Onde vivem e o que comem os Cripto-Estalinistas e o caráter material do anti-intelectualismo

Por Fernando Savella

A acusação de “cripto-estalinistas” foi recebida pelos comunistas com um profundo estranhamento. Foi proferida com tanta naturalidade quanto demonstrou a grande distância entre seu enunciador e aqueles a quem se dirigia. A distância? A distância de um intelectual voltado à pureza e toda a vagueza da intelectualidade e a plebe, não a plebe econômica, mas a plebe que está fora do circuito da respeitabilidade acadêmica, um pacto entre um seleto grupo de intelectuais que devem sua posição distinta a nada mais nada menos do que à negação da política e à defesa vazia da objetividade científica, o olhar de cima. E não estamos falando aqui de nenhum estruturalista, funcionalista ou weberiano, estamos falando de marxistas. Sendo mais justos com o título de “marxista”, que merece muito mais crédito do que isso, estamos falando de marxianos ou, no limite, de leitores descompromissados de Marx e dos cânones marxistas.


O embate entre os seletos intelectuais e os comunistas se deu em termos bem particulares. Uma infeliz comparação entre a Revolução Cultural e o fascismo brasileiro promovido pelo presidente eleito em 2018 (ando preferindo ocultar o nome para fins estéticos) colocou em polvorosa todos aqueles preocupados com a função fundamental do anti-comunismo na escalada da brutalidade que o capital se utiliza para impor à classe trabalhadora seu projeto de austeridade e de aumento vertiginoso da exploração do trabalho. Sem entrarmos aqui no mérito de analisar os pontos da comparação, já dissecados por muitos outros camaradas, vale compreender porque esse tipo de aberração ocorre entre intelectuais tão distintos. O ponto da nossa abordagem está justamente no fato destes serem “distintos”. A distinção que permite que o intelectual crie um termo esdrúxulo como “cripto-estalinista” sem se preocupar com o bom tratamento da crítica e, mais do que isso, acreditar que a acusação resolve todo o problema da crítica, apenas incluindo seus interlocutores nessa amálgama maléfica dos estalinistas irracionais, incapazes de apreciar os pontos de vista qualificados dos distintos intelectuais.

A distinção intelectual

Antes de tudo, quem é o nosso objeto aqui? Acadêmicos de prestigiadas universidades, em posições de altíssima legitimidade nas ciências sociais brasileiras. Indivíduos que passaram pela universidade, por conceituados programas de doutorado, diplomaram-se até o ponto mais alto permitido pela titulação concedida pelo Estado. Obviamente estamos falando aqui de indivíduos pertencentes às camadas superiores da pequena-burguesia, senão em termos de renda, em termos de prestígio simbólico que lhes é conferido pelo seu ofício intelectual, o suprassumo do distanciamento simbólico do populacho, do povo que deve trabalhar para sobreviver. Não tenho má fé aqui e não digo que tais indivíduos desprezam a classe trabalhadora: na realidade é bem o contrário, mas sua atuação ao lado dos interesses burgueses não depende de forma alguma do desprezo consciente à classe trabalhadora. Depende, em seu lugar, do desprezo inconsciente pelas lutas da classe trabalhadora e a valorização das lutas da própria classe, a pequena-burguesia.

Os distintos intelectuais do campo de esquerda, mesmo muitos ditos marxistas, que tentam sempre seguir os pressupostos teóricos fundados pelo marxismo, não foram forjados obviamente pela necessidade de lutar politicamente. Foram forjados numa trajetória muito particular que os levou a espaços em que passaram a se adaptar aos imperativos simbólicos vigentes, no caso das humanidades nas universidades brasileiras, a uma perspectiva teórica crítica e, acima de tudo, na cultura intelectual, a uma posição teórica que providencie os argumentos mais sólidos e o comprometimento moral mais ligado às necessidades políticas em voga em nosso tempo. Com raras exceções, a intelectualidade brasileira nunca esteve comprometida em “colocar a mão na massa” das lutas políticas, em geral se envolvendo apenas na produção teórica acerca dessas lutas, na crítica por meio dos meios de comunicação, na cúpula de partidos com vocação institucional – em suma, tudo aquilo que não tenha a ver com o trabalho manual e preserve a posição da intelectualidade na hierarquia entre trabalho intelectual e manual, fundamental para a divisão das classes, forjada tanto nas relações de trabalho quanto nos aparelhos do Estado, em especial, o sistema educacional que pune o manual e premia o mérito especificamente intelectual.

O estilo de vida pequeno-burguês apresenta ao pequeno-burguês uma série de valores e de comportamentos interiorizados pela sua socialização ligados à pureza do intelecto e ao valor superior do intelecto em relação ao trabalho manual. Bem como apresenta ao pequeno-burguês algumas prioridades que, numa sociedade absurdamente desigual, fazem muito sentido. A manutenção de uma boa renda, de um estilo de vida afastado das periferias e de suas lutas diárias, ou mesmo das lutas diárias dos espaços em que vivem, mas que ainda assim são as lutas somente da classe trabalhadora, são o mínimo para que um pequeno-burguês viva em paz e tranquilo, e nisso, suas lutas imediatas se resumem às suas posições de legitimidade, no caso dos intelectuais, dentro das universidades e dos meios midiáticos próprios de seus circuitos. Se preocupam com o prestígio que seu artigo terá, com a validade de seus argumentos, com a reação de seus pares, suas conversas em seus eventos, etc. Nada mais justo, afinal, é o dia a dia e as relações mais próximas dos intelectuais que estão em jogo, o mínimo a ser mantido a partir de sua posição inicial, de um pequeno-burguês bem formado e bem socializado.

A própria existência desse grupo privilegiado de pessoas e a sua criação material por meio do trabalho e do Estado é o que gera sua distinção em relação à classe trabalhadora. E não é só uma distinção dada, é uma distinção em que os pequeno-burgueses realmente acreditam e atribuem valor. É a distinção que torna o seu conhecimento e compreensão do mundo superiores aos da classe trabalhadora, muitas vezes nem num sentido moral, mas puramente no sentido da validade do conhecimento. O conhecimento produzido na universidade é aquele conhecimento inabalável, defendido com unhas e dentes pelo currículo e pela trajetória impecável de sua vanguarda, sempre, é claro, pelos critérios do mérito intelectual. A distinção se converte em um meio de aprovação do conhecimento produzido, puramente por se tratar nos termos do culto ao intelecto e suas formas legítimas de criação.

O intelecto isolado

Voltemos ao nosso caso concreto: por parte dos intelectuais do embate, os comunistas foram caracterizados por seu anti-intelectualismo e pela estranha alcunha de “cripto-estalinistas”. Ignorando aqui o uso (por motivos desconhecidos) do elemento “cripto”, o tal representante da intelectualidade se utiliza de um velho artifício retórico dos embates com e entre comunistas, a acusação de estalinismo, invocando a imagem irrazoável, bruta e autoritária de Stalin, criada muito mais pela necessidade ideológica de alçar o anti-comunismo e a russofobia do que pelas próprias características do nosso não tão querido Joseph. Essa imagem foi feita com especial facilidade por conta da origem pobre e geograficamente periférica de Stalin em oposição aos intelectuais tradicionais bolcheviques, como Trotsky de origem pequeno-burguesa. Mesmo na linguagem a distinção se revela enquanto desprezo à prática e à existência da classe trabalhadora.

O especial incômodo com o anti-intelectualismo aparece enquanto um problema quando se torna um argumento e uma acusação levada seriamente. O intelectual tenta deslegitimar seu interlocutor por meio da acusação de que este não dá o devido valor à existência dos intelectuais, ali, para cumprir com seu papel assumido de produzir conhecimento científico. De fato, esse é mesmo o seu papel socialmente atribuído, e seria natural que esse argumento fosse usado por qualquer tipo de intelectual, exceto por um cientista social. Ora, para que “anti-intelectual” sirva de base válida para qualquer argumento, é necessário antes de tudo que haja uma condição pressuposta em que o intelectual seja o sujeito que produz o conhecimento objetivamente válido. O problema é que as ciências sociais nos permitem entender justamente que a posição de produção do conhecimento objetivamente válido é uma posição em permanente disputa, sendo que nem mesmo entre os intelectuais existe um acordo comum sobre todo o conhecimento produzido. O “anti-intelectualismo” não é uma postura reprovável em debate. É uma condição material das disputas pela ideologia envolvida na luta de classes. Especialmente para intelectuais marxistas ou, no caso, leitores descompromissados de Marx, esse deveria ser uma das primeiras reflexões quando se trata de defender seu conhecimento produzido frente a demais agentes de diferentes camadas e classes sociais.

Mais especificamente, o “anti-intelectualismo” é uma expressão da profunda distância entre intelectuais e trabalhadores, distância construída por condições materiais e também pelos próprios intelectuais ao atribuírem à sua distinção o fundamento da sua existência na sociedade e da existência do seu conhecimento. Um ato de construção dessa distância e, na prática, da grande falha dos intelectuais em servirem à sua função, é justamente produzir análises tão absurdas do ponto de vista da luta política como a comparação entre a Revolução Cultural e o fascismo brasileiro. Mais poderoso do que isso ao cumprir o papel de gerar e aprofundar a distância é defender a comparação por meio da pureza teórica, da presunção de neutralidade, das acusações vagas de “autoritarismo”, a categoria que, por excelência, retira das experiências históricas suas particularidades mais relevantes para a luta de classes. O socialismo é igualado ao fascismo, a organização da classe trabalhadora é vergonhosamente igualada à organização da burguesia, como se pudéssemos entender todo o fenômeno político a partir de generalizações abstratas. Do ponto de vista do marxismo, esse tipo de movimento teórico é totalmente reprovável e a única explicação para que intelectuais declaradamente marxistas apoiem essas generalizações é sua trajetória e suas estratégias de legitimação dentro do próprio plano da construção da intelectualidade, de sua pureza, de seu apelo objetivista e desvinculado da política e, com ela, da parcialidade do ponto de vista particular.

O intelectual declaradamente marxista incorre aí em uma pujante contradição: por um lado, deve defender sua posição de intelectual, como qualquer agente em posição privilegiada dentro da estrutura social. Por outro, se filia a uma teoria que advoga justamente pela prevalência de um ponto de vista particular dentro da sociedade de classes, a saber, o ponto de vista particular da classe trabalhadora. Por mais que possamos dizer que a emancipação da classe trabalhadora é também a emancipação da humanidade, de forma a “universalizar” o imperativo político que fundamenta a teoria marxista, essa emancipação não aparece como universal na luta de classes, e muito menos na ideologia dominante que é o maior determinante na reprodução simbólica das posições da pequena-burguesia.

Essa é a grande contradição que podemos encontrar, por exemplo, no desenvolvimento de Bourdieu acerca da sociologia. Para o francês, a sociologia era a única ciência capaz de entender a si mesma, o que o permitiu entender os rituais e negociações de posições dentro do próprio campo acadêmico que, em última instância condicionam os rumos da ciência. No entanto, mesmo sendo capaz de entender seus próprios mecanismos, os sociólogos continuam agindo segundo os imperativos desse esquema, agora já desvelado. Isso porque de um lado temos o entendimento teórico, e de outro, temos o imperativo da existência material. O imperativo da reprodução do indivíduo em sua posição, aquilo que fundamenta seus valores, suas aspirações, seu bem-estar mental e físico, seus afetos. Se os intelectuais têm os instrumentos necessários para saber de onde falam e sob quais relações falam, como o reconhecimento da distância entre intelectuais e o ponto de vista da classe trabalhadora pode virar critério para qualquer tipo de validade objetiva? Somente por intermédio da ideologia própria da pequena-burguesia e, mais especificamente, da ideologia que rege as relações dentro do campo acadêmico e da intelectualidade brasileira.

Elementos para o comprometimento e a consequência intelectual

Ironicamente, tudo isso que foi dito neste texto não deixa de passar pelas teorias produzidas pela intelectualidade e com fins na reprodução da intelectualidade. Quem o escreve, outro pequeno-burguês com preocupações tipicamente pequeno-burguesas e inserido no espaço e nos circuitos da intelectualidade, para quem isto não deixa de ser uma profunda auto-crítica. E este é justamente o ponto: trata-se de ter comprometimento e consequência em relação à teoria marxista e, muito mais do que à teoria marxista, ao que o marxismo representa enquanto o ponto de vista prático, político e teórico da classe trabalhadora, meio pelo qual nós, da pequena-burguesia temos a oportunidade de transcendermos nossa posição social e sua imediaticidade, imposta pelas condições materiais do modo de produção capitalista e, assim, construirmos uma alternativa.

Parte desse comprometimento está em respeitar as experiências históricas da organização da classe trabalhadora, tal como a Revolução Cultural. Como destacou Togliatti, se trata do comprometimento em entender da forma mais profunda e construtiva possível as condições e os efeitos de revoluções e movimentos tais como a experiência chinesa, segundo seus determinantes de classe e no interesse do ponto de vista da classe trabalhadora que ali se fez reinante sobre seus antigos algozes. Talvez tão importante quanto isso, parte da consequência do intelectual está em se preocupar com os efeitos que a sua produção de conhecimento irá causar, consequência quanto a sua agência política, ao invés de apenas considerar que a pureza do trabalho intelectual é um fim em si mesmo e, portanto, deve prevalecer sobre todo tipo de efeito politicamente perverso que pode surgir dele. Mais claramente, comparar a Revolução Cultural ao fascismo brasileiro é antes de tudo, um golpe tanto às experiências históricas da classe trabalhadora em favor do discurso liberal que combate as experiências socialistas e também, de forma grossa e oportunista, o “autoritarismo” vago próprio dos fascismos. É um coro com o anti-comunismo que serve de base discursiva fundamental para o fascismo brasileiro. É a posição de um intelectual, em certa medida legitimado pela sua trajetória nos aparelhos do sistema educacional, em favor da crítica estética da política e da brutal perseguição de comunistas e demais movimentos que lutam pelo ponto de vista da classe trabalhadora. Essa inconsequência é algo que jamais deve ser apresentado por um intelectual e, muito menos, por um intelectual identificado com a teoria marxista ou mesmo somente com o campo da esquerda.

Não é apenas uma opção teórica, mas um dever de todo marxista e intelectual da esquerda defender a legitimidade das iniciativas políticas da classe trabalhadora, o que inclui a Revolução Cultural. Disso não se segue que devamos as defender acriticamente, mas sim tomar essas experiências como as formas historicamente produzidas do movimento da emancipação humana e da luta da classe trabalhadora. Não são pura e simplesmente objeto de conceituação e de crítica descompromissada. Ao igualar essas experiências ao fascismo brasileiro, não se está apenas negando o marxismo e seu tamanho, como também negando o movimento político pela emancipação da classe. Não há outra explicação senão uma grossa ideologia pequeno-burguesa.

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3 comentários em “Onde vivem e o que comem os Cripto-Estalinistas e o caráter material do anti-intelectualismo”

  1. Tem havido entre os intelectuais da pequena burguesia aquela síndrome, por mil vezes criticada, da tentativa de resolver os problemas concretos no plano abstrato, puramente intelectual. Algo bem religioso, de uma religiosidade pagã, em que modelos teóricos, bem articulados, com um sem número de referências explicativas e com possibilidades de publicação em alguma revista A2 ou quem sabe A1, no critério da CAPES.
    Muito bonito, mas não funciona! Seguindo Marx, estes intelectuais, até agora o que fizeram foi tentar explicar o mundo, e o problema real é transformá-lo, e isto só se faz com a mobilização e organização dos movimentos sociais, mas não para fazer passeatas, mas com um plano concreto de lutas.

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  2. Concordo com tudo que foi dito, mas é preciso dar nome aos bois, se não seremos tragados pela inconsequência de alguém que não conhecemos e que julgamos estar do nosso lado.

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