)

Como se constitui a estrutura ideológica da qual as obras do Jovem Marx fazem parte? Para Althusser, ela possui uma forma essencialmente antropológica, o que explica o papel que Feuerbach desempenha na formação do pensamento de Marx nesse período. Pouco importa que essa perspectiva antropológica seja aplicada a objetos diferentes como religião, política, história ou economia: o que importa é a “problemática básica” a que esses objetos distintos estão sempre relacionados, na medida em que são sempre interpretados como sendo objetos do homem, ou objetos em que o homem projeta e eventualmente aliena seu ser-genérico, ao transformar seus próprios objetos numa forma-objeto, como afirma Feuerbach. A questão central que Marx enfrenta – assim que essa estrutura ideológica passa a ser um problema – é a seguinte: como deixar de ser feurbachiano? Esse questão é colocada explicitamente por ele ao esboçar Teses Sobre Feuerbach, em torno de 1845, após haver escrito com Engels A Ideologia Alemã.

Evidentemente, precisamos ir além de Althusser nesse ponto: ainda que aquele fosse um projeto consciente, teria Marx realmente abandonado Feuerbach em algum momento? Teria ele de fato varrido de suas análises a problemática antropológica, presente desde o início? Toda a controvérsia envolvendo o humanismo teórico está, in nuce, nessa questão; hoje podemos arriscar a interpretação de que Althusser foi imprudente ao absolver Marx em definitivo – o que ele considerava o verdadeiro Marx, o Marx do “marxismo plenamente desenvolvido” – de toda suspeita antropológica, uma suspeita que na verdade respondia a uma das preocupações filosóficas bastante específicas de Althusser – ao menos o jovem Althusser, que escreve seu artigo sobre o Jovem Marx baseando-se em recordações advindas em grande parte de sua leitura de Spinoza. Essa complacência é produto de uma das convicções de Althusser, afirmada veementemente ao longo de sua análise: “o marxismo não é uma ideologia.” É por isso que, entre o marxismo, grafado com inicial minúscula, e o Marxismo, com “M” maiúsculo, do Marx que havia se tornado ele mesmo, o verdadeiro Marx, há uma enorme incompatibilidade. Althusser expressará subsequentemente essa incompatibilidade ao empregar a noção de ruptura.

A terceira seção do artigo é dedicada a aspectos históricos específicos do problema colocado pela interpretação da obra do Jovem Marx: pode-se resolver o problema levantado? Nesta última seção do texto, Althusser examina o que ele chama de “a trajetória de Marx”, isto é, a evolução que o leva, num dado momento – que Althusser estima ser 1845, a data provável em que Marx esboça suas Teses sobre Feuerbach – a repudiar a estrutura ideológica antropológica que ele havia em grande parte herdado de Feuerbach. Qual é o motor dessa evolução? Althusser passa muito rapidamente pelos aspectos dessa questão que estão ligados à própria personalidade de Marx, e podemos facilmente entender o porquê; isso está ligado ao que Sartre, citado nessa ocasião, chama de o “projeto básico” de um autor, do qual todos os elementos constitutivos de sua obra se irradiam, na medida em que, através desse projeto, o autor realiza sua liberdade.

Deve-se resistir à tentação de reduzir a evolução de Marx a um trabalho de reflexão e, portanto, a um esforço intra-cognitivo – um trabalho de  reflexão cujo “material” seria fornecido pelas “ideias” que o filósofo tinha então à sua disposição, quais sejam, as de Hegel e Feuerbach, ideias que ele teria perseguido a todo custo, fazendo-as operar de outra maneira, extraindo delas seu conteúdo de verdade. Seria isso que Marx teria feito, por exemplo, ao inverter a dialética hegeliana: “desvirando-a” ou “colocando-a de novo sobre seus pés”, segundo a conhecida fórmula; isto é, transformando a dialética idealista numa dialética materialista, como se a palavra “dialética” pudesse ter o mesmo significado num contexto materialista e num contexto idealista. Althusser resume essa tentação da seguinte maneira:

“O leitor não consegue resistir à transparência do rigor reflexivo e da potência lógica dos primeiros escritos de Marx. Tal transparência naturalmente o inclina a crer que a lógica da inteligência de Marx coincide com a lógica de sua reflexão, e que ele extraiu do mundo ideológico sobre o qual se debruçou a verdade que aquele de fato continha. Essa convicção é ainda reforçada pela convicção do próprio Marx, que está presente em todos os seus esforços e mesmo em seus entusiasmos – em suma, pela sua consciência.”(16)

O objetivo dessa análise é explicar como o motor da evolução teórica de Marx teria sido uma consciência da verdade, no sentido de uma verdade escondida que deve ser descoberta ou revelada a qualquer preço mas que, por assim dizer, pré-existe à sua exibição: uma verdade que é, em certo sentido, ideal, uma vez que não precisa ser realizada, ou poderíamos dizer praticada, para de fato existir como verdade. Mas se quisermos cultivar qualquer esperança de compreender como Marx, ou o Marx do marxismo com “m” minúsculo, tornou-se o Marx do Marxismo com “M” maiúsculo, essa abordagem hermenêutica que enxerga a verdade como um segredo aguardando revelação precisa ser abandonada; a questão se resume então em saber se já há um destino no interior da ideia mesma de verdade que seja intimamente ligado a essa abordagem, ao ponto de tornar a verdade um conteúdo de pensamento independente do fato materialmente conhecido.

É por isso que é necessário diferenciar uma real lógica de invenção de uma lógica ideal de reflexão, para usar os termos de Althusser. O que as distingue em primeiro lugar é o fato de que a lógica da reflexão aparece como lógica da necessidade, enquanto a lógica da invenção é uma lógica da contingência, ou o que poderia ser chamado de uma lógica do evento. Sim, a invenção do marxismo com “M” maiúsculo, a constituição de uma Teoria (na medida em que ela se distancia da ideologia) é um processo submetido à contingência do evento. O que isso quer dizer? Que essa Teoria não é uma teoria pura, que poderia ser compreendida somente no nível teórico, mas faz parte do resultado incerto de uma determinada conjuntura histórica – a da Alemanha da década de 1840, para ser mais exato – quando um jovem filósofo chamado Marx precisou, na visão de Althusser, inventar uma nova ciência, a ciência do continente da história, sob condições semelhantes àquelas nas quais todas as ciências são de fato criadas – por meio de um trabalho que não é exclusivamente intra-teórico, de reflexão ideal-consciente, mas também atravessado pela irrupção da história real, no movimento da transformação do pensamento.

Ao pensar essa irrupção da realidade, ou o que parece uma irrupção no interior do desenvolvimento de um corpo de pensamento, Althusser fala novamente de uma “emergência súbita” que força esse pensamento, agora solicitado e provocado pela realidade, a retornar a seus problemas fundamentais, a reconstruir inteiramente sua abordagem. Podemos entender essa virada como a elaboração de uma teoria materialista do conhecimento, uma concepção em que, para usar termos simples, as coisas ganham voz na formação da teoria que lhes confronta. Isso se dá porque o que estamos chamando de “coisas” não representam apenas um estado de fatos estáticos imóveis, oferecidos numa bandeja para o filósofo – como uma ordem estagnada, suspensa, que existiria a fim de ser compreendida o mais objetivamente possível – mas existem também de forma dinâmica, como ação: um processo prático e vivo, em que as operações do pensamento estão plenamente envolvidas. Se o que estamos chamando de “coisas” não funcionam “no” pensamento, no sentido de uma intervenção causal mecânica, elas funcionam “no interior” do pensamento, uma vez que o pensamento não deriva das coisas, isto é, não está nas coisas. O pensamento é ele mesmo uma coisa pertencente à ordem das coisas, sendo apenas um elemento entre outros.

As premissas dessa concepção materialista de conhecimento, ainda a serem elaboradas, podem ser lidas nos interstícios do artigo de Althusser sobre o Jovem Marx; elas fornecem seu drama secreto e sem dúvida constituem sua contribuição mais significativa e substancial. Mas tais premissas aparecem em conjunção com outros elementos: elementos intra-teóricas e, para usar a linguagem de Althusser, ideológicos. No entanto, como observa o próprio Althusser, o status de um pensamento vivo não pode ser compreendido extraindo-se dele uma combinação de elementos que são de jure separáveis; o artigo sobre o Jovem Marx constitui, assim, uma unidade orgânica atravessada ou penetrada por contradições, por “problemas” que apontam para conflitos reais. A fim de melhor compreender a natureza destes problemas, a abordagem de Althusser, por sua vez, deve ser remontada a seu próprio “campo ideológico”, isto é, deve ser situada em relação a um conjunto de debates que fizeram da vida intelectual francesa dos anos 1960 um todo coerente porém instável – fundamentalmente antagonístico, mas também, como resultado, sempre em movimento.(17) Isso confirma que a história de um pensamento – quer seja de Althusser quer de Marx – jamais aparece de forma pura, e que o projeto de expurgar impurezas está fadado ao fracasso. Nas páginas finais de seu artigo, Althusser fala da “gênese dramática do pensamento de Marx” que segundo ele, “conduziu de fato ao marxismo, mas somente ao preço de uma prodigiosa ruptura com suas origens.”18 Não seria esse drama precisamente a gênese de todo pensamento? Essa é a melhor lição a se extrair dos ensaios teóricos do jovem Althusser.


  1. Nota do tradutor: Ao aderir ao estiolo de Althusser no artigo em discussão, capitalizei o “jovem Marx” por toda parte.
  2. Ver Jean-Paul Sartre, Search for a Method, trad. Hazel E. Barnes (Nova York: Alfred A. Knopf, 1963). Nota do tradutor: Ben Brewster traduziu “Questions de théorie” para o inglês como “Theoretical Questions”, perdendo assim um pouco do teor da polêmica de Althusser.
  3. Louis Althusser, “On the Young Marx,” in For Marx, trans. Ben Brewster (New York: Verso, 2007 [1970]), 52.
  4. Ibid., 54
  5. Ibid., 55
  6. Ibid., 57
  7. Ibid., 78, n40.
  8. Ibid., 62
  9. Ibid., 62-63
  10. Ibid., 63
  11. Ibid
  12. Ibid
  13. Ver Ludwig Feuerbach, Manifestes philosophiques: textes choisis (1839-1845), trad. Louis Althusser (Paris: Presse Universitaires de France, 1960). O primeiro texto em For Marx é uma introdução a esta coleção de Feuerbach, que apareceu na coleção “Epiméthée” da PUF, liderada por Jean Hyppolite.
  14. Althusser, “On the Young Marx,” 67.
  15. Ibid., 69.
  16. Ibid., 74.
  17. Nota do tradutor: Neste ponto, ver agora Knox Peden, Spinoza Contra PhenomenologyFrench Rationalism from Cavaillès to Deleuze (Stanford: Stanford University Press, 2014), Capítulos 5 e 6.
  18. Ibid., 82, 84.

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