“Não sou obrigado”: impaciência e arrogância na esquerda

Por Gabriel Landi Fazzio

Para difundir nossas ideias amplamente, permitindo que sejam conhecidas e assimiladas pela maioria do povo, precisamos estabelecer uma autodisciplina voluntária, coletiva. Nesse sentido, existem dois obstáculos que a agitação política e a propaganda teórica “de esquerda” precisam superar com urgência, em especial nas redes sociais: a arrogância e a impaciência.


No Brasil, o número de pessoas com acesso regular à internet já atingiu 116 milhões, e mais de 109 milhões utilizam redes sociais ou de trocas de mensagem. Enquanto 83% das pessoas usam internet na cidade de São Paulo, os menores índices de acesso são encontrados nas regiões mais agrárias do país.

Percebemos rapidamente, então, que o acesso à internet está limitado por barreiras econômicas, barreiras de classe, e que a maioria das pessoas mais pobres do campo e da cidade não tem acesso a este meio. Mesmo com todos esses limites econômicos de acesso e estruturais de distribuição do conteúdo, as redes sociais são “veículos” com grande poder de influência sobre a “opinião pública”, as preferências políticas e a consciência popular.

Muito natural, então, que boa parte da militância de esquerda participe nesses espaços.

É importante debatermos abertamente cada detalhe dessa participação. Sobre como não se deve subestimar esta atuação, e deixá-la acontecer de maneira desorganizada ou “espontânea”. Sobre como não se deve superestimar  esta atuação, transformando esta em uma prioridade e desorganizando nossos outros meios presenciais de agitação e propaganda [1] (conversas pessoais, discursos, participação em movimentos de massas, distribuição de panfletos e jornais, palestras, etc.).

Há várias questões técnicas e políticas sobre as redes sociais que debatemos de modo ainda insuficiente entre a militância revolucionária. Mas se essa militância pretende travar, a todo tempo, uma luta ideológica pelos interesses de classe dos trabalhadores e contra toda forma de opressão; então se torna imprescindível, em nossa época, superar o “amadorismo” em nosso trato com a internet.

Neste artigo, porém, pretendo abordar apenas uma questão preliminar sobre a agitação e a propaganda comunista. Por isso mesmo, os aspectos aqui apresentados são válidos para toda a agitação oral, tanto quanto para a atuação nas redes sociais.

Contudo, me parece especialmente importante abordar o tema em conexão com a questão das redes sociais porque é justamente na atuação neste âmbito onde ficam mais transparentes alguns dos maiores defeitos da militância “de esquerda” em geral: a arrogância e a impaciência.

Uma das evidências mais frequentes dessa debilidade é a famosa frase: “não sou obrigado/a”.

De fato, nenhuma pessoa é obrigada a fazer uma agitação política consequente! É sempre possível revirar os olhos com desprezo, ridicularizar o interlocutor, em vez de debater pacientemente. Realmente, é uma tarefa bastante penosa e desgastante essa de esclarecer às pessoas sobre seus enganos, em matéria de política, “de modo particularmente minucioso, perseverante, paciente”, explicando de novo e de novo desde as questões mais complexas até as mais elementares. No entanto, sem esse trabalho árduo, não podemos esperar nada mais do que a nossa derrota na luta ideológica.

Se conduzimos nossa atuação cotidiana pensando assim, não podemos nos surpreender que seja cada vez maior o abismo entre as ideias progressistas (tão comuns nas universidades de classe média) e as ideias políticas da maioria da classe trabalhadora e dos pobres no geral! O senso comum é, em toda época, justamente aquele que convêm à conservação da ordem social estabelecida. Não devemos nos espantar, então, quando a crise social abrir a caixa de Pandora dos preconceitos correntes, mobilizando o senso comum em favor das políticas mais reacionárias, elitistas e opressivas.

Assim sendo, existem apenas duas opções.

A primeira é simplesmente ter suas próprias ideias progressistas e desdenhar das ideias conservadoras da maioria, porque afinal ninguém é obrigado a viver todas as angústias da exploração e da opressão capitalista e, ainda por cima, ter que fritar alguns neurônios em discussões políticas emocionalmente desgastantes.

Mas, se estivermos conscientes do perigo dessa postura negligente, devemos então adotar a segunda opção: nos obrigar. Devemos estabelecer uma autodisciplina voluntária, coletiva, através da qual possamos fazer uma agitação e uma propaganda cada vez mais unificadas e amplas em favor de nossas ideias, permitindo que sejam assimiladas pela maioria do povo.

A primeira alternativa significa não ser obrigado a atuar politicamente; mas continuar sendo obrigado a viver em um mundo de injustiça e opressão por tempo indeterminado! A segunda opção é a única que permite vislumbrar qualquer transformação social.

Quanto a isso, a militância comunista já compreendeu há muito tempo que somos sim “obrigados”: entre nós há pouca divergência de que a atividade fundamental de toda militância comunista “deve consistir em um trabalho de agitação política unificada; que ilumine todos os aspectos de vida e dirija-se às massas em geral”. Infelizmente, contudo, mesmo alguns comunistas não levam para as redes sociais essa ideia de maneira consequente.

O dever dos comunistas reside em não esconder as debilidades de seu movimento, mas criticá-las abertamente para livrar-se delas o mais cedo possível e de maneira mais radical. Por acreditar nessa afirmação, abordarei algumas das nossas práticas mais negativas na agitprop digital. Espero, com isso, contribuir para que possamos aperfeiçoar nossa prática, já que muito raramente poderá ser encontrado entre nós alguém que jamais tenha cometido qualquer um desses equívocos (o autor incluso). Ainda que sejam apresentados separadamente, todos esses erros estão profundamente relacionados, e contribuem para tornar nossa agitprop menos verdadeiramente proletária e mais, infelizmente, uma mera agitação pequeno-burguesa com retórica popular, incapaz de ser assimilada pelas massas trabalhadoras.

Impaciência

O comunista que não está disposto a debater pacientemente faria melhor se nem se pronunciasse em qualquer discussão pública! Ser militante comunista não permite exceções de acordo com a hora e o local.

Muitos camaradas raciocinam ainda assim: aqui, no dia a dia do meu trabalho de base, sou um agitador ou um propagandista; no “espaço privado” de meu perfil pessoal em qualquer rede social, sou livre para falar não como militante, mas como “indivíduo”. Ora, essa separação é completamente fantasiosa.

Pode até ser aceitável, por diversos motivos, que algum militante não utilize suas redes sociais para fins imediatamente políticos de agitprop. Mas, nesse caso, o melhor seria então que tal pessoa se abstivesse completamente de tratar de qualquer tema político nesses espaços, se não está disposta a observar aqui os mesmos parâmetros de disciplina que em qualquer outro âmbito de luta ideológica pública.

É indispensável que também nas redes sociais nos vejamos – e sejamos vistos – completamente como agitadores e propagandistas revolucionários. Devemos debater usando a cabeça, e não o ímpeto, o fígado. Em uma discussão ao vivo, muitas vezes o militante com menos preparo pode enfiar os pés pelas mãos, se exaltar, ser pego em uma armadilha retórica, etc. Isso é ruim, mas é parte do processo educativo deste militante. Na internet, por outro lado, onde é possível respirar e meditar antes de responder, essa exaltação é inadmissível, e deve ser contida senão pelo bom-senso pessoal, ao menos pela franca crítica coletiva.

Quanto mais o militante conceber a sua atuação nas redes sociais como um lazer privado, alheio à política, mais tenderá ao hedonismo (a busca performática por likes como prioridade de sua atuação) ou ao extravasamento (e, honestamente, duvido que entre nós haja qualquer santo que desconheça o quão prazeroso pode ser o gozo perverso de ofender, ridicularizar, diminuir um adversário de debate).

Mas, na realidade, as nossas ideias radicalmente opostas à sociedade burguesa não dependem de que nosso discurso seja agressivo contra os explorados que advogam ideias burguesas. Muito pelo contrário. Ou, como diria Gramsci: intransigência com tolerância!

Se algum comunista duvida disso, basta ver a persistência de Lenin neste tema da paciência. “Para não deixar nenhuma sombra de dúvida neste tocante, eu enfatizei por duas vezes nas Teses [de Abril] a necessidade de um trabalho “explicativo” paciente e persistente, adaptado às necessidades práticas das massas”. Quando os bolcheviques eram acusados caluniosamente de serem “agentes dos interesses alemães”, Lenin insistia que, “desmentindo a farsa e a difamação, devemos, com mais calma que nunca” pensar a fundo nas questões, sem nos bastar nas respostas prontas impacientes.

Essa falta de paciência é muito prejudicial à nossa propaganda. Resulta, muitas vezes, de afobação. Nasce não apenas de algum vício pessoal, mas da honesta vontade de resolver todas as questões em uma só conversa, com um só comentário; e negligenciar que apenas um trabalho prolongado de contato e diálogo pode efetivamente desfazer toda uma série de confusões que existem nas cabeças das pessoas.

Ainda mais: como marxistas, não podemos ignorar que é a luta prática, mais do que as palavras, que educa as massas. Como parte proveniente das massas que nós somos, também com a maior parte de nós foi assim: não nascemos prontos ou nos esclarecemos com um golpe de razão ou apenas porque ouvimos um bom argumento qualquer. Nossa agitação, mas, em especial nossa propaganda, precisam ser pacientes justamente porque a demonstração prática das verdades que anunciamos só é possível em escala de massas na medida em que as pessoas não apenas ouçam nossas palavras, mas se engajem efetivamente nas diversas frentes das lutas de classes.

A propaganda do materialismo histórico e da teoria revolucionária apenas pode atingir uma escala verdadeiramente de massas quando a própria massa esteja em intenso movimento contra a ordem capitalista.

Nisto reside, certamente, um grande problema das redes sociais: aqui, muito dificilmente será possível desenvolver uma agitação ligada às necessidades práticas da massa difusa de perfis ao nosso alcance. A agitação econômica nessa rede obteve, até hoje, poucos efeitos.

Sobra, portanto, algum espaço para a agitação política, tocando nos temais de repercussão nacional ou regional (e aqui se encaixa o papel desempenhado pelos “eventos” na convocação de manifestações); ou a propaganda teórica. Neste segundo caso, contudo, a paciência necessária é ainda maior.

Antes do advento da internet, nossa propaganda era eminentemente presencial. Apenas as parcelas mais organizadas e conscientes dos trabalhadores estabelecia algum contato efetivo com as revistas teóricas comunistas ou com as nossas palestras. A internet, nesse sentido, permitiu uma ampla circulação de literatura, palestras e áudios de propaganda comunista. Comparemos isso com a época em que era quase impossível obter uma cópia do Manifesto Comunista (ou de qualquer outra publicação marxista) senão pelas mãos da editora de algum partido revolucionário!

A propaganda teórica trata justamente das ideias mais complexas, que certamente não poderão ser absorvidas por todas as pessoas que se atraem, a princípio, por nossa agitação revolucionária socialista. Então, quanto mais as condições técnicas da comunicação permitam aumentar o alcance da nossa propaganda, mais o propagandista fará mal em não debater com extrema paciência, sem compreender que não adianta tentar enfiar teoria goela abaixo de ninguém, ou hostilizar alguém por não compreender as conexões complexas entre todas nossas ideias.

Se as redes sociais abrem a possibilidade de massificar nossa propaganda em uma escala nunca antes imaginada, isso significa ao mesmo tempo que precisamos produzir materiais mais simples sobre os temas mais complexos, e não apenas esperar que as pessoas se convençam simplesmente porque postamos em uma discussão meia dúzia de links de livros e argumentos de autoridade. Os “argumentos de autoridade” são absolutamente inaceitáveis na propaganda revolucionária proletária.

Arrogância

Nosso “trabalho explicativo” de agitprop busca impressionar nossos interlocutores: transmitir nossas ideias de forma brilhante, mas concisa, é o objetivo.

Infelizmente, muitas vezes esse objetivo é confundido com pedantismo. Devemos recusar a fraseologia vazia, bem como todo formalismo discursivo, e buscar infundir cores vivas em nossas palavras.

Não é preciso que o “ouvinte” primeiro se impressione com o “orador” para depois se impressionar com o discurso. Muito pelo contrário, na verdade.

Ainda mais em nossa época, em que boa parte dos quadros revolucionários provém dos meios intelectuais, urge uma vigilância constante contra nossos desvios academicistas.

Costumamos acreditar que qualquer camarada erudito, que fale bem, é um bom propagandista, mesmo que o conteúdo de seu conhecimento (em termos de teoria revolucionária) seja confuso e pouco firme. Isso é um equívoco.

Outro equívoco resulta de damos grandes importância à teoria, o que nos leva a não raras vezes escorregamos para minúcias desnecessárias em nossa propaganda (e ainda pior, em nossa agitação), que espalham mais confusão que esclarecimento. Mas “onde quer que fale um comunista, deve pensar nas massas, deve falar para elas”.

Faríamos bem melhor (e aqui me incluo) se tivéssemos como prioridade nos fazer entender pelas massas, não nos cobrir contra cada minúcia que os universitários possam encontrar para atacar nossa literatura política!

A agitação comunista busca se expressar de uma forma popular, sem perder seu conteúdo científico. Mas, também não raras vezes, subestimamos nossos ouvintes, e confundimos clareza e simplicidade com meras simplificações, que mais confundem que esclarecem.

Sem transigir em nossas posições, é possível levar uma discussão com naturalidade e familiaridade, de modo que as pessoas não se sintam coibidas a nos questionar, a discordar, a duvidar.

Nossa agitprop não deseja apenas convencer: busca também levar as pessoas a pensarem por si próprias, de maneira sistemática, de um ponto de vista materialista. Por isso mesmo, é necessário muitas vezes que o agitador não apenas fale, mas arraste seu ouvinte para opinar como árbitro, sendo levado a expor suas certezas e confusões.

Muitas vezes, nossa agitprop está impregnada de sectarismo, de espírito de seita. Isso não se resolve apenas evitando uma linha política sectária: às vezes a própria forma da exposição está repleta de dogmatismo religioso, de deslumbramento ritualístico que causa no ouvinte apenas estranhamento. Uma das principais tarefas de todo comunista é livrar nossa política de qualquer caráter sectário. Essa é uma condição indispensável para que o movimento revolucionário comunista possa se fundir verdadeiramente ao movimento de massas do proletariado. Nossa profunda convicção em nossas ideias comunistas não pode ser confundida com cegueira. É preciso sempre apresentar ponderação, autocrítica, sensatez quando somos abordados sobre a história do movimento comunista e sobre todas as polêmicas no interior da esquerda (que são muito pouco compreendidas pela grande maioria das pessoas).

Evitemos as frases feitas, estereotipadas. Algumas vezes, temos grande apreço por uma ou outra ideia ou citação; conhecemos de cor uma ou outra frase que acreditamos ser perfeita para lidar com tal ou qual problema. Mas então, quando a frase não obtém o efeito esperado, não convence, nos colocamos na defensiva. Percebemos que não sabemos explicar a questão com nossas próprias palavras. Com isso, perdemos credibilidade – quando não, pior, nos afobamos e tratamos de simplesmente ridicularizar a pessoa que não compreendeu de primeira nossa afirmação brilhante…

É necessário um preparo constante, através da leitura e do estudo, para todas as conversas que travamos. Não se pode nunca passar por alto por uma pergunta feita, ou esconder as verdades difíceis e complexas, muito menos nos assustarmos quando não conseguirmos responder a algumas delas.

Normalmente é aqui que se cometem os mais graves erros, se enfiam os pés pelas mãos. É preciso dizer com franqueza, quando não for possível averiguar a resposta a tempo, com segurança: “Não sei; vou investigar e refletir para, depois, responder”. Quão melhor não seria nossa credibilidade se honestamente admitíssemos não ter todas as respostas na ponta da língua, em vez de buscar às pressas um artigo digital qualquer que ecoe nossas posições sem nem antes averiguarmos a veracidade deste artigo! Evitemos passar tais vergonhas, camaradas.

Se por um lado precisamos evitar passar vergonha; ao mesmo tempo, a vaidade deve ser nosso pior inimigo. O agitador ou o propagandista envaidecido perde rapidamente a confiança de seu ouvinte.

“Quem esse sujeito acha que é, acha que é mais inteligente do que nós?”. É fundamental, a todo custo, evitar essa impressão.

Muito melhor é reconhecer a capacidade intelectual de nosso interlocutor expressamente, mesmo quando desejamos confrontá-lo: “Ora, você é um sujeito inteligente, capaz; porque então está ignorando os fatos e exemplos que estou apresentando?”.

É muito melhor provocarmos nosso interlocutor para fora de uma confortável posição de “troll de internet” do que nos fazermos passar por pedantes. Isso mesmo que nosso interlocutor direto seja, efetivamente, um “troll” indisposto ao debate sensato. Além disso ainda é especialmente importante lembrar que nos debates pelas redes sociais, há sempre muito mais espectadores silenciosos do que interlocutores ou “curtidores” de comentários.

Muitas vezes, tentamos resumir uma série de ideias bastante complexas em alguns simples adjetivos. Palavras como “esquerdismo”, “oportunismo”, “degeneração”, “traição”, etc; ainda que possam ter um significado rigorosamente científico, são normalmente encaradas em sua carga moral. Se queremos popularizar o significado científico desses termos e levar ao conhecimento do povo as verdades complexas que elas sintetizam, certamente não basta atirá-las ao adversário como se seus sentidos fossem óbvios.

Também nesse sentido, é muito comum que, quando criticamos a política reformista, a militância comunista insista na afirmação de que as direções reformistas “enganam” o povo. Muito bem. Mas por acaso alguém deixa de se enganar apenas porque foi ridicularizado como um ingênuo crédulo? De modo algum! É inaceitável para um comunista falar a respeito da “enganação” do povo sem esclarecer minuciosamente a natureza e a complexidade do engano em questão. Do contrário, estaremos no mesmo nível dos reacionários que chamam ao povo de “massa de manobra”, porque são incapazes de ver nas massas qualquer inteligência e perspicácia.

Se queremos realmente ganhar para as ideias revolucionárias as massas de pessoas combativas que ainda confiam nas lideranças reformistas, nossa agitprop deve reconhecer a importância que tem a luta das bases das organizações reformistas, ao mesmo tempo em que criticamos as opções táticas, programáticas, etc, das direções reformistas.

Como defendemos ideias radicais, pouco conhecidas ou aceitas, é bastante comum que sejamos acusados de “querer ser a consciência moral da esquerda” ou algo do tipo. Isso é até certo ponto inevitável, e sempre será o argumento daqueles que menosprezam a inteligência e a capacidade da classe trabalhadora: querem que aspiremos menos, como se a massa fosse incapaz de mais.

Não é o nosso caso: sabemos que nossa classe, a classe trabalhadora, pode muito mais do que agradecer migalhas, e queremos contribuir com todas nossas forças para que ela realize plenamente seu potencial revolucionário; sua capacidade de reorganizar a sociedade em bases socialistas, sem qualquer forma de exploração e opressão. Por isso mesmo é fundamental expurgar toda a arrogância na forma de nossas exposições: para que a acusação de pedantismo careça de qualquer base material, e se limite a ser a arma desesperada dos demagogos.

Fiéis e soldados

Neste tema da tolerância, duas questões específicas merecem destaque.

A primeira delas é a abordagem a adotar em face das convicções religiosas de partes de nosso público (as pessoas crentes em sentido amplo, que creem em alguma religião). Normalmente, existem aqui dois tipos de desvios.

Em primeiro lugar, muitas vezes nos abstemos de criticar alguma ilusão religiosa danosa, a fim de não provocar a antipatia do ouvinte. Aqui, são comuns até mesmo alguns casos de analogias pouco rigorosas (por exemplo, buscar explicar o que seja “socialismo” por meio de analogias com a “justiça de Deus realizada na terra como no céu”, etc).

Ainda que esse seja um desvio grave na propaganda teórica escrita, pode muito bem passar na agitação oral, nos casos em que estiver sendo utilizada para elevar à teoria revolucionária um público bastante atrasado politicamente, com poucas referências culturais e teóricas para além das representações religiosas.

Na tarefa de propaganda do materialismo histórico, contudo, não cabe hesitação ao abordar as questões teológicas de um ponto de vista radical. Nossa dificuldade em lidar francamente com a questão do ateísmo em nossa propaganda está bastante relacionada ao sectarismo de nossa agitação em face das pessoas com convicções religiosas.

A questão deve ser encarada da seguinte maneira: do ponto de vista da propaganda do materialismo histórico, consideramos a religião como uma criação cultural humana, originada na injustiça e na miséria do mundo real, como uma forma de protesto e de resistência cotidiana contra essa realidade cruel. Não é apenas “o ópio do povo”, como estamos tão acostumados a lembrar: a fé religiosa é, ao mesmo tempo, o “coração de um mundo sem coração”.

Não importa quantas toneladas de propaganda ateia se atire sobre a cabeça das pessoas: enquanto a sociedade estiver dividida entre exploradores e explorados, haverá religião – essa busca por superar fora do mundo material, na vida após a morte ou na proteção divina, as contradições que no próprio mundo material não se podem resolver imediatamente.

Ao mesmo tempo, a religião pode ser uma poderosa arma das classes dominantes a fim de dividir o povo em facções inimigas, a fim de desviar a atenção das massas dos problemas econômicos e políticos realmente importantes e fundamentais.

Em nossa agitação, portanto, nossa prioridade deve ser não a hostilização das ideias religiosas: devemos unificar as massas trabalhadoras e exploradas em torno de seus interesses materiais, denunciando os interesses por trás da divisão sectária do povo em grupos religiosos rivais; “nos opondo a isso através de uma pregação calma, consistente e paciente da solidariedade proletária e de visão científica de mundo”, (inclusive antirracista e antissexista); uma pregação que não pode se deter em qualquer diferença secundária que instigue nossa divisão.

Por isso, em segundo lugar (e na verdade esse é o desvio mais perigoso), devemos a todo custo evitar responder com sectarismo ateu ao sectarismo religioso tradicional. A militância marxista não pode cometer esse grave erro, tão frequente na agitação dos grupos “racionalistas” não-socialistas, e mesmo algumas vertentes anarquistas. Nada temos a ganhar nos lançando “nas aventuras de uma guerra política contra a religião”.

Muitas pessoas costumam troçar da suposta ingenuidade dos religiosos. Não está em nossas mãos evitar que isso aconteça. Mas está em nossas mãos repudiar todo tipo de escárnio ou hostilização às pessoas religiosas, tanto quanto repudiamos qualquer forma de hostilização às pessoas que não seguem os padrões morais e de costumes majoritários.

A segunda questão específica diz respeito à nossa agitação em face dos soldados e das soldadas. Na verdade, seria mais honesto falar: nossa inexistente agitação em face dessa camada da população pobre. Essa tema renderia uma tonelada de polêmicas. Mas, sem aprofundar muito a questão: é uma tolice pequeno-burguesa incrível ver em cada soldado pobre a personificação da violência reacionária da burguesia. A esquerda proletária, por sua vez, não cede ao pacifismo ingênuo das classes médias ilustradas.

Para o pequeno burguês, todo pobre marchando armado e disciplinadamente é um fascista em potencial (por isso, não raro, compara-se os antifascistas ou mesmo movimentos populares radicais ao fascismo, como “duas violências iguais”). Mas as forças revolucionárias da classe trabalhadora não vêm assim a questão, e sabem que é imprescindível lançar bases para a nossa agitação e nossa propaganda entre os soldados pobres, que não apenas sofrem privações econômicas como diversas opressões e injustiças nas mãos de seus oficiais superiores.

Por isso, nossa hostilidade contra a repressão burguesa não pode se converter em hostilidade contra os soldados. Devemos interpelar o soldado como parte do povo explorado, não o hostilizando como inimigo, mas o constrangendo como indivíduo capaz de optar, sim, entre pôr-se contra ou ao lado da luta popular. Devemos promover as mais amplas campanhas de denúncia contra as arbitrariedades e injustiças econômicas promovidas contra os soldados pobres; e advogar com firmeza seu direito a desobedecer as ordens reacionárias e antipopulares de seus superiores.

Sem querer avançar propostas efetivas de como e sob que bandeiras essa agitação pode se desenvolver, uma coisa é certa: todo contato da militância com tais camadas da população deve ser cuidadoso e paciente. Se estivermos de fato diante de um policial fascista, todo cuidado é pouco, e nenhuma provocação é permissível. No caso contrário, apenas temos a ganhar com um debate paciente e fraterno, sem hostilizações gratuitas.

Displicência

A maior parte desses equívocos se comete por displicência, por não pensar cuidadosamente antes de fazer um comentário, uma postagem, etc. O melhor meio de evitar esses descuidos é atuação coletiva. Antes de publicar uma peça qualquer, sempre vale a pena consultar camaradas de confiança sobre que impressões positivas ou negativas esse conteúdo veiculado pode causar. Como não queremos perder em agilidade para as redes sociais, perdemos em disciplina, coerência, seriedade, paciência, etc.

É preciso evitar um tom “pessoal” demais em nossas publicações virtuais. Não que seja errado falar em tom de familiaridade, como indivíduo com uma história e características particulares. A questão é evitar postagens “de desabafo”, que parecem esquecer que as redes sociais são absolutamente abertas, e não meros “círculos de camaradas”.

O tema do humor também mereceria uma reflexão mais delicada.

Em um país cujo povo se destaca mundialmente na produção de “memes” e piadas, é bastante natural que se cometam diversos “excessos” e abusos. Algumas vezes as piadas são compartilhadas apenas porque “são engraçadas”, revelando nesse caso a displicência hedonista com o uso das redes sociais, em busca de likes ou de construir uma boa imagem pessoal, em detrimento de agitar e propagar ideias comunistas.

Outras vezes, as pessoas fazem vista grossa a aspectos problemáticos do conteúdo de uma peça humorística. Acreditam que veiculando tais conteúdos atingirão mais pessoas, de maneira descontraída e desarmada, obtendo atenção para alguma questão positiva (ainda que as outras questões do conteúdo não estejam de acordo rigorosamente com nossas posições). Não há nenhuma vantagem em obter esse tipo de amplitude, e apenas pode produzir confusões.

O humor pode e dever ser utilizado em nossa agitação. Mas até para isso o agitador precisa refletir previamente com seriedade e cuidado.

Debater com seriedade não significa ser sisudo ou formal em excesso. Mas muitos camaradas acreditam que basta ser irônico, mordaz e engraçado para ser um bom agitador. Com isso, podem até obter a atenção da audiência – mas dificilmente obterão seu respeito no trato das questões mais delicadas e complexas.

Para vencer todas essas dificuldades, o debate de todas as questões em um espírito de paciência explicativa é um ótimo ponto de partida. Para isso, nossa agitprop mesmo nas redes sociais precisa adquirir um caráter cada vez mais coletivo e unificado.

Quando panfletamos nas ruas fazemos mal em apenas distribuir panfletos ao vento: sabemos que precisamos complementar a panfletagem com nossa agitação oral, com conversas, etc. Também aproveitaremos pouco o potencial dessa nossa atuação se, após a panfletagem, não fizermos coletivamente algum balanço: quais foram as principais dificuldades no diálogo? As principais dúvidas? Que boas respostas foram dadas, ou poderiam ter sido dadas mas não foram?

Essa discussão, entre nós, permite melhor ainda mais a qualidade do trabalho de cada um de nós próprios enquanto agitadores e propagandistas. O mesmo deve ser verdade para as redes sociais: em vez de uma atuação individual e espontânea, devemos debater entre nós as situações diversas dessa nova seara de nosso trabalho explicativo.

Quais os melhores grupos nos quais debates? Como lidar com os trolls que apenas enviam memes? Devemos bloquear ou excluir comentários? Essas e muitas outras questões não podem ser deixadas em aberto, como se fossem uma questão de escolha pessoal: devemos estudar e concluir efetivamente quais são os métodos mais eficientes para assegurar a abrangência e a qualidade do conteúdo que difundimos.

A “crise do jornalismo” impresso, precipitada pelo advento das redes sociais, lança inúmeros desafios para a agitprop revolucionária, em especial a leninista (já que, para nós, essa atividade “jornalística” tem até mesmo um significado organizativo profundo). Devemos ter consciência da grandiosidade desses desafios, e de que apenas com discussão e ação coletiva será possível superá-los. Só assim colocaremos que nossa agitação e nossa propaganda à altura das tarefas da revolução socialista em nossa época.


[1] A diferença entre a agitação e a propaganda é um tema a ser estudado cuidadosamente. No presente texto, utilizei o termo agitprop apenas para evitar a repetição de ambas palavras – que, por sua vez, reservamos para os casos de aplicação exclusiva, quando uma questão diz respeito exclusivamente à agitação ou à propaganda.

Não penso, contudo, que possamos deixar de refletir o significado dessa distinção, principalmente em nossa época. A internet modificou significativamente os aspectos de nosso trabalho de “distribuição de literatura”. A “agitação oral” hoje também pode ser feita por meio de áudios em grupos de mensagens, como a propaganda pode ser realizada por meio de vídeos. De todo modo, a melhor síntese sobre a distinção clássica entre a agitação e a propaganda pode ser encontrada em Lenin [Que fazer?], referindo-se a Plekhanov:

“[…] as palavras de Plekhanov: ‘O propagandista inculca muitas ideias em uma única pessoa, ou em um pequeno número de pessoas; o agitador inculca apenas uma única ideia, ou um pequeno número de ideias, em troca, inculca-as em toda uma massa de pessoas’. […]

[Pensamos] (com Plekhanov e todos os dirigentes do movimento operário internacional) que um propagandista, ao tratar, por exemplo, do problema do desemprego, deve explicar a natureza capitalista das crises, mostrar o que as torna inevitáveis na sociedade moderna, mostrar a necessidade da transformação dessa sociedade em sociedade socialista etc. Em uma palavra, deve fornecer “muitas ideias”, um número tão grande de ideias que, de momento, todas essas ideias tomadas em conjunto apenas poderão ser assimiladas por um número (relativamente) restrito de pessoas. Tratando da mesma questão, o agitador tomará o fato mais conhecido de seus ouvintes, e o mais palpitante, por exemplo uma família de desempregados morta de fome, a indigência crescente etc., e apoiando se sobre esse fato conhecido de todos, fará todo o esforço para dar à massa “uma única ideia”: a [ideia] da contradição absurda entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria; esforçar-se-á para suscitar o descontentamento, a indignação da massa contra essa injustiça gritante, deixando ao propagandista o cuidado de dar uma explicação completa dessa contradição. Por isso, o propagandista age principalmente por escrito, e o, agitador de viva voz. Não se exige de um propagandista as mesmas qualidades de um agitador. Diremos que Kautsky e Lafargue, por exemplo, são propagandistas, enquanto Bebel e Guesde são agitadores. Distinguir um terceiro domínio, ou uma terceira função da atividade prática, função que consistiria em “atrair as massas para certos atos concretos”, é o maior dos absurdos, pois o “apelo” sob forma de ato isolado, ou é o complemento natural e inevitável do tratado teórico, do folheto e propaganda, do discurso de agitação, ou é uma função pura e simples de execução. De fato, tomemos, por exemplo, a luta atual dos sociais-democratas alemães contra os direitos alfandegários sobre os cereais. Os teóricos redigem estudos especiais sobre a política alfandegária, onde “apelam”, digamos assim, para se lutar por tratados comerciais e pela liberdade do comércio; o propagandista faz o mesmo em uma revista, e o agitador nos discursos públicos. Os “atos concretos” da massa são, nesse caso, a assinatura de uma petição endereçada ao “Reichstag” contra a majoração dos direitos alfandegários sobre os cereais. O apelo a essa ação emana indiretamente dos teóricos, dos propagandistas e dos agitadores, e diretamente dos operários que passam as listas de petição nas fábricas e domicílios particulares.”

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5 comentários em ““Não sou obrigado”: impaciência e arrogância na esquerda”

  1. Essa foi uma das melhores críticas (ou autocrítica) à esquerda que li ao longo deste ano. Seguindo a linha do Mano Brown: “esqueceu como que fala a língua do povo? vai lá e aprende de novo”… Tenho a impressão que houve uma acomodação em relação à situação e a crença de que as coisas caminhariam como planejado, e pra dar nome aos bois, que o Lula resolveria o problema! Não rolou, agora é assimilar o golpe e se preparar para os próximos rounds!

    Parabéns!

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  2. Texto maravilhoso. Esse foi um ano de muitas rupturas na minha vida, exatamente por não exercitar a paciência nos moldes sugeridos por Fazzio. E haja paciência!

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  3. Na boa, como é poder escrever livremente na internet (Liberdade de expressão e direitos individuais – invenções da Rev. Gloriosa, no séc. XVII – marcos do Liberalismo político, leia-se Direita), mas apoiar partidos que adulam, em pleno séc. XXI, regimes de exceção que proíbem a internet, o Facebook e o Youtube (e apoiam esses Estado de exceção por meio da internet livre, dos direitos individuais garantidos, que, por sua vez, são historicamente perseguidos, presos e assassinados em regimes de esquerda, anti-Liberais, na Europa, Caribe e África)?

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