Sobre armas e homens: cinco dimensões de uma tragédia anunciada

Por Pedro Ambra

Nesta semana foi assinado o prometido decreto sobre a flexibilização na posse de armas de fogo. Dentre as inúmeras reações críticas, proliferaram os estudos que mostram seu impacto negativo na segurança pública e muito provável aumento no número de mortes por arma de fogo que se seguirá.[1]


Mas, apesar dessa evidente constatação, acho importante sublinhar que por trás da pirotecnia farsesca da segurança pública, a liberação da posse de armas tem um forte, fortíssimo componente de gênero. Em resumo, alguns dos porquês.

Em primeiro lugar, seu público alvo são homens. Homens violentos, homens amedrontados, homens frágeis e homens que ostentam terão agora no fetiche da bala uma ilusão de solução de seus problemas — reais e imaginados. Esse é o apelo semântico. Está em jogo aqui fornecer uma significação, uma identidade para vivências que (tanto em decorrência das conquistas da luta feminista, quanto do real aumento da violência no Brasil e, principalmente, de seu alardeamento sensacionalista) sentem-se fraturadas e imaginam-se encurraladas, perseguidas. A arma é vendida aqui, no fundo, como uma promessa de restituição de sentido.

Mas o decreto não apenas libera a posse àqueles que nutrem uma nostalgia de uma identidade e segurança e que aguardavam há tempos sua liberação. Mais grave do que isso é o discurso que roteiriza e gera masculinidades que se meçam pelo padrão bala. Eis sua dimensão performativa[2]. Em outras palavras, está em curso uma linha de montagem não só de pistolas e projéteis, mas de subjetividades que terão esse horizonte como ideal. Ao colocar holofotes na cena de assinatura do decreto — esvaziada, a propósito[3] — e, mais ainda, produzir uma peça publicitária que chancela e defende o ato[4], o governo está investindo pesadamente na produção de masculinidades marcadas por esse modelo.

Além disso, como tem sido dito, o decreto libera (por meio de uma maquiagem burocrática feita na calada da noite[5]) em todos os 27 estados da União a posse e não o porte de armas, ou seja, em teoria as armas só poderiam ficar no trabalho ou em casa. Na prática, isso significa que num país com índices alarmantes de violência contra a mulher teremos, a partir de agora, homens incentivados a ter uma arma dentro de casa.[6] Imagine para onde vão caminhar as “discussões” de casais Brasil afora. Essa é a dimensão estritamente patriarcal e patrimonialista do problema.

No entanto, considerando o tanto a ignorância quanto o desprezo pelas leis, é claro que essas armas circularão. De um lado, teremos não apenas o feminicídio e a violência domésticos, mas um componente adicional nos casos de estupro que, como sabemos, são cometidos também (e talvez sobretudo) pelos “cidadãos de bem”. De outro, temos a incitação de violência não só contra a mulher, mas entre homens. Não é muito difícil imaginar o que serão as baladas, as brigas de trânsito e os desentendimentos entre vizinhos. E, claro, esses impactos serão sentidos sobretudo na população preta, pobre e periférica. Essa é a espessura edípica da questão, que articula, pela suspensão da proibição, tanto a questão sexual quanto aquela da violência: não nos esqueçamos que Édipo só rompe com a proibição do incesto porque matou seu pai, surpresa, numa briga de trânsito num cruzamento a caminho de Tebas.

Por fim, há ainda um último elemento que torna o cenário ainda mais desolador: o consumidor da arma de fogo não necessariamente é seu usuário final. Estamos falando aqui dos suicídios que encontram na posse de armas uma ocasião privilegiada de passagem ao ato. A cultura das armas (cultura entendida aqui não só em seu sentido de culto, mas também em sua acepção bacteriológica) forma um ambiente ideal para a proliferação do caráter quase epidêmico de suicídios em alguns grupos. Estudos feitos pela Universidade de Pittsburgh mostram que o risco de suicídio em adolescentes é 30 vezes maior quando os pais possuem arma em casa.[7] No Brasil, em apenas 5 anos a taxa de suicídios na população negra aumentou 55,4 % em relação aos demais grupos étnico/ raciais[8]. Entre mulheres, o aumento no número de suicídios já é duas vezes mais rápido do que em relação aos homens[9]. Há aí, portanto, um insidioso meio de extermínio de grupos minorizados, nos quais a sombra de sua dominação recai sobre o/a próprio assujeitado/a. Eis o caráter melancólico da questão.

O que os homens do governo e sua boiada querem não é segurança. É aumentar, ainda mais, o poder de homens privilegiados. Nesse sentido, o decreto assinado é menos uma política pública de segurança e mais um capítulo das políticas de gênero e de aumento das desigualdades do novo governo.


Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Université Paris Diderot, é professor universitário e pesquisador. Email para contato [email protected]


[1] Ver https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/11/ampliar-acesso-a-armas-nao-reduz-conflitos-com-mortes-mostram-dados-cientificos.shtml

https://oglobo.globo.com/sociedade/ter-arma-em-casa-aumenta-numero-de-morte-de-criancas-mostram-estudos-23206078

https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/06/estudos-revelam-quanto-mais-armas-mais-mortes.html

[2] A ideia de que o gênero não é propriamente uma identidade, mas uma cristalização de uma série de atos discursivos e performativos é o cerne da proposta de Judith Butler em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade.

[3] “Quando o presidente entrou no Salão, quase metade das cadeiras estavam vazias. “Obviamente, não tem mais aqui porque estamos em recesso, mas a bancada da legítima defesa é muito grande”, justificou. Em:  https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/01/15/bolsonaro-decreto-flexibilizacao-posse.htm

[4]https://www.valor.com.br/politica/6065727/video-propaganda-do-governo-diz-que-posse-e-para-legitima-defesa

[5] “No texto preliminar, esse recorte valia para os municípios, o que excluía 2015 municípios que estavam abaixo desse índice. Mas o presidente fez mudanças no texto: substituiu municípios por estados. No Brasil, todos os estados atingem esse índice, segundo o Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Portanto, a posse de armas será possível em todas as cidades brasileiras.” Em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/01/15/bolsonaro-assina-decreto-que-facilita-posse-de-arma.ghtml

[6]https://oglobo.globo.com/brasil/metade-das-mulheres-mortas-em-2016-foram-vitimas-de-armas-de-fogo-23374188

[7] http://www.boasaude.com.br/noticias/202/ter-armas-em-casa-aumenta-o-risco-de-suicidio-em-adolescentes.html

[8] http://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/setembro/parceria-para-reduzir-indice-de-suicidio-na-populacao-negra

[9] https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2018/06/15/taxa-de-suicidio-de-mulheres-cresce-mais-rapido-que-de-homens-diz-estudo.htm

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