Se quisermos sobreviver neste planeta precisamos abandonar a causa do Estado-nação

Por Slavoj Žižek, via Newstatesman, traduzido por Ricardo de Mello Ramos.

As últimas notícias da fronteira entre a Ucrânia e a Rússia indicam que já vivemos uma situação de pré-guerra – então, o que nós, pessoas comuns, devemos fazer quando a explosão de loucura global se aproxima?


Talvez nossa primeira reação deva ser confrontar essa notícia sombria com uma outra série de notícias ainda mais catastróficas. Relatórios científicos recentes deixam claro que o nosso sistema global de alimentos está arruinado: de acordo com 130 institutos nacionais de ciência e medicina ao redor do mundo, bilhões estão subnutridos ou acima do peso, e nossa produção de alimentos está levando o planeta à catástrofe climática. Fornecer uma dieta ambientalmente amigável para todos nós exigirá uma transformação radical do sistema.

Mas não é apenas o sistema global de alimentos que está quebrado. Tal como aprendemos de modo abundante com os últimos relatórios ambientais, o diagnóstico científico da nossa situação é bem simples e direto: se não reduzirmos as emissões de gases de efeito estufa em 45% nos próximos 12 anos, as cidades costeiras serão inundadas, a comida será escassa, etc. E, novamente, para fazê-lo, é necessária uma rápida e radical transformação social, o que afetará profundamente todas as esferas da nossa vida. Então, como conseguir isso?

Fora eliminar rapidamente os combustíveis carbono-intensivos, outra abordagem mais dramática é considerada: GRS[1] (gestão de radiação solar), a contínua dispersão massiva de aerossóis em nossa atmosfera para refletir e absorver a luz solar e assim resfriar o planeta. No entanto, a GRS é extremamente arriscada, como Kate Aronoff descreve em um artigo recente do “In These Times. Ela poderia diminuir o rendimento das colheitas, alterar irreparavelmente o ciclo da água, para não mencionar muitos outros “desconhecidos desconhecidos” – não podemos sequer imaginar como o frágil equilíbrio da nossa terra funciona e de que maneiras imprevisíveis esse tipo de geoengenharia pode perturbá-lo. Além disso, é fácil adivinhar por que o GRS é tão popular entre muitas empresas: em vez de uma dolorosa mudança social, ele oferece a perspectiva de uma correção tecnológica direta de nosso maior problema. Estamos em um verdadeiro impasse: se não fizermos nada, estamos condenados, e o que quer que façamos envolve riscos mortais… Quem tomará as decisões aqui? Quem está qualificado para isso?

Fenômenos como o aquecimento global nos fazem cientes de que, com toda a universalidade de nossa atividade teórica e prática, em um certo nível básico nós somos apenas mais uma espécie viva no planeta Terra. Nossa sobrevivência depende de certos parâmetros naturais que tomamos como dados. A lição do aquecimento global é que a liberdade da humanidade só foi possível contra o pano de fundo dos parâmetros naturais estáveis ​​da vida na Terra (temperatura, composição do ar, fornecimento suficiente de água e energia, etc.). Os seres humanos podem “fazer o que querem” apenas na medida em que permanecem marginais o suficiente para não perturbar seriamente os parâmetros da vida na Terra.

A limitação de nossa liberdade que se torna palpável com o aquecimento global é o paradoxal resultado do próprio crescimento exponencial de nossa liberdade e poder: nós agora somos tão fortes que podemos desestabilizar os próprios parâmetros geológicos básicos da vida na Terra. A “natureza” torna-se literalmente uma categoria sócio-histórica, mas não no sentido marxista exaltado (o conteúdo do que é – ou conta para nós como – “natureza” é sempre sobredeterminado por condições históricas que estruturam nosso horizonte de compreensão da natureza). Ela se torna uma categoria sócio-histórica no sentido muito mais radical e literal; a natureza não é apenas um pano de fundo estável para atividade humana, mas é afetada por essa atividade em seus componentes básicos. O modo como desenvolveremos nossa economia nas próximas décadas poderá afetar não apenas nosso futuro, mas o futuro de toda a vida na Terra. Centenas de espécies animais já estão desaparecendo; o gelo polar está derretendo. E o paradoxo é que não há retorno simples a algum equilíbrio anterior: é também possível que a vida na Terra já tenha se adaptado tanto à nossa atividade que, se de repente parássemos de produzir e consumir, isso também causaria uma catástrofe.

Em suma, a perspectiva de geoengenharia implica que estamos até os joelhos no “antropoceno”, uma nova época na vida de nosso planeta na qual nós, humanos, não podemos mais confiar na Terra como um reservatório pronto para absorver as conseqüências de nossa atividade produtiva. A Terra não é mais o pano de fundo ou horizonte impenetrável de nossa atividade produtiva. Ao contrário, ela surge como (mais) um objeto finito que podemos destruir ou inadvertidamente transformar ao ponto torná-lo inabitável. Aí reside o paradoxo do antropoceno: a humanidade tomou consciência de sua autolimitação enquanto espécie precisamente quando se tornou tão forte que influenciou o equilíbrio de toda a vida na terra. Ela foi capaz de sonhar em dominar e explorar a natureza, apenas enquanto sua influência sobre a natureza (terra) era mínima, isto é, contra o pano de fundo da natureza estável. O paradoxo é que quanto mais a reprodução da natureza depende da atividade humana, mais ela escapa ao nosso controle. O que nos ilude não é apenas o lado escondido da natureza, mas, acima de tudo, as conseqüências impenetráveis ​​de nossa própria atividade.

Então, sim, nós estamos numa profunda confusão: não há uma solução “democrática” simples aqui. A ideia de que as pessoas elas mesmas (não apenas os governos e as corporações) devem decidir soa profunda, mas levanta uma questão importante: mesmo que sua compreensão não seja distorcida por interesses corporativos, o que os qualifica para julgar um assunto tão delicado? Mas o que podemos fazer é pelo menos definir as prioridades e admitir o absurdo de nossos jogos de guerra geopolíticos quando o próprio planeta pelo qual guerras são travadas está sob ameaça.

A lógica da competição entre Estados-nação é extremamente perigosa porque se opõe diretamente à necessidade urgente de estabelecer um novo modo de relação com os nossos entornos, uma mudança político-econômica radical chamada por Peter Sloterdijk de “domesticação da cultura de animal selvagem”. Até agora, cada cultura disciplinou e educou seus próprios membros e garantiu a paz cívica entre eles sob o disfarce do poder estatal, mas a relação entre diferentes culturas e estados permaneceu sob a sombra de uma guerra potencial, com cada estado de paz sendo nada mais que um armistício temporário. Toda a ética de um Estado culmina no mais alto ato de heroísmo: a prontidão para sacrificar a própria vida pelo seu Estado-nação, o que significa que as relações bárbaras entre Estados servem como fundamento da vida ética no interior de um Estado. A Coreia do Norte de hoje, com sua implacável busca por armas nucleares e foguetes de longo alcance, não é o melhor exemplo dessa lógica de soberania incondicional do Estado-nação?

No entanto, no momento em que aceitamos plenamente o fato de vivermos numa “Espaçonave Terra”, a tarefa que se impõe urgentemente é a de civilizar as civilizações elas mesmas, de impor solidariedade universal e cooperação entre todas as comunidades humanas, uma tarefa tornada ainda mais difícil pelo crescente aumento de violências sectárias religiosas e étnicas, a “heroica” prontidão para sacrificar a si (e ao mundo) por uma causa específica.

A razão, portanto, nos compele a cometer traição nesse ponto: trair nossa causa, recusar-nos a participar dos jogos de guerra em andamento. Se realmente nos importamos com o destino das pessoas que compõem nossa nação, nosso lema deveria ser: América por último, China por último, Rússia por último…


[1]  No original, SRM (Solar Radiation Management).

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