Notas Críticas à compreensão de Lênin sobre o Estado: revisitando “O Estado e a Revolução”

Por Paulo Henrique Furtado de Araujo

O artigo sustenta que a ausência da compreensão do capital enquanto forma específica de riqueza, de intermediação social, de dominação abstrata e forma autoestruturante da sociedade humana, limita a compreensão de Lênin sobre o Estado moderno e condiciona o tipo de solução emancipatória humana que ele teoriza e implementa. Desta incompreensão resulta um tipo de marxismo, dominante ao longo do século XX, que apresenta três características particulares e que não estão presentes em Marx: estatolatria, politicismo e a tomada do proletariado como o demiurgo da emancipação. O livro de Lênin, O Estado e a Revolução, condensa essas limitações e é aqui analisado criticamente. 


  1. Introdução

Com Marx, entendemos que o capital é uma relação social que instaura uma forma específica de sociabilidade na qual a dominação social ocorre primeiramente sob uma forma abstrata, semimaterial; trata-se da dominação dos produtos do trabalho humano sobre os produtores. O capital instaura uma forma específica de constrangimento social que domina a todos os homens, aprisionando a humanidade numa lógica de produção pela produção e impedindo a humanização. Necessariamente associado a essa causalidade estruturante de sua própria sociabilidade, a lógica do capital envolve a relação entre proletário e capitalista, a exploração do primeiro pelo segundo, as classes sociais com seus interesses antagônicos, a propriedade privada dos meios de produção, o Estado moderno enquanto forma política necessária à contínua autoexpansão do valor, etc.

No presente artigo, cotejamos o entendimento de Lênin sobre o Estado moderno e as formas de sua superação com essa compreensão que temos do que seja capital em Marx.

  1. Marx, capital, política e classes sociais

Marx, no primeiro capítulo do Livro I de O Capital, nos diz que a riqueza nas sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias e a mercadoria aparece como sua forma elementar. Em seguida,  movimenta-se para além dessa forma aparencial e passa a analisar a própria mercadoria, capturando o par antitético constitutivo de sua essência – valor de uso e valor. A contradição entre valor de uso e valor  exterioriza-se no ato da troca, de tal maneira que o valor de troca é a expressão, a manifestação do valor. Marx, ao longo do primeiro capítulo da referida obra, demonstra logicamente que os limites das formas simples e desdobrada do valor levam à necessidade da forma geral ou universal, e a passagem dessa forma para a forma dinheiro  dá-se pela eleição, realizada pelo próprio mundo das mercadorias, de uma mercadoria especial para operar como equivalente geral dentro do mundo das mercadorias. Ela passa a ter o monopólio social dessa representação, pois há uma fusão social entre a sua forma natural e a forma equivalente (MARX, 2013, p. 145).

Na sequência de sua exposição, ele demonstra logicamente a necessidade da transformação do dinheiro em capital. Pois a circulação das mercadorias em sua concretude só pode vir a ser na presença do dinheiro, ou ainda, o dinheiro é a contraparte necessária da circulação de mercadorias. A forma específica de circulação mercantil sob a lógica do capital (D-M-D), mesmo sem considerarmos a expansão do valor (D` > D), indica que o objetivo dos que negociam não é o valor de uso, mas a posse de valor. No entanto, só faz sentido logicamente terminar a circulação com um quantum maior de dinheiro (representante do valor) do que iniciou o processo. Em suma, o capital (valor em expansão), enquanto relação social fundada na compra da mercadoria força de trabalho pelas personificações da lógica do capital, tem, por determinação causal ontológica, a produção de mercadorias em larga escala. E a mercadoria é o que é no mundo do capital por ser produto do trabalho proletário, dado que esse é portador de um duplo caráter (produtor de valor de uso e valor simultaneamente). A mercadoria  põe-se como forma mediadora social e forma automediadora e é um momento fundamental no processo de expansão do valor.

A compreensão marxiana das categorias constitutivas da totalidade social do modo de produção capitalista exige a apreensão adequada do trabalho proletário como produtor de valor e de mercadoria e como momento central e causal-estruturante desse todo. Além disso, exige a atenção adequada para a categoria mais-valor relativo. A extração de mais-valor relativo de forma generalizada e enquanto forma predominante de extração de mais-valor só pode ocorrer a partir do predomínio da grande indústria enquanto forma específica de produção capitalista. Com ele, a lógica do capital impulsiona uma constante transformação das formas de produção de mercadorias, dos valores das mercadorias e do padrão de tempo constitutivo das mercadorias. De tal maneira que tudo é revolucionado constantemente de modo a garantir a reprodução do mesmo: da sociabilidade do capital e dos seus constrangimentos humanos-societários.

Importante destacar, para os objetivos do presente artigo, que essa apreensão dos constrangimentos impostos à nossa espécie pela lógica do capital (lógica constituída por nossa própria espécie humana) marcou época no pensamento de Marx. De tal maneira que podemos falar de uma crítica marxiana ontológica do econômico e que é a terceira grande crítica ontológica que realiza Marx (após as críticas ontológicas da política e da filosofia)[1]. No entanto, é preciso ter em mente que essa última crítica altera a compreensão que Marx tinha da dinâmica societária do mundo do capital. Ou ainda, é preciso considerar que há uma alteração em sua compreensão da possibilidade da emancipação do homem. Mais precisamente, a crítica ao capital implica uma crítica ao trabalho proletário. Portanto, uma crítica à forma específica de dominação por ele instaurada: a dominação das coisas exteriorizadas pelos produtores sobre os próprios produtores, uma dominação abstrata, semimaterial. Agora, a política enquanto momento intelectivo do mundo dos homens perde importância para Marx. Ou, dizendo o mesmo de outra maneira, sua apreciação primeva, apresentada na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e em textos imediatamente posteriores, da revolução política enquanto momento necessário, mas não suficiente da revolução radical (a que emancipa a humanidade), adquire uma nova envergadura. O centro da crítica não se encontra mais na propriedade privada, na divisão social e técnica do trabalho, no mercado enquanto instância mediadora das relações sociais, nas classes sociais e nas lutas de classe, mas naquilo que estrutura esse conjunto categorial: capital e trabalho proletário. Não significa dizer que esse conjunto categorial não tenha importância ou que não tenha que ser atacado e suprassumido no processo da revolução radical. Lógico que isso é necessário, mas o ataque a eles individualmente ou mesmo em conjunto é insuficiente se não se tem por télos a eliminação do trabalho proletário e de sua contraparte, o capital.

Supondo que essa apreensão do pensamento marxiano seja adequada, é preciso identificar nos textos posteriores aos Grundrisse e a O capital a perda de centralidade do referido conjunto categorial e o ganho de densidade para essa forma específica de dominação, que exige uma crítica e uma modificação radical na forma do trabalho humano. Tomando por referência quatro escritos de Marx do período em questão – Guerra Civil na França (e seus três rascunhos)(1871), Crítica ao Programa de Gotha (1875), Resumo Crítico a Estatismo e Anarquia de Mikhail Bakunin (1874) a carta (e seus esboços) a Vera Zasulitch (1881) – e comparando-os com textos que antecedem a citada ruptura –  Manifesto Comunista (1848), A Ideologia Alemã (1845-46), Glosas Marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano” (1844), Sobre a Questão Judaica (1843), Manuscritos Econômico-filosóficos (1844), Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (1843) –, defendemos que a hipótese acima esboçada  confirma-se[2].

A constatação desse giro analítico realizado por Marx a partir da instauração de sua crítica ontológica do econômico  coloca-nos o desafio adicional de sinalizarmos qual o tratamento que ele passa a dar às categorias de classes sociais e suas lutas, ao Estado e à política, sem perder de vista a necessária superação desse conjunto categorial no devir do processo emancipatório humano.

Advogamos, com Postone (2014, p. 363ss.), o entendimento de que a classe social em O Capital é uma categoria relacional, ela “delineia uma relação social moderna, mediada pelo trabalho de maneira aparentemente objetiva”. Ou seja, a prioridade ontológica é do tipo de trabalho produtor da riqueza específica (valor) do capitalismo: trabalho proletário. Por isso, a luta de classes “é estruturada e incorporada nas formas sociais da mercadoria e do capital”. Dessa maneira, ao contrário do que usualmente se entende no âmbito do marxismo, a luta de classes não é a força motriz da mudança histórica do capitalismo. A força motriz, e relação mais fundamental, radica em um nível mais essencial, constitutivo da totalidade dinâmica da sociedade do capital: na própria mediação social constitutiva dessa sociabilidade. De todo modo, é necessário elucidar a relação entre essa dinâmica e as classes sociais no construto teórico marxiano.

Postulamos, ainda com Postone (ibidem), que a principal crítica de Marx ao capitalismo e à lógica do capital não é a da exploração da força de trabalho. Pois, ao apreender a especificidade do excedente nesse modo de produção enquanto mais-valor, Marx descobre uma dinâmica social específica a ele e totalmente enraizada em relações sociais reificadas, alienadas. Ou dizendo o mesmo de outro modo, em Marx, a luta entre capitalistas e proletários na sociedade capitalista é importante não apenas porque a exploração é central em sua teoria, mas principalmente “porque as relações de exploração de classe são um elemento importante da dinâmica de desenvolvimento da formação social como um todo” (ibidem, p. 366). Mas, ressaltamos, a luta de classes não é a relação causal original do desenvolvimento dinâmico do todo societário. Essas relações de exploração de classe contribuem para essa dinâmica apenas “na medida em que são constituídas e incorporadas nas formas de mediação social” (idem ibidem) específicas da sociabilidade do capital.

Para Postone (ibidem), a forma como Marx introduz a luta de classes em O capital esclarece essa contribuição. Enquanto ação social coletiva, a luta de classes, nos diz Postone, pode se referir a um grande espectro de situações. Duas dessas se destacam: a luta de classes enquanto ação social coletiva revolucionária e enquanto ação social coletiva que age no cotidiano. Em O capital, Marx, ao tratar das formas de extração de mais-valor, apresenta esse último tipo de ação “como um momento intrínseco do capitalismo (ibidem, p. 366). De tal maneira que o conflito é intrínseco às relações entre proletários e capitalistas, pois são elas constituídas, em boa medida, pela troca de mercadorias na qual se defrontam dois direitos iguais. E, nos diz Marx, entre direitos iguais quem decide é a força. A troca da mercadoria força de trabalho por salário não impõe, por sua natureza mesma, barreira alguma à duração da jornada de trabalho, à intensidade do trabalho ou à extração de mais-valor. A luta de classes pela regulamentação da intensidade do trabalho e da duração da jornada de trabalho demonstra que um sistema social estruturado pelas trocas de mercadorias e a própria luta de classes “não se baseiam em princípios opostos; essa luta não representa uma perturbação em um sistema de outra maneira harmonioso. Pelo contrário, ela é inerente a uma sociedade constituída pela mercadoria como forma totalizante e totalizada” (ibidem, p. 367). Por isso, conclui Postone na sequência da citação anterior, é que “a luta de classes está enraizada de várias maneiras nessa forma aparentemente objetal de mediação social”.

Marx, prossegue Postone, demonstra que as determinações da relação entre proletários e capitalistas, no que diz respeito ao consumo da mercadoria força de trabalho por parte dos últimos, não são dadas a priori, não são o resultado do uso direto da força. Pelo contrário, são objetos de negociação e conflito e, com isso, evidencia que são relações constituídas de forma indireta, intermediada, na qual a mercadoria atua como mediação social entre os homens. Postone (ibidem, p. 368) acrescenta que essa relação de classe envolve um permanente conflito, pois a forma do antagonismo social (acima descrito) “é, em si, tanto uma determinação da subjetividade social como da objetividade social” (idem ibidem). Ela é uma contradição objetiva e, ao mesmo tempo, “uma determinação da autoconcepção das partes envolvidas” (idem ibidem). No contexto social estruturado pela forma de mediação social que é a mercadoria, a luta de classes entre proletários e capitalistas “está enraizada nas formas específicas pelas quais as necessidades e as exigências são compreendidas e articuladas […] isto é, como consciência social e concepções de direitos associados a uma relação estruturada dessa forma” (idem ibidem). Essas autoconcepções são constituídas historicamente e não de forma automática, e o seu conteúdo é “resultado do modo de mediação social determinado pela mercadoria” (idem ibidem).

Através da ação coletiva, o proletariado pode obter algum controle sobre a mercadoria força de trabalho. Em Marx, a mercadoria, enquanto forma de mediação social estruturante da sociedade capitalista, envolve as conexões quase objetivas entre as singularidades humanas e, ao mesmo tempo, enforma as instituições sociais coletivas. Portanto, assinala Postone (idem ibidem), “não há oposição ou tensão entre o desenvolvimento de formas coletivas, em si, e as relações sociais estruturadoras da sociedade capitalista”. Basta relembrar que no Livro 1 de O Capital, o capítulo VIII (“A Jornada de Trabalho”) é o penúltimo[3] capítulo antes da Seção 4 (“A Produção do Mais-Valor Relativo”). Ou seja, Marx apresenta a luta da classe trabalhadora inglesa pela limitação da duração da jornada de trabalho e por uma intensidade do trabalho aceitável e, na sequência, demonstra como a lógica do capital constitui formas mais aperfeiçoadas de extração de mais-valor, que já não precisam acionar o aumento da jornada de trabalho ou da intensidade do trabalho. Ainda  após a implantação do novo processo produtivo que permite a extração de mais-valor relativo, as personificações do capital utilizam todos os mecanismos possíveis para a extração de valor e mais-valor. A ação coletiva do proletariado viabiliza e estimula a produção de mais-valor relativo e, assim, acicata as “inter-relações determinadas entre produtividade, mais-valor, riqueza material e a forma de produção [fundada na grande indústria]” (ibidem, p. 369). Nessa moldura necessariamente dinâmica, o antagonismo subjacente às relações de classe  apresenta-se como conflitos constantes, e esses devêm momentos essenciais no desenvolvimento da totalidade dessa sociabilidade. “Eles se tornam aspectos intrínsecos da vida cotidiana na sociedade capitalista” (ibidem, p. 239).

Outro aspecto a ser destacado é que os conflitos entre proletários e capitalistas são mediados por uma forma totalizante, de tal maneira que sua importância ultrapassa os limites do espaço local. Pois a produção e circulação de capital  põem-se de tal forma, que um conflito em um setor ou área geográfica específica atinge outros setores e/ou áreas. Em outras palavras, a luta de classe do cotidiano torna-se um estimulante para o desenvolvimento da sociabilidade do capital.

Todavia, é preciso destacar que a luta de classe entre proletários e capitalistas, ainda que seja um acicate da expansão e da dinâmica do capitalismo, não cria a totalidade integradora da sociabilidade do capital e, tampouco, engendra sua trajetória. Essas são explicadas pela forma de mediação social específica (quase objetiva e dinâmica) dada pelo valor. A sociedade capitalista enquanto totalidade apresenta uma dinâmica direcional que lhe é intrínseca e que Postone caracteriza como dialética da transformação e reconstituição. Tais características da sociedade do capital não podem ser engendradas pela referida luta de classes: “essas lutas só têm o papel que têm por causa de formas de mediação específicas desta sociedade. Ou seja, a luta de classes só é uma força propulsora de desenvolvimento histórico do capitalismo porque está estruturada e incorporada nas formas sociais da mercadoria e do capital (ibidem, p. 370). Mais uma vez, na sociedade do capital, a luta de classes entre proletários e capitalistas em torno da apropriação do excedente econômico é uma força impulsionadora da história devido às formas de mediação específicas de sua constituição.

É evidente que a categoria classe social em Marx é relacional, ou seja, classes  determinam-se em relação a outras classes. Além disso, a contradição entre produtores de excedente e apropriadores do excedente, que tem por cerne suas relações com os meios de produção, é axial para a análise marxiana de classe. De todo modo, essas constatações não interditam a especificação da noção de classe a partir das formas de mediação social acima destacadas. Ainda que o conflito entre produção e apropriação seja uma característica imanente à relação entre proletários e capitalistas, tal conflito sozinho não os constitui enquanto classes. Diz Postone (ibidem, p. 371):

“Na análise de Marx, a estrutura dialética das relações sociais capitalistas é de importância central; ela totaliza e dinamiza a relação antagônica entre trabalhadores e capitalistas, constituindo-a como luta de classes entre trabalho e capital. Esse conflito, por sua vez, é um momento constituinte da trajetória dinâmica do todo social. As classes, de fato, são categorias relacionais da sociedade moderna. Elas são estruturadas por formas determinadas de mediação social como momentos antagônicos de uma totalidade dinâmica e, portanto, em seu conflito, tornam-se dinâmicas e totalizadas.”

No Livro 1 de O Capital, a luta de classes entre proletários e capitalistas é um momento da dinâmica totalizadora da forma específica de mediação da formação social capitalista. No entanto, seu antagonismo não é a “contradição estrutural fundamental da formação social [capitalista]” (ibidem, p. 376). Aí, as classes referidas “não são entidades, mas estruturações da prática e da consciência sociais que, em relação à produção de mais-valor, são organizadas de forma antagônica; elas são constituídas por estruturas dialéticas da sociedade capitalista e impulsionam o seu desenvolvimento, o desenrolar de sua contradição básica” (ibidem, p. 372).

A análise de Marx não elimina que outros grupos sociais ou estratos sociais desempenhem papéis histórica e politicamente importantes (por exemplo: grupos religiosos, étnicos, nacionais, de gênero, etc.). Contudo, o conflito de classe entre proletários e burgueses tem, em Marx, um papel central na análise da trajetória histórica da sociedade do capital.

Com Postone, ressaltamos que o acima exposto tem por objetivo indicar que a relação entre proletários e capitalistas no Livro 1 de O Capital deve ter por parâmetro a forma específica de relação social e forma de dominação abstrata presente na sociedade do capital. Portanto, nesse nível de abstração, não é possível desvelar os processos específicos “pelos quais uma classe se constitui social, política e culturalmente em um nível mais concreto, ou, com relação a isso, a questão da ação coletiva social e política” (idem ibidem). De todo modo, as determinações de classe, como as que ocorrem com o proletariado, que ao mesmo tempo é o proprietário da mercadoria força de trabalho e é, ele próprio, objeto do processo de valorização, não são posicionais. Pelo contrário, essas determinações são tanto da objetividade social quanto da subjetividade social. Portanto, Marx, no Livro 1, não está definindo objetivamente a classe social a partir de sua posição dentro da estrutura social e, feito isso, buscando determinar como essa classe  constitui-se subjetivamente. Se assim o fizesse, a articulação entre objetividade e subjetividade social seria extrínseca à dinâmica em si da mediação social do valor e teria por fundamento a noção de interesse.

Postone (ibidem, p. 373) destaca que a “dimensão subjetiva de uma determinação de classe em particular deve ser distinta da questão das condições sob as quais muitas pessoas agem como membros de uma classe”. Além disso, a dimensão subjetiva da classe, já em seu nível mais abstrato, não pode “ser entendida apenas diante da consciência dos interesses coletivos se as concepções particulares desses interesses, bem como a noção de interesse em si, não são compreendidas no contexto social e histórico”. A consciência, para Marx, nunca é um simples reflexo das condições objetivas. Na verdade, com Postone, há a reafirmação de que as formas de mediação básicas e específicas do capitalismo, e que se fundam sobre a mediação da mercadoria, tramam as formas de consciência enquanto momentos intrínsecos de formas do ser social. Mais uma vez: para Marx, as determinações de classe envolvem “formas de subjetividade determinadas social e historicamente […] que estão enraizadas nas formas de mediação social como constituem diferencialmente uma classe em particular” (idem ibidem). Portanto, a categoria de classe é constitutiva de uma estrutura teórica que visa desvelar “a determinação histórica e social de várias concepções e necessidades sociais, bem como de formas de ação” (idem ibidem).

Por outro lado, a classe social, que é estruturada pelas formas de mediação social e pelo movimento de autoexpansão do valor, que, por sua vez, impõe uma dinâmica expansiva e direcional à totalidade do mundo dos homens, é uma forma do ser social estruturadora de sentido e consciência social. O que não significa que todas as singularidades individuais, que podem ser posicionadas de maneira semelhante, tenham as mesmas crenças e, tampouco, que a ação social e política seja determinada diretamente pelo cariz da classe social. Em verdade, a ação social e as formas de subjetividade em sua especificidade histórica e social podem ser reveladas em termos da noção de classe. Diz Postone (ibidem, pp. 373-374) que: “A natureza das exigências sociais e políticas, ou das formas determinadas das lutas associadas a tais exigências, por exemplo, pode ser compreendida e explicada social e historicamente em relação à classe, contanto que a classe seja compreendida com referência às formas categoriais”.  Apreender a subjetividade  a partir de determinações mais gerais dadas pelas formas de relações sociais é fazê-lo social e historicamente. Ou seja, como as mesmas categorias são a base explicativa da estrutura dinâmica da sociedade do capital e da subjetividade própria à essa sociedade, é possível analisar criticamente as formas subjetivas “diante da adequação da sua autocompreensão e [d]a sua compreensão da sociedade” (ibidem, p. 374). Portanto, as questões que permitirão um maior grau de concretização da categoria classe social (por exemplo: constituição social, política e cultural, ação coletiva, autoconsciência, etc.) deverão ser tratadas a partir desse arranjo estruturante acima exposto.

A proposta interpretativa de Postone, que esboçamos rapidamente, modifica a forma tradicional pela qual são apreendidos o conflito de classe e as relações de exploração  no capitalismo. A luta de classes aparece como elemento impulsionador do desenvolvimento capitalista devido ao dinamismo das relações sociais constitutivas dessa sociedade, pois o conflito entre produtores diretos e proprietários dos meios de produção, por si mesmo, não a constitui. Além disso, nega a ideia de que a luta entre proletários e capitalistas seja a luta entre a classe dominante no capitalismo e a classe que é a encarnação do socialismo; assim, essa luta não aponta, por si mesma, para além do capital. A luta de classes para o proletário  apresenta-se, no cotidiano, enquanto mecanismo de manutenção e melhoria de sua condição de membro do proletariado. Cabe destacar que essas lutas, ao longo dos últimos 150 anos, foram decisivas para a colocação de travas na máquina de sucção de valor que é o capitalismo, de modo que permitiram o aumento da participação das massas trabalhadoras  na democracia formal e estimularam o surgimento de um tipo de capitalismo organizado, e que  o Estado cumpre um papel cada vez mais importante no processo de acumulação de capital. O construto teórico de Marx surge, então, como negação de que a trajetória do capitalismo engendre uma possibilidade futura (na sociedade emancipada) da afirmação do proletariado e de seu trabalho. Na verdade, aponta para a possível e necessária abolição do trabalho proletário na sociedade emancipada. Mais uma vez, a sociedade comunista (mesmo em sua fase inferior) não possibilita a realização plena do proletariado, antes há de se verificar o seu desaparecimento. Finalmente, com Postone (ibidem, p. 376): “Assim, embora desempenhe um papel importante na dinâmica do desenvolvimento capitalista, o antagonismo entre a classe capitalista e a classe trabalhadora não é idêntico à contradição estrutural fundamental da formação social […]”.

  1. Lênin, o Estado e a emancipação humana

Tomaremos por referência o livro O Estado e a Revolução de Lênin na exposição a seguir.

O livro foi escrito entre agosto e setembro de 1917, nos meses imediatamente anteriores à Revolução Bolchevique, e é um marco nas polêmicas que Lênin trava ao voltar à Rússia em abril de 1917, e que envolvem, por um lado, o posicionamento do partido bolchevique sobre a tática a ser empregada após a revolução de fevereiro de 1917,  e, por outro, a diferenciação que Lênin constrói no interior da social-democracia europeia desde a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Além disso, o livro apresenta a teoria marxista de Lênin sobre o Estado e os caminhos da revolução. Neste sentido, é proposta de desdobramento para a práxis política da forma como Lênin figurava o mundo do capital. De tal maneira que essa figuração condicionou o tipo de desdobramento prático e intervenções concretas que os bolcheviques adotaram ao longo do processo revolucionário e, até mesmo, serviu de baliza para críticas entre os revolucionários do século XX. Adiantando a nossa perspectiva crítica, este livro apresenta, de forma clara e articulada, o tripé constitutivo do marxismo órfão da teoria crítica do valor de Marx: adoração do Estado (estatolatria), fé na política enquanto momento resolutivo único da emancipação humana (politicismo) e o proletário (por sua posição na produção de valor) enquanto messias salvador da humanidade. Faremos um rápido resumo crítico do livro de Lênin, procurando evidenciar esses pontos.

Acompanhando José Paulo Netto (PAULO NETTO, 2007, p. 151), entendemos que o livro  estrutura-se em torno de três eixos: “a ideia da imediata destruição da máquina estatal burguesa, a tese da ditadura do proletariado e a viabilidade da extinção do Estado”. No entanto, vamos avaliar criticamente como Lênin resolve cada uma das ideias fundamentais presentes nestes eixos. E mais ainda, vamos confrontar essas ideias com as formulações de Marx após a descoberta da teoria crítica do valor trabalho.

No capítulo I de O Estado e a Revolução (“As classes sociais e o Estado”), Lênin recorre aos livros A origem da propriedade privada e do Estado e Anti-Düring (ambos de Engels) para (segundo ele) restaurar a verdadeira doutrina de Marx sobre o Estado e demonstrar que o Estado é produto da contradição inconciliável das classes sociais (LÊNIN, 2007, p. 27). De imediato, assinalamos que Lênin toma como idênticas as posições de Marx e Engels, o que, sabemos, não é o tratamento adequado. Dentre outros motivos, porque Engels não demonstrou compreender, em toda sua amplitude, o valor enquanto a forma de relação social que molda, modela e estrutura o ser social sob a lógica do capital. Ou ainda, Engels, ao contrário de Marx, toma as classes como momento causal-explicativo do Estado moderno, desconsiderando a sociabilidade específica produzida pela lógica do capital. Chega, com isso, a propor uma doutrina geral marxista para a formação do Estado, desconsiderando o que há de específico na determinação recíproca existente entre Estado moderno e capital. Em suma, Engels e Lênin não compreendem que o valor em expansão tem prioridade ontológica em relação às classes sociais e ao Estado moderno. E que, portanto, não se trata de uma simples mudança jurídico-política para a emancipação humana, mas que esta exige uma mudança radical na práxis humana vital. Ainda que, logicamente, tal mudança só possa vir-a-ser a partir da práxis política.

No último item desse capítulo (4. “‘Definhamento’ do Estado e a revolução violenta”), Lênin apresenta o núcleo duro de sua concepção politicista para a resolução da emancipação humana, retomando o argumento de Engels sobre o definhamento do Estado (ENGELS, 2015, p. 316ss.) e considerando a contradição entre forças produtivas e relações de produção que Engels já tomara enquanto chave explicativa. Lênin reforça a ideia, presente em Engels, de que, no capitalismo, a contradição  dá-se entre esse par categorial, de tal maneira que as forças produtivas desenvolvidas pela lógica do capital não são em si contraditórias com a emancipação humana. O limitador para esta emancipação são as relações de produção. Em outras palavras: Lênin[4], seguindo Engels, identifica nas grandes plantas produtivas organizadas com base num planejamento científico e minucioso pelos capitalistas e seus gerentes, na formação de empresas por ações e na posse de correios, telégrafos e ferrovias pelo Estado, os embriões da sociedade do futuro. A conclusão lógica, portanto, é a de que a constituição dessa sociedade exige a mudança jurídica da forma de propriedade dos meios de produção. Sendo tudo isso propriedade do Estado e sendo o Estado não mais da burguesia, mas do proletariado, a condição desses meios de produção operarem como capital desaparece. Ou seja, desaparece o capital e o capitalismo e com eles as classes sociais e o Estado definha e some. Em resumo: mudam as relações de produção e conservam-se as forças produtivas herdadas do capitalismo. Sem qualquer referência ao valor enquanto forma específica de sociabilidade, sem perceber que a forma específica de dominação no capitalismo é a dominação abstrata do valor contido nas mercadorias sobre os produtores. Desconsiderando que a maquinaria moderna, que tipifica a grande indústria enquanto forma específica de produção capitalista, subsume o trabalhador (trabalho vivo, direto, imediato) ao trabalho passado, morto, contido na máquina. E que, por esse motivo, a tarefa da revolução comunista é eliminar essa forma de dominação abstrata, modificando a própria forma da produção dos valores de uso. O que exige algo para além da política, mas partindo da própria política.

Voltando aos termos propostos por Lênin neste item final do primeiro capítulo, temos a reafirmação da propositura de Engels de que o proletariado, ao tomar o poder do Estado e transformar os meios de produção em propriedade do Estado,  extingue-se enquanto proletariado e, com ele, desvanecem todas as classes, extinguindo-se assim o Estado enquanto Estado. Engels acrescenta na terceira edição (1894) de Anti-Düring que “O Estado não é ‘abolido’, mas definha e morre” (ENGELS, 2015, p. 316). Corretamente, Lênin (2010, p. 37) assinala que as palavras de Engels são uma síntese da experiência da Comuna de Paris de 1871. Para ele, a extinção/abolição do Estado burguês ocorre com a revolução proletária; no entanto, as palavras de Engels sobre “definhamento e ‘morte’ do Estado se referem aos vestígios do Estado proletário que subsistem depois da revolução socialista.” (idem ibidem).

Antes de prosseguir e expor o que Lênin entende por Estado proletário ou semi-Estado, é importante retomar as considerações de Marx a partir da experiência da Comuna de Paris. Lembrando que tais reflexões são posteriores à constituição de sua  crítica do valor e ressaltando que Lênin (2010, p. 105) não só conhecia como cita essa passagem. Marx (2012, p. 43) faz a seguinte colocação: “Pergunta-se, então, por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão?” [Grifo nosso]. Não se trata da permanência do Estado, mas de funções sociais análogas às funções observadas no Estado moderno. Nesse primeiro momento Lênin  mantém-se próximo a essa ideia, mas introduz algo novo: o Estado proletário. E são os vestígios dele que desaparecerão ao longo da construção da sociedade comunista. Notadamente, utiliza o parágrafo seguinte da Crítica ao Programa de Gotha para sustentar seu argumento[5]. Todavia, assinalamos aqui que Marx utiliza poucas vezes o conceito de ditadura do proletariado[6] e nos parece frágil a utilização desse trecho para sustentar todo o edifício teórico construído por Lênin, o qual padece, conforme já dito, da negligência da teoria crítica do valor de Marx.

Portanto, para Lênin, a ditadura do proletariado é o Estado proletário que se instaura com a tomada do poder do Estado moderno pelo proletariado, e esse, por sua vez, é a vanguarda dos oprimidos e de todos os trabalhadores pobres e explorados (LÊNIN, 2010, pp. 107-108). O Estado proletário tem que necessariamente expropriar os capitalistas e, assim, os meios de produção passam a ser da classe trabalhadora, o que põe fim ao capitalismo. Lênin acrescenta que o Estado burguês só pode ceder lugar ao Estado proletário por meio de uma revolução violenta. E é o Estado proletário quem irá definhar e desaparecer.

O capítulo II (“A experiência de 1848-1851”) apresenta um esforço de Lênin em associar os textos Manifesto Comunista e Miséria da Filosofia aos resultados da revolução de 1848-1851, e com isso ele retoma O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Neste capítulo, há três momentos em destaque: (1) a ideia de que o Estado (em geral e não somente o Estado moderno) é uma organização especial da força destinada a subjugar uma classe ou conjunto de classes sociais. Ou seja, o Estado é um aparelho coercitivo e repressor. Ele opera uma dominação política que garante a manutenção da exploração das maiorias do povo trabalhador. Portanto, a tarefa do proletariado revolucionário é abater, quebrar, destruir o Estado burguês e, não, aperfeiçoá-lo. (2) a ideia de que o proletariado necessita do poder político consubstanciado em sua Ditadura (Estado Proletário), para centralizar a força, organizar a violência e “reprimir a resistência dos exploradores e dirigir a enorme massa da população – os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários – na ‘edificação’ da economia socialista” (ibidem, p. 46). E o proletariado pode cumprir este papel graças às condições econômicas de sua existência: “Em virtude do seu papel econômico na grande produção, só o proletariado é capaz de ser o guia de todos os trabalhadores e de todas as massas que, embora tão exploradas […] quanto ele, e mesmo mais do que ele, não são aptas para lutar independentemente por sua emancipação” (idem ibidem). (3) a ideia da necessidade do marxismo formar a vanguarda do proletariado pela educação do partido dos trabalhadores (рабочую партию, Arbeiterpartei)[7], tornando este partido “capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, capaz de dirigir e de organizar um novo regime, de ser o instrutor, o chefe e o guia de todos os trabalhadores, de todos os explorados, para a criação de uma sociedade sem burguesia […]” (idem ibidem).

Neste capítulo, evidencia-se a ênfase que o autor dá à luta de classes como momento resolutivo da emancipação humana – o papel que adquire o proletariado na condução política das classes exploradas, a necessidade da instauração do Estado proletário (Ditadura do Proletariado) e o partido revolucionário marxista enquanto vanguarda do proletariado. No entanto, a interpretação do Estado (em geral) enquanto aparelho coercitivo e repressor  parece-nos por demais restrita. Já no livro primeiro de O capital, o Estado pressuposto nos capítulos iniciais é posto, ainda que de forma inercial, por exemplo, no capítulo 8 (“A jornada de trabalho”). Nele, Marx descreve a luta do proletariado inglês pela regulamentação de uma jornada de trabalho normal, que tem seu ápice com a legislação fabril inglesa para o período de 1833-1864. O que, nos parece, evidencia que o Estado moderno não é somente (e tampouco Marx assim o entende) um aparelho de coerção e repressão. O que não significa dizer que esse Estado não tenha em seu núcleo duro o uso da coerção enquanto recurso ou tampouco que ele não o utilize sempre que a lógica da valorização assim o exigir. Sobre a necessidade de destruição do Estado moderno,  parece-nos que é exatamente o entendimento de Marx; contudo, ao contrário de Lênin, para ele não se trata de construir um Estado proletário, mas de organizar a vida social da humanidade em busca consciente de sua emancipação, com base na comunidade. Voltaremos a isso em seguida, mas adiantamos que, no nosso entendimento, a ditadura do proletariado é a própria comunidade humana, a sociedade dos produtores livremente organizados. Portanto, um não-Estado e, sim, uma forma ainda política, que traz em si funções análogas à aquelas existentes no Estado moderno.

Não podemos esquecer que, para Marx, ao menos no Livro primeiro de O capital, no item 4 (“A fábrica”) do capítulo 13 (“Maquinaria e grande indústria”), o proletário é apresentado como o indivíduo que se “desefetiva” na medida em que produz valor; quanto maior sua produtividade, maior sua “desefetivação”. Ou ainda, estando o capitalismo organizado sob a sua forma específica de produção, a grande indústria, a máquina moderna que caracteriza a produção da grande indústria, subsume realmente o trabalho vivo ao trabalho morto, e desta forma ele é um apêndice vivo de um mecanismo morto de produção. Desta maneira, a humanidade do proletário é obliterada, sua vida alienada e seu “dinamei” (δυνάμει) humano negado, sua condição humana evanescendo na mesma proporção em que um maior quantum de valor  objetiva-se nas mercadorias que produz. Nas palavras de Marx (2013, pp. 494-495):

“Enquanto o trabalho em máquinas agride ao extremo o sistema nervoso, ele reprime o jogo multilateral dos músculos e consome todas as suas energias físicas e espirituais. Mesmo a facilitação do trabalho se torna um meio de tortura, pois a máquina não livra o trabalhador do trabalho, mas seu trabalho de conteúdo. Toda produção capitalista, por ser não apenas processo de trabalho, mas, ao mesmo tempo, processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador; porém, apenas com a maquinaria essa inversão adquire uma realidade tecnicamente tangível. Transformado num autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto a dominar e sugar a força de trabalho viva. A cisão entre as potências intelectuais do processo de produção e o trabalho manual, assim como a transformação daquelas em potências do capital sobre o trabalho, consuma-se, como já indicado anteriormente, na grande indústria, erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade detalhista do operador de máquinas individual, esvaziado, desaparece como coisa diminuta e secundária perante a ciência, perante as enormes potências da natureza e do trabalho social massivo que estão incorporados no sistema da maquinaria e constituem, com este último, o poder do “patrão” (master).”

Desta forma evidencia-se que o tipo de práxis desenvolvida pelo proletário no processo de produção de mercadorias não o torna um agente privilegiado da emancipação. Justo ao contrário, sua práxis é a negação da autoemancipação. Ela constrói, como argumentamos na primeira parte deste artigo, as condições abstratas de dominação que ultrapassam a dominação direta e a dominação de classe sobre classe. Mas  fique claro que tal reconhecimento não significa retirar a importância do proletariado no processo de emancipação humana. Tal importância radica na possibilidade de construção de um aparato ético-moral fundado no trabalho (em geral) e em sua característica distintiva: a solidariedade entre os que trabalham. Apenas a partir de tal arcabouço é possível pensar na mobilização do conjunto das classes subalternas e exploradas, considerando agora o conjunto de questões que se põe para além da práxis humana vital produtora de mercadorias: gênero, raça, nacionalidades, culturais, ecológicas, etc.

Quanto à questão do partido dos trabalhadores que, segundo Lênin, deveria ser a vanguarda do proletariado e conduzir os explorados na construção do socialismo, assinalamos inicialmente que em Crítica ao Programa de Gotha, Marx não fala de socialismo, mas de fase inferior da sociedade comunista. Ou seja, a revolução política instaura a sociedade comunista, na qual a forma política é a comunidade dos homens livremente associados (e não um Estado Proletário); contudo, na primeira fase dessa sociedade, na fase de transição a partir da sociedade capitalista, o direito burguês irá vigorar devido às condições amesquinhadas da produção da vida material. Neste período, a forma política da gestão da vida social será a Comuna (Ditadura do Proletariado), que traz em si funções análogas às do Estado moderno, mas que já não é um Estado. Lembrando que o Estado moderno opera como a contraparte necessária da sociabilidade do capital, como garantidor da contínua expansão do valor, como instância de resolução temporária das tendências centrífugas próprias à lógica societária do capital[8], e sem descuidar que, na primeira fase da sociedade comunista, ainda haverá produção mercantil em alguns ramos e setores econômicos, e que, portanto, a sociabilidade do valor  far-se-á presente. E isto devido aos limites próprios do recuo das barreiras naturais, ou ainda, do avanço das forças produtivas, sendo este o fundamento ontológico para a vigência do direito burguês nesta fase. Por último, destacamos que um partido marxista enquanto movimento de ideias se faz necessário em qualquer sociedade em que domina a lógica do capital. A forma específica deste movimento deve  adequar-se às especificidades histórico-concretas de cada formação social. Em outras palavras, um partido centralizado, nos moldes leninista, parece ser muito adequado para contextos como o da Rússia czarista do final do século XIX, mas não parece ser proveitoso tomá-lo como modelo de validade universal.

No capítulo III (“O Estado e a revolução: a experiência da Comuna de Paris (1871) – Análise de Marx”), Lênin tem por foco desmistificar o parlamentarismo (de mencheviques e da maioria da social-democracia alemã do período) e um possível aperfeiçoamento do Estado moderno enquanto caminho para a emancipação humana. Almeja, ao mesmo tempo, repelir o utopismo (anarquista), sinalizando que Marx, partindo da experiência do movimento de massas, captura as formas concretas que poderiam tomar a organização do proletariado enquanto classe dominante e em que medida esta organização “se conciliaria com uma inteira e metódica ‘conquista da democracia’” (LÊNIN, 2010, p. 61).  Para isso, recorre aos textos do próprio Marx, em particular a Guerra Civil na França. A ênfase maior recai sobre a necessidade da destruição do Estado burguês e sua substituição pela Comuna. Contudo, se para Marx a Comuna já não é um Estado, mas um órgão político que guarda funções do Estado moderno, para Lênin (ibidem, pp. 62-63),  a Comuna começa a criar uma espécie de Estado que já não é “propriamente falando, o Estado”. E uma vez quebrada a resistência da burguesia, esta espécie de Estado começa a definhar. Logicamente, Lênin reafirma as qualidades da Comuna frente ao Estado moderno e que possibilitam o avanço no rumo da consolidação do que ele chama de sociedade socialista: a Comuna enquanto assembleia de trabalhadores ao mesmo tempo legislativa e executiva, a revogabilidade dos mandatos e cargos, remuneração desses representantes equivalente ao que é recebido por um trabalhador qualificado, etc.

Aqui é necessário que façamos um destaque: para Lênin, corretamente, a revolução tem que ser feita com os homens existente no aqui e agora. No entanto, acrescenta que todos eles devem  subordinar-se à vanguarda armada dos explorados, isto é, ao proletariado. A hierarquia “específica” dos funcionários da empresa capitalista deve ser substituída, no dia seguinte à tomada do poder do Estado, por funções simples de contramestre e contador, que poderão ser desempenhadas por indivíduos da população urbana mediante o pagamento de um salário de trabalhador qualificado. Lênin (ibidem, p. 70) arremata dizendo:

“Organizemos a grande indústria, segundo os modelos que o capitalismo oferece  Organizemo-la nós mesmos, operários, seguros de nossa experiência operária, impondo uma disciplina rigorosa, uma disciplina de ferro, mantida pelo poder político dos trabalhadores armados; reduzamos os funcionários ao papel de simples executores da nossa vontade, responsáveis e amovíveis, […]. Esse programa, aplicado na base da grande produção, acarreta por si mesmo o ‘definhamento’ progressivo de toda a burocracia, o estabelecimento gradual de um regime inteiramente diferente da escravidão do assalariado […][9].”

O inusitado é a proposta de organizar a grande indústria de acordo com os modelos que o capitalismo oferece, com disciplina rigorosa no local de trabalho, portanto, com produção mercantil (de valor) e pagamento de salários. E esta organização por si mesma levaria ao “estabelecimento gradual” de um regime diferente da “escravidão do assalariado”. Associado com a preocupação, difusa ao longo do texto, em reduzir as diferenças salariais, em eliminar os privilégios dos prepostos da burguesia na máquina estatal, e com a centralidade da luta contra a exploração, a opressão e a pobreza, temos um exemplo acabado do que Postone diz ser o marxismo tradicional. Incapaz, nos seus termos, de compreender que o determinante, estruturante, das classes, da exploração da força de trabalho, etc., é a sociabilidade fundada no valor em expansão, a qual instaura uma forma específica de dominação, a dominação abstrata.

O capítulo IV (“Esclarecimentos complementares de Engels”) tem por base textos de Engels posteriores à experiência da Comuna de Paris (O problema da habitação, “Prefácio de 1891” à Guerra civil em França, Carta à Bebel de 18-28 de março de 1875 e a crítica ao Programa de Erfurt enviada à Kautsky em 29 de junho de 1891), e o interesse de Lênin é apresentar mais considerações sobre o Estado de transição e sobre a democracia. Em resumo, Lênin argumenta que a supressão do Estado é a supressão da democracia enquanto forma política do Estado moderno. Na sociedade socialista, permanece o princípio  da submissão da minoria pela maioria, portanto, o sufrágio enquanto instrumento decisório permanece. O objetivo final do proletariado é a supressão do Estado e o Estado é entendido, a partir de Engels, como o órgão da violência organizada e sistemática, e de toda coação sobre os homens em geral. Contudo, isto não significa que autoridade e subordinação desapareçam de imediato. Estas, diz Engels corretamente e reafirma Lênin, têm seus limites e funcionalidade traçados pelas condições de produção da vida material dos homens. De fato, a revolução comunista deverá pôr fim nas funções políticas do Estado, pois estas são destinadas ao domínio sobre as classes subalternas e à garantia da continuidade da reprodução do valor em expansão. Com a superação da sociabilidade fundada no capital, as funções políticas desaparecerão em conjunto com outras funções análogas às do Estado moderno e, em seu lugar, surgirão simples funções administrativas[10], voltadas aos interesses da comunidade (gemeinwesen).

Lênin (2010, p. 97) percebe corretamente, assim como Engels, que a democracia (forma política) por si mesma não leva à fase inferior do comunismo. E que uma das questões “fundamentais da luta pela revolução social” é “desenvolver a democracia até o fim, procurar as formas desse desenvolvimento, submetê-las à prova prática, etc.”. Na construção da fase inferior, a democracia não pode ser considerada isoladamente, mas deve ser tomada em conjunto, pois “exercerá a sua influência sobre a economia, cuja transformação precipitará, sofrendo também ela a influência do desenvolvimento econômico etc.”. Em outras palavras, a política (democracia) é tomada como momento necessário, mas não suficiente, da entificação da sociedade dos homens livres. O problema é que Lênin não parece desdobrar essa constatação e isso pode ser explicado pela ausência, ao longo do livro que estamos analisando, de referências às formulações de Marx sobre a teoria crítica do valor trabalho, presentes já no livro primeiro de O capital. Aqui destacamos o fato de que não se trata de um desconhecimento desta obra de Marx por parte de Lênin. O que ele não compreendia era o valor enquanto forma específica de sociabilidade e isso, penso, explica o porque da inexistência de referências.

Um ponto que Lênin não consegue resolver adequadamente é o expresso por Engels na carta a Bebel de 18-28 de março de 1875, ao propor a substituição, no texto do Programa de Gotha, da palavra “Estado por Gemeinwesen [comunidade], uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune [comuna]” (ENGELS, 2012, p. 56). Acreditamos que nesta categoria de comunidade está a chave resolutiva da suprassunção do Estado moderno no processo revolucionário[11]. A ideia de vida comunal, de constituição da comunidade (Gemeinwesen), no devir da emancipação humana materializa o momento da reabsorção do poder político alienado do cidadão e da reintegração entre o homem político e o homem econômico. A comunidade é a forma organizativa que viabiliza essa síntese dialética e que tem por base uma sociabilidade não mais fundada no valor. Ou seja, que exige uma mudança na práxis humana vital, de tal modo que o trabalho deixe de ser proletário e  torne-se primeiramente um trabalho produtor de homens e, como resultado secundário, produtor de valores de uso. Desta forma, a Comuna é um não-Estado com funções análogas ao Estado. Contudo, tal intelecção só é possível considerando o valor como forma de intermediação social, forma de riqueza e forma automediadora no capitalismo. Exatamente tudo o que falta na compreensão de Lênin e que Engels apenas tangencia[12].

No capítulo V (“Condições econômicas do definhamento do Estado”), Lênin retoma suas concepções apresentadas nos capítulos anteriores, utilizando basicamente Crítica ao Programa de Gotha e tendo por foco a primeira fase da sociedade comunista – que ele chama (com Engels) de socialismo –, destaca a necessidade de uma reorganização da economia de forma que qualquer trabalhador médio seja capaz de administrar os meios de produção.  Esse, para ele, será o caminho para a superação da referida primeira fase e o início da verdadeira vida emancipada dos homens.

No início do capítulo (item 1. “Como Marx expõe a questão”), procura demonstrar que não há uma divergência de opiniões entre Marx e Engels no que diz respeito ao Estado e ao seu definhamento. E citando a Crítica ao Programa de Gotha de Marx, destaca o trecho (citado acima) em que Marx fala que, na sociedade comunista, as funções sociais análogas às funções do Estado  manter-se-ão, mas o Estado em si já não mais existirá. No item 2 (“A transição do capitalismo para o comunismo”), Lênin inicia com o trecho da Crítica ao Programa de Gotha em que Marx fala da ditadura do proletariado enquanto Estado na transição entre o capitalismo e o comunismo. Lênin (2010, p. 106) conclui que: “[…] a passagem da sociedade capitalista para a sociedade comunista é impossível sem um ‘período de transição política’ em que o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado”. E se pergunta das relações entre essa ditadura e a democracia. Em síntese, Lênin (ibidem, p. 107) argumenta que a democracia da sociedade capitalista é para uma fração diminuta da população, ou seja, em suas palavras, “para os ricos”. Seu mecanismo de funcionamento é eivado de “limitações, exceções, exclusões e obstáculos para os pobres”; seus expedientes , na prática, “eliminam os pobres da política e da participação ativa na democracia”. A ditadura do proletariado (Estado no período de transição entre o capitalismo e o comunismo) traz consigo uma democracia para a maioria do povo, ao mesmo tempo em que esmaga a minoria de exploradores. E adverte que: “Só o comunismo está em condições de realizar uma democracia realmente perfeita; e, quanto mais perfeita for, mais depressa se tornará supérflua e por si mesma se eliminará” (ibidem, 2010, pp.109-110).

O arremate deste item é interessante, pois Lênin diz que o Estado ainda é necessário nessa transição entre capitalismo e comunismo na medida em que a repressão à minoria exploradora se faz necessária. Deste modo, só no comunismo é que o Estado  torna-se inteiramente supérfluo por não haver mais a quem (no sentido social) coagir. Lógico que ele não descarta a existência de excessos individuais que exigirão formas de repressão. Contudo, para ele, isso não exigirá um aparelho especial de repressão, bastando o próprio povo armado para cumprir tal tarefa.

Antes de prosseguir, é preciso apontar três questões aqui: (1) a leitura de Lênin de Crítica ao Programa de Gotha parece deixar escapar a ironia presente na pena de Marx. Ou seja, Marx não está afirmando que um Estado se faz necessário na transição entre capitalismo e socialismo. Pensamos, com Pogrebinschi (2009, p. 173ss), que ele ironicamente diz aos lassallianos, os quais, no esboço do Programa de Gotha de 14-15 de fevereiro de 1875, falavam da “base livre do Estado (MARX, 2012, p. 87), que na transição ao Comunismo o Estado é a ditadura revolucionária do proletariado que já não é um Estado. Indicando que Estado livre é um não-Estado.  (2) Lênin imputa, a partir de um único e curto parágrafo, à Marx a existência de uma fase de transição entre capitalismo e comunismo que é distinta tanto de um quanto de outro, desconsiderando, mais uma vez, que Marx, no texto em questão, polemiza com os lassallianos, que advogavam o surgimento “da organização socialista do trabalho total” (idem ibidem) a partir de cooperativas subsidiadas pelo Estado. Além da fragilidade bibliográfica, falta uma leitura imanente a Lênin e que seja capaz de integrar em seu argumento a categoria comunidade (Gemeinwesen) e o valor enquanto forma específica de sociabilidade. Em suma: entendemos que Marx indica a transição entre capitalismo e comunismo na primeira fase do comunismo. Nela não há um Estado, mas o início da constituição da Comuna (que é um não-Estado com funções análogas ao Estado moderno), e, nesse período, o direito burguês vigora, pois a sociabilidade do valor ainda opera em ramos e setores da vida econômica e porque nos setores e ramos libertos de tal sociabilidade os trabalhadores receberão bens de consumo de acordo com o tempo de trabalho destinado à produção social, de forma semelhante ao que ocorre na troca de mercadorias, ainda que o conteúdo e a forma dessas trocas sejam inteiramente distintos. Voltaremos em seguida a isso. (3) Nada mais estranho e distante da reflexão de Marx após os Grundrisse e O capital do que o argumento de Lênin fundado na dicotomia pobres e ricos. O cerne da crítica de Marx não se dá nestes termos da apropriação da riqueza ou da renda, mas da própria forma de produção da riqueza, da especificidade da riqueza no capitalismo. E isso Lênin parece não compreender.

Os itens 3 (“Primeira fase da sociedade comunista”) e 4 (“A fase superior da sociedade comunista”) deste capítulo condensam as compreensões e os problemas do modelo interpretativo proposto por Lênin para a emancipação humana. Em primeiro lugar, Lênin destaca que, na primeira fase da sociedade comunista (segundo ele, corretamente chamada de socialista –  cf. LÊNIN, 2010, p. 114), o distintivo é a mudança da propriedade jurídica dos meios de produção, que deixam de ser propriedade privada de indivíduos e  tornam-se propriedade de toda a sociedade. Sequer desconfia da necessidade da mudança da forma específica de sociabilidade posta pelo valor e limita toda sua análise à esfera da distribuição. E mesmo quando repete Marx no trecho da Crítica ao Programa de Gotha em que este descreve que cada trabalhador receberá certificados do quantum de trabalho que forneceu à sociedade para receber um equivalente em valores de uso a serem consumidos, Lênin não compreende a necessidade da modificação do tipo de trabalho aí envolvido: a exigência do fim do trabalho proletário[13]. O fundamental para ele é a eliminação da exploração do homem pelo homem através da eliminação da forma jurídica de propriedade, ou ainda, transformando os meios de produção em propriedade do Estado proletário (o que ele entende ser Ditadura do Proletariado). Com esta mudança, a injustiça da exploração desaparece, mas a injusta repartição dos bens de consumo entre os trabalhadores permanece e só poderá ser superada na fase superior da sociedade comunista, quando existir uma “produtividade do trabalho muito diferente da de hoje, assim como um homem muito diferente do de hoje” (ibidem, p. 116).

Antes de avançarmos para a fase superior, é preciso fazer mais duas observações: (1) para Lênin, o direito burguês só é parcialmente abolido porque a revolução econômica foi realizada apenas no que diz respeito à propriedade dos meios de produção. Segundo ele, o direito burguês é o “regulador (fator determinante) da repartição dos produtos e do trabalho entre os membros da sociedade” (ibidem, p. 114), o que é uma inversão da prioridade ontológica da esfera do econômico em relação à superestrutura jurídica. No entanto, Lênin não se dá conta disso. Ele prossegue explicando que esse defeito da primeira fase desaparecerá quando “os homens souberem […] trabalhar para a sociedade sem normas jurídicas de nenhuma espécie” (idem ibidem), o que só “o hábito” (ibidem, p. 109) pode garantir, estando necessariamente associado à elevação da produtividade do trabalho. E isso, por sua vez, exigirá que, na construção da fase superior, “a sociedade inteira não seja mais do que um grande escritório e uma grande fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salário” (ibidem, p. 121)[14]. (2) Como o direito burguês permanece, Lênin (ibidem, p. 114) conclui que a necessidade do Estado permanece; desde que conserve a propriedade jurídica comum dos meios de produção, ele irá conservar “a igualdade do trabalho e a igualdade da repartição”. Arremata dizendo que o Estado só morre quando não existirem mais capitalistas e classes sociais. De todo modo, o raciocínio desenvolvido por Lênin  leva-o a uma contorção categorial e intelectual. No início do texto, ele nos fala que o Estado é abolido e desaparece, e agora nos diz que não somente na transição entre capitalismo e comunismo, mas na própria sociedade comunista, o Estado burguês subsiste:

“[…]. O direito burguês, no que concerne à repartição, pressupõe, evidentemente, um Estado burguês, pois o direito não é nada sem um aparelho capaz de impor a observação de suas normas.

Segue-se que, durante um certo tempo, não só o direito burguês, mas ainda o Estado burguês, sem burguesia [grifo nosso], subsistem em um regime comunista” (ibidem, p. 118).

Com isso, desaparece toda a argumentação de Marx sobre as funções análogas do Estado moderno que permanecem na comuna, sem falar da inexistência da ligação entre a sociabilidade do capital e o Estado moderno.

Sobre a fase superior da sociedade comunista, Lênin toma o trecho de Crítica ao Programa de Gotha em que Marx (2012, p. 31) esboça traços gerais da fase superior da sociedade comunista e fala do desaparecimento da subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão social do trabalho e, com ela, da oposição entre trabalho manual e intelectual. No mesmo trecho, Marx diz que “quando o trabalhado tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância”, então, o direito burguês poderá ser superado e teremos: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” (idem ibidem). Contudo, Lênin  prende-se à questão do desenvolvimento das forças produtivas enquanto condição para o desaparecimento  da oposição entre trabalho manual e intelectual. Oposição que para ele é uma das principais fontes de desigualdade social do capitalismo. E organiza seu argumento com base na contradição entre as forças produtivas e as relações de produção: “Vendo, desde já, o quanto o capitalismo entrava essa expansão [das forças produtivas], e quanto progresso se poderia realizar, graças à técnica moderna já alcançada, estamos no direito de afirmar, com uma certeza absoluta, que a expropriação dos capitalistas dará um prodigioso impulso às forças produtoras da sociedade humana” (LÊNIN, 2010, p. 115).

A partir dessa última citação, evidencia-se que Lenin entende que as forças produtivas desenvolvidas sob a lógica do capital são neutras. Ou ainda, entende que são o lado positivo da contradição, sendo o negativo as relações de produção capitalistas. Por isso, ele pode propor a organização da sociedade comunista como uma grande fábrica herdada do capitalismo e a transformação de todos os indivíduos em proletários. O momento causal, estruturante, da sociedade capitalista não se encontra, para ele, no tipo de trabalho e, portanto, de sociabilidade que o valor em expansão estabelece. Aquele está posto nas formas jurídicas da propriedade dos meios de produção, nas relações de produção, nas classes sociais e na exploração e opressão da maioria da sociedade condicionadas por esses momentos causais.  Assim, ele pode explicar a obtenção da fase superior do comunismo através da participação da população na gestão da vida econômica e social (radicalização democrática) e da simples mudança de hábitos dos indivíduos associada aos aumentos de produtividade. E, com isso, pode também esquecer as considerações de Marx sobre o trabalho deixar de ser meio de vida e  tornar-s a primeira necessidade vital e sobre o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos[15], pois essas mudanças exigem o fim do trabalho proletário e, não, sua generalização e perenidade. Sem compreender, Lênin propõe um tipo de sociedade na qual o capital e sua lógica permanecem operando e estruturando toda a sociabilidade humana e, assim, impedindo a realização omnilateral do homem.

O capítulo VI (“Vulgarização do marxismo pelos oportunistas”) é uma polêmica com Plekhanov, Kautsky e Bernstein, na qual Lênin procura explicitar o que é o Estado em geral e associá-lo à questão da revolução. Ou seja, ao expor o que, para ele, é a verdadeira doutrina de Marx e Engels sobre o Estado, Lênin quer retirar uma tática para a revolução iminente na Rússia de 1917.

  1. Considerações Finais

Lênin constrói um modelo geral para explicar o Estado nas sociedades humanas, e atribui tal modelo a Marx, deixando de lado, arbitrariamente, qualquer referência à teoria crítica do valor de Marx. Assim, o Estado (em geral) é resultado da existência das classes sociais e da divisão social do trabalho e funciona como aparelho de coerção e repressão. Lênin, provavelmente pensando na Rússia czarista de sua época e na necessidade de apresentar uma tática para a revolução iminente, defende que há uma fase de transição entre o capitalismo e o comunismo, na qual o Estado é a ditadura do proletariado. A função desse Estado é operar como instrumento de repressão das classes exploradoras e, portanto, garantidor do processo revolucionário. Quando a propriedade dos meios de produção passarem a ser integralmente do Estado proletário, quando a burguesia tiver desaparecido, e com ela as classes sociais, então teria início a fase inferior da sociedade comunista. A diferença entre esta e a fase superior é devida à existência da divisão social do trabalho e da oposição entre trabalho manual e intelectual. Ambas serão superadas com o aumento da produtividade do trabalho, que, por sua vez, será executado por todos os indivíduos de acordo com as técnicas herdadas da forma típica de produção capitalista: a grande indústria. Pois a tecnologia é neutra e não envolve formas de subsunção real do trabalho vivo ao trabalho morto. Com o avanço fantástico das forças produtivas, possível graças ao fim da propriedade privada dos meios de produção, o lema “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” será uma realidade. E, com isso, o Estado, finalmente, desaparece. O que é interessante, pois ele inicia o livro explicando que o Estado capitalista será abolido por meio de uma revolução violenta e que o Estado proletário desaparece, e finda dizendo que, na sociedade comunista, o Estado burguês sem burguesia  mantém-se.

Tal modelo desconhece que Marx não fala de uma sociedade de transição entre o capitalismo e o comunismo. Para ele, a transição ocorre na fase inferior da sociedade comunista, na qual inclusive o Estado já não mais existe, pois a revolução proletária tem por tarefa a destruição do Estado moderno e a organização da Comuna ou comunidade (Gemeinwesen) em seu lugar. A Comuna possui funções análogas às do Estado moderno, mas ela mesma já não é um Estado. Pois nela inicia-se a reabsorção do poder político alienado do indivíduo. O que exige, ao mesmo tempo, a reorganização da práxis humana vital, ou seja, uma mudança radical no tipo de sociabilidade fundada no valor e no trabalho produtor de valor. O que coloca a necessidade de outras tecnologias produtivas, de outras formas de organizar a produção dos valores de uso, etc. E somente nestas bases o trabalho deixará de ser meio de vida e  tornar-se-á a primeira necessidade vital, e isto possibilitará o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos e o desenvolvimento das forças produtivas numa proporção na qual haja valores de uso em abundância para todos.

Em suma, Lênin constrói um modelo teórico voltado para a ação prática que traz em si três características que marcarão o marxismo tradicional ao longo do século XX e início do século XXI: uma adoração do Estado (estatolatria), uma fé na política enquanto esfera resolutiva da emancipação humana (“politicismo”) e uma fé no proletário enquanto redentor da humanidade. Com essa crítica, não estamos dizendo que a política não seja necessária para a emancipação humana. Ela é necessária, mas não suficiente. Tampouco estamos dizendo que o proletariado não tenha destaque no processo de superação da sociabilidade do capital; contudo, tomando simplesmente a produção capitalista, ser proletário é ser um indivíduo mutilado, é ter sua potencialidade humana negada diariamente. Logo, não é a função econômica que irá credenciá-lo a operar como sujeito da revolução contra o capital. O que pode credenciá-lo é  pôr-se em movimento, enquanto classe, não para se realizar enquanto proletário, mas para negar essa sua condição. Pois trabalho proletário é a contraparte necessária do capital e, dessa maneira, a revolução contra o capital é também contra o trabalho proletário. E este seria o caso da política que nega a si mesma ao ser implementada, demonstrando o limite intrínseco e a necessidade da política para a emancipação humana.

* O autor é professor da Faculdade de Economia da UFF, membro do NIEP-MARX-UFF e do GEPOC-UFF.


[1] Com Chasin (2009) entendemos que Marx realiza uma ruptura ontológica com seu passado de hegeliano ao afirmar, em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que o importante não é buscar a coisa da lógica, mas a lógica da própria coisa. De modo que, o ser em si adquire centralidade na explicação do mundo dos homens e os momentos epistemológicos e gnosiológicos  tornam-se submetidos à essa prioridade do ontológico. Nos textos posteriores a esses dois citados, Marx prossegue com a crítica ontológica da filosofia e da política e, após os Grundrisse e O capital, realiza a crítica ontológica do econômico e completa sua apreensão materialista do mundo dos homens.

[2] A esse respeito, conferir Araujo (2016).

[3] O último é o capítulo IX (“Taxa e Massa de Mais-Valor”).

[4] Lênin explicita isso nos capítulos III e V (2010, pp. 70-71 e 120-122).

[5] “Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura do proletariado”. (MARX, 2012, p. 43)

[6] Conforme Pogrebinschi (2009, pp. 96-97), Marx utiliza a expressão “ditadura do proletariado” sete vezes em toda sua obra. E destes sete, em apenas dois momentos Marx os utiliza em textos destinados à publicação: Lutas de Classe na França e Crítica ao Programa de Gotha. Assim como para a autora,  parece-nos que esse é um conceito que em si tem pouco relevo e importância para Marx. Sobre essa questão, ver Araujo (2015).

[7] Infelizmente, a tradução da Editora Expressão Popular utiliza sistematicamente operário no lugar de trabalhador, o que altera por completo o significado e sentido da teoria de Lênin.

[8]A esse respeito ver Araujo (2012, 2013, 2014 e 2016) e Mészáros (2002)

[9] Conforme já dito anteriormente, a tradução da Editora Expressão Popular utiliza operário no lugar de trabalhador. Portanto, sugerimos que onde está escrito operário nesta citação, leia-se trabalhador.

[10] Sobre isso, nos diz Lênin (2010, p. 101): “Não desejamos o advento de uma ordem social em que caducasse o princípio da submissão da minoria à maioria. Mas, em nossa aspiração ao socialismo, temos a convicção de que ele tomará a forma do comunismo e que, em consequência, desaparecerá toda necessidade de recorrer à violência contra os homens, à submissão de um homem a outro, de uma parte da população à outra. Os homens, com efeito, habituar-se-ão a observar as condições elementares da vida social, sem constrangimento nem subordinação”.

[11] Vide a respeito Araujo (2016).

[12] Sobre isso, vejamos a parte que antecede a última citação apresentada de Engels (2012, p. 56):

“[…], embora já o escrito de Marx contra Proudhon e, mais tarde, o Manifesto Comunista digam de maneira explícita que, com a instauração da ordem socialista da sociedade, o Estado dissolve-se por si só e desaparece. Não sendo o Estado mais do que uma instituição transitória, da qual alguém se serve na luta, na revolução para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isso, nossa proposta seria substituir, por toda parte, a palavra Estado por Gemeinwesen, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune”.

[13] Diz Marx (2012, p. 30):

 “[…]. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma, agora ele a obtém de volta em outra forma.

Aqui impera, é evidente, o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes. Conteúdo e forma são alterados [grifo nosso], porque, sob novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo. No entanto, no que diz respeito à distribuição desses meios entre os produtores individuais, vale o mesmo princípio que rege a troca entre mercadorias equivalentes, segundo o qual uma quantidade igual de trabalho em uma forma é trocada por uma quantidade igual de trabalho em outra forma”.

O destaque é dado para a mudança de forma e conteúdo no processo de troca, pois não se trocam mais mercadorias, uma vez que já não existe mais o trabalho proletário.

[14] Do ponto de vista da teoria crítica do valor, tal raciocínio é um disparate. O que Lênin propõe é a generalização da “unilateralização” do homem pelo trabalho alienado em nome da emancipação humana. O que em si é um absurdo. A revolução que Marx pensa é contra o trabalho proletário, ou ainda, contra a obrigatoriedade do trabalho produtor de mercadorias e “desefetivador” dos homens. A seguir, selecionamos mais duas passagens em que Lênin aprofunda tal disparate:

“[…], a questão essencial da política hoje: a expropriação dos capitalistas, a transformação de todos os cidadãos em trabalhadores, empregados de um mesmo grande ‘sindicato de produção’, o Estado, e a inteira subordinação de todo o trabalhos desse sindicato a um Estado verdadeiramente democrático, o Estado dos sovietes […]” (LÊNIN, 2010, p. 117).

“[…]. Todos os cidadão se transformam em empregados assalariados do Estado, personificado, por sua vez, pelos operários [trabalhadores] armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários [trabalhadores] de um truste universal de Estado. Trata-se apenas de obter que eles trabalhem uniformemente, que observem a mesma medida de trabalho e recebam um salário uniforme. […]” (ibidem, pp. 120-121)

[15] Destaco o fato de que Marx não se refere aqui ao homem que trabalha como trabalhador, mas como indivíduo, indicando que, nessa nova formação social, o trabalho é apenas um momento da vida plena do homem, que é, portanto, a primeira necessidade vital para a concretização da humanização do homem.


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