A Psicanálise, o mito e o Mito

Por Philippe Augusto Carvalho Campos

Ante a ascensão do “Mito”, uma postura apareceu na cena psicanalítica: temos visto a psicanálise, por meio de psicanalistas ou instituições, se posicionar contrariamente ao Bolsonaro. Num momento delicado desses talvez não caiba uma postura imaculada, aquela que envolve uma profunda reflexão sobre as causas do fenômeno (o “Mito”, com maiúscula, é resultado de insuficiências políticas, sociais, culturais, etc; e lembremos que para o Lévi-Strauss o mito é uma solução da imaginação para um conflito ou uma contradição que não foi levada a cabo na realidade). Contudo, optamos, nesse texto, por não ser um realejo de palavras de ordem; daí, dois pontos, uma reflexão breve pode nos situar melhor sobre o que representamos ou o que representa a doutrina psicanalítica e tendo iluminado um pouco esse papel, poderemos ter uma maior clareza sobre o que está em jogo. A teoria, como o mito, serve para ver e criar coisas na realidade que sem ela não veríamos, a má teoria torna a realidade refratária à manipulação, a boa teoria nos permite operar a realidade. Assim, esperamos que este ensaio nos ajude a operar um pouquinho a realidade e, também, a não se desesperar. Além disso, oferecer um contraponto, pretendemos pensar, aqui, por um caminho que meio contrário àquele que culpa a realidade.


A diferença estabelecida por Lévi-Strauss entre o xamã e o psicanalista que operam uma cura refere-se à atividade do primeiro e à passividade do segundo. O xamã é um sujeito que organiza um complexo de significantes (afetos, manifestações corporais, imagens etc.) numa espécie de síntese que agora pode ter uma direção – o exemplo do antropólogo é um ritual de parto, a parturiente depois do ritual consegue realizar o parto outrora travado. Essa síntese é denominada mito. E a força sintetizante desse mito vem, primeiramente, do simbólico (contexto social ou senso de uma comunidade) e, segundo, do desarranjo ou da confusão de significantes na qual o sujeito encontra-se. Ao contrário do xamã, não é o psicanalista quem fala ao paciente fornecendo o mito, mas este o constrói baseado no seu passado individual criando uma síntese denominada por nosso autor de “mito individual” (cujo análogo, em Lacan, seria o conceito de fantasia, mas optaremos, por ora, pelo jargão do antropólogo), ou seja, uma construção simbólica, que operada no nível singular, media processos outrora imediatos e desconexos. Daí, um primeiro ponto que gostaria de deixar claro: por essa perspectiva, a prática analítica seria refém de duas passividades, a primeira é que ela não fornece o mito ou não fala por seu paciente, a segunda, o psicanalista não vai ao seu paciente, ele o espera no seu consultório ou no setting analítico.

Dessa segunda passividade podemos deduzir um importante aspecto do sujeito que nos chega ao consultório: é um sujeito desarranjado, fragmentado, sem síntese, ou, como Lacan chamou, um “sujeito dividido”. Fato é que várias dessas pessoas que vêm ao consultório o fazem por pensar que ali está a cura de um tipo de sofrimento que elas imaginam ser da alçada do psicólogo, ou, porque já tentaram muita coisa e nada daquilo funcionou – yoga, floral, viagem para roça, igreja etc. Daí, um segundo ponto: o psicanalista (e nesse caso também o xamã) não produz a desagregação da personalidade, ele recebe esse sujeito dividido e a partir da fala desse mesmo sujeito dividido, ele opera a cura, um “mito individual”.

Desses dois pontos podemos elaborar um pequeno paralelo entre o xamã, o psicanalista e uma segunda função do psicanalista:

  1. xamã: temos um sujeito dividido e o xamã ativamente opera o mito que promove a síntese de processos desconexos desse sujeito;
  2. psicanalista: temos um sujeito dividido e o psicanalista passivamente faz o sujeito recordar (reconstruir) o seu passado e essas recordações são um modo de construção de um mito individual que promove uma síntese nesse sujeito;
  3. psicanalista’: o psicanalista age recursivamente sobre o mito individual produzido numa análise, fragmentando-o, produzindo novamente um sujeito dividido.

Ora, essa agência na última etapa operada pelo psicanalista nos traz a uma outra diferença entre o psicanalista e o xamã. Enquanto o xamã somente promove a síntese, o psicanalista, enquanto o paciente continuar voltando ao consultório, trabalha desfazendo as sínteses anteriores. Por quê? O psicanalista com suas intervenções ajuda o sujeito a construir o seu passado, mas se o sujeito continua retornando ao consultório, é porque ele não está satisfeito com a construção (permanece engajado no processo), tem algo ali, um fragmento (aquilo que Lacan chamou objeto a), que insiste em não caber muito bem na construção ou de deixar o sujeito insatisfeito com ela. Diante dessa permanência do fragmento, o psicanalista poderia, digamos, fazer o papel de pôr esse fragmento em algum lugar – é isso que as religiões ou as seitas fazem, diante da finitude da vida, de algum vício, de um mal radical ou de um masoquismo exagerado, a religião consegue redirecionar isso para a devoção a Deus. Mas nesse caso, o de encontrar um lugar para o excesso, ele não estaria sendo um psicanalista, mas um xamã, um pastor ou um padre. Ou, uma segunda opção, o de sempre apontar esse excesso ou essa lacuna no mito individual que o sujeito está construindo e deixar que ele se responsabilize por esse negócio – por conta disso o psicanalista não é um guru. Essa atitude de nunca construir um mito para o paciente e de nunca dar uma resposta para um eventual excesso ou descompasso que aparece em suas tentativas de síntese, o Lacan chamou de “desejo do psicanalista”. Então, o desejo do psicanalista é o desejo de, enquanto o sujeito insistir em retornar no consultório, não deixar esse cara constituir uma síntese.

Inseriremos agora um terceiro personagem nessa história, o militante. Este, tal como o psicanalista:

  • Deve trabalhar causando a divisão do sujeito, num processo negativo. Ele aborda os outros tentando desfazer as sínteses que estes possuem, por isso o militante grita gritos de ordem na rua, espalha cartazes, às vezes faz umas intervenções profanas, tudo isso na intenção de quebrar sínteses bem constituídas – me lembro aqui de um paciente que era ateu, bem intencionado e adolescente, às vezes em conversas com cristãos sobre a existência de Deus, a manipulação da religião e afins ele dizia bem alto uma frase pornográfica e a associava a algo sagrado, depois de um tempo ele me disse: “aquele povo tem que ver que o que é sagrado pra eles, pra mim é lixo”. Assim, a questão que o militante sério deve se colocar diz respeito a saber sob quais condições suas palavras de ordem, sua arte e suas profanações causam uma desagregação nos outros que estão com suas sínteses bem feitas. Ou seja, quais as condições de possibilidade de promover um sujeito dividido, ou mesmo, se as há, pois, o ato do militante pode, em vez de promover um desarranjo na síntese do interlocutor, promover um fortalecimento da síntese – imagina que um militante diga a um cara que ele é burro porque a Rede Globo manipula ele, o cara pode pensar, “quem é esse idiota, eu assisto a Globo com discernimento, ele é que é manipulado pelo MST”.

Contudo, infelizmente não é somente o nosso intrépido militante que consegue causar desarranjos ou fragmentação psíquica, fragmentação do mito que organiza a vida das pessoas. O desemprego, a doença, a humilhação, o endividamento, o perigo jornaleiro e o clima jornaleiro de perigo são, possivelmente, mais efetivos em causar esse desarranjo que a promoção do choque de cultura que o militante propõe. Assim, se temos uma base social mais apta à fragmentação, devemos ter em mente que o mito construído para fazer a síntese de uma vida nesses parâmetros, deve ser um mito bem forte, um mito bem estruturado, suficientemente refratário a uma série de fenômenos dos mais variados – um sujeito que mora num lugar perigoso, para ir trabalhar todos os dias, para dormir aos sons de tiros, para aceitar a humilhação que é trabalhar para pessoas que gastam em 15 minutos o que eles ganham em uma semana de trabalho, deve ter uma construção mitológica ou fantasística que dê a ele muita coragem, um sentimento de justiça (que será feita ou divina), uma esperança descomunal. Por essa linha, me parece que diante da realidade, não tem manifestação (artística, cultural, palavra de ordem, lambe-lambe) que consiga os efeitos desagregadores que essa própria realidade consegue.

  • Por outro lado, tal como o xamã, o pastor ou padre, o militante deve trabalhar promovendo uma síntese, um mito, uma fantasia coletiva. Ele trabalha quebrando certos tabus para que, com isso, um outro tipo de síntese ou de mito possa ser colocado. Mas, à diferença do xamã, do pastor, do padre (e também do psicanalista) o militante que não gozar do prestígio ou do respaldo desses atores não terá suas palavras ouvidas; visto ser a crença a priori no xamã que permite que sua ritualística surta efeito.

Temos, então, até o momento, dois papeis exercidos pelo psicanalista, um de promover o mito individual e o outro de não promover esse mito, de subverter a série de fantasias que o sujeito constrói em análise. Porém, essa tarefa subversiva que cabe ao psicanalista deve ser bem dosada em na análise, Freud coloca duas condições, primeiro o sujeito deve ter tido um progresso em conhecer os motivos pelos quais ele vem adotando tais e quais atitudes (o avizinhamento do recalcado), segundo, o paciente deve botar fé no psicanalista, ter se apegado a ele – Freud diz que se a mera informação do correto ou da cura do sintoma fosse efetiva, o sujeito se curaria numa palestra de psicanálise ou lendo livros. Disso tiramos uma lição para o nosso militante, o que quer que se diga deve ser dito sob circunstâncias, não adianta falar a verdade se as condições dessa verdade (a proximidade daquilo que se diz com o universo simbólico do sujeito, e o lugar de onde se diz, o qual, eventualmente, deve inspirar um certo respeito, carinho, amizade… suposição de saber) não estão postas. Entretanto, encontrar essas condições de verdade é meio difícil, principalmente em se tratando de uma grande cidade, onde as pessoas encontram-se muito desconectadas (a relação que você vai ter com um taxista, com o caixa da lanchonete, não te permite satisfazer essas duas condições freudianas). Parece, estamos num grande impasse.

Aqui novamente as lições do Levi-Strauss nos podem ser úteis. Um mito possui duas características, é a sobreposição de todas as narrativas que envolvem o mito e é um modo de resolver uma contradição social pelas vias da imaginação. Encontramos esse duplo aspecto nesse nosso Mito contemporâneo, os gostos e os ódios se dão por motivações diversas e todas essas narrativas sobrepostas formam um todo autocompleto. E todas as fantasias ou mitos individuais juntados sincronicamente constituem um modo de resolver uma contradição social: o Mito concentra:

  1. por um lado a solução para o problema de segurança, o abandono das tradições, o fisiologismo do Estado e o enfrentamento da lavagem cerebral esquerdista;
  2. por outro, ele autoriza tacitamente certos tipos de comportamento violentos e quer autorizar legalmente outros (como salvaguarda para a polícia na favela), é contra certos tipos de vida, vai reduzir o Estado (já tão parco) e sua galera sofreu uma lavagem cerebral, só que de direita.

Em suma, para uns o Mito é um Messias, para outros, o próprio Anticristo. Notem aí como o Mito que media os dois campos impede a interpenetração entre eles, ao mesmo tempo em que cria uma relação co-respondência perfeita. E a atitude que tomamos nesse momento, porque é um momento crítico, é o recrudescimento, a campanha, o panfleto – novamente, não critico isso, talvez seja importante –, mas se se assume que já perdemos, na meia noite que será o dia 28 nós teremos que tratar desse momento crítico, sugiro que com crítica. Dos dois grupos propostos, um vai sair desse pleito com o mundo ainda mais esfacelado e, provavelmente, não serão eles (espero estar errado, mas acho que o texto ainda vale mesmo com a vitória do lado de cá).

Se dois campos se alimentam mutuamente, se co-respondem, é porque estão estruturados em torno de um mesmo mito, do Mito – já faz um tempo em que pautas, digamos, identitárias ganharam protagonismo em detrimento de pautas, digamos, trabalhistas; não espanta que os liberais clássicos no Brasil tenham deixado de ser o alvo e este passou ao Bolsonaro. Em suma, o Mito é um mito para os dois lados.

O Malcolm X dizia que não desejava igualdade com o homem branco porque o branco não é um critério, não era por essa categoria que ele se media, porém, tal atitude não se tratava de nenhum sentimento revanchista com relação aos brancos que circulam por aí, mas de extirpar o Branco, como medida e como ideal, que reside dentro de cada negro americano. Baseado nesse ensinamento, uma primeira sugestão, seria, portanto, evitar a correspondência e tentar, com isso, não usar o Mito como medida, tentar acabar com o Mito que mora dentro da gente – essa operação seria aquilo que Lacan chama de mostrar que o Outro é castrado. Outra sugestão, decorrente da primeira, é tentar usar outros critérios. Quando dividimos o mundo entre fascista e não-fascista a gente não teve muito sucesso, primeiro que essa palavra não faz sentido para muita gente, segundo, ela impede de olhar para as pessoas de um modo mais flexível (um fascista é um sujeito horrendo, profundamente maldoso, sem nenhuma compadecimento da posição dos outros). Por outro lado se a gente o diagnostica como um bobão, um sujeito confuso, como uma pessoa desesperada, o nosso trato com esse sujeito é diferente. A esperança no Bolsonaro é um mito que organiza a vida de muita gente, não digo que não haja fascistas verdadeiros nesse meio, mas se deixarmos que esse mito desorganize a nossa, nós entramos no jogo. Aquele grande impasse a que me referi acima pode começar a tomar outras formas, constituir um novo mito, se esse nosso personagem, que não é nem o xamã, nem o psicanalista, também começar a tomar outras formas.

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3 comentários em “A Psicanálise, o mito e o Mito”

  1. Essa me parece uma excelente discussao para segunda feira. Até domingo, trata-se sim de situar uma posição binaria nesse mal-estar. Mas é possivel habitar essa posicao, como a neurose, de formas bem distintas. Porque mesmo o Outro sendo castrado nao tem sujeito sem sua aposta.

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