A batalha comunicacional: Aproveitar as fissuras do adversário

Por Pedro Santander Molina, via Dominio Cuba, traduzido por Igor Galvão

É momento de reafirmar com a maior força possível, com convicção e ruído, a existência e a necessidade de uma esquerda.

A batalha comunicacional, que definitivamente é uma batalha cultural, não se define apenas pelos meios de comunicação. Igualmente importante nessa luta são os discursos que se tornam legítimos e hegemônicos, pois as forças em oposição também se constituem discursivamente.

O discurso ultradireitista já está instalado. Emergiu de forma rápida e se estabeleceu enquanto força política e discursiva na Europa, Estados Unidos e América Latina. Coisas como o ódio ao diferente e o amor as ditaduras que pareciam coisa do passado, hoje formam parte de programas de governo e candidaturas presidenciais. Discursos que até pouco tempo pareciam inconcebíveis, hoje se estendem com força e popularidade. Este desenvolvimento de discursos que muitos acreditavam impossíveis e que, de fato, o eram até pouco tempo atrás, nos adverte acerca de profundidades da vida social que vale a pena tentar de compreender.

Três hipóteses a respeito:

a) Há uma disputa pela hegemonia dentro do bloco dominante. Esta responde a um reordenamento das correlações de força no interior de tal bloco. A tensão ocorre entre os defensores do neoliberalismo clássico-tecnocrático e do neoliberalismo de ultradireita, e se expressa nos discursos de ambos os polos.

b) O discurso ultradireitista se mostra efetivo para resolver – por enquanto – as tensões de classe que o mesmo neoliberalismo criou globalmente ao enriquecer os mais ricos como nunca na história. Mesmo assim, a discursividade neofascista tem sido eficiente para canalizar a fúria social criada pelo próprio neoliberalismo, o que permite dirigir a indignação contra outros e não contra o sistema. Esta eficiência discursiva permitiu gerar conexão narrativa com setores médios e populares, o que garante ganhos eleitorais.

c) A disputa no interior do campo dominante é uma oportunidade para a esquerda de recobrar sua identidade de classe, de articular-se globalmente e de reconectar e repolitizar o social. Para isso, é preciso aproveitar a disputa intra-bloco, comunicacional e discursivamente.

Após quatro décadas de implementação global do neoliberalismo, podemos distinguir três corrente discursivas que o conformam e que tem se estruturado com o tempo: o neoliberalismo progressista, o neoliberalismo clássico-tecnocrático e o neoliberalismo de ultradireita. Certamente, as três tem em comum uma série de coisas, a principal delas é que não questionam o papel central do mercado no ordenamento social. Sua defesa de sociedades cuja instituição principal seja o mercado é essencial, irredutível.

Não obstante, hoje podemos ver certos limites na narrativa neoliberal, e nesse marco emergem diferenças e tensões, cada vez mais notórias, que dão conta de uma disputa pela hegemonia no interior do bloco dominante.

Ao falar em neoliberalismo progressista (denominação cunhada por Nancy Fraser) nos referimos a esta esquerda social-democrata que depois da queda do muro de Berlim se tornou liberal e culturalista. A “esquerda” que levantou o discurso da “Terceira via”, do “capitalismo humanizado”, enquanto promovia as privatizações de empresas públicas, a cooptação dos movimentos sociais e a desmobilização da militância política e sindical. Para seguir mantendo certo ar progressista, realocaram sua identidade classista e a crítica estrutural contra a sociedade capitalista por um discurso culturalista, identificando-se em essência pós-moderna com lutas de reconhecimento identitário, sintonizando assim com uma minoria ilustrada.

A esse progressismo se tornou bom apoiar-se nesse tipo de temas, assim mantiveram certa aura de esquerda sem ter que enfrentar as dinâmicas capitalistas, o que é sempre mais complicado. Enfrentar ao poder tem custos, e é preciso ter coragem para faze-lo. Sua deriva – como não poderia ser de outro modo – tem sido a mais patética: tem se tornado cada vez mais irrelevante, tanto seus partidos como seus líderes, falamos aqui de gente como Tony Blair, Gerhard Schroder, Ricardo Lagos, Felipe Gonzáles ou Enrique Cardoso. Claro, como costuma acontecer com a social-democracia, quando renuncia a sua identidade classista e renega um projeto de sociedade diferente do capitalismo, entra em um terreno ao qual vai perder (e se perder). No contexto atual, isso significou ter sido débil em frente aos neoliberais clássicos cujos discursos se impuseram globalmente.

Quando tratamos de neoliberalismo clássico, nos referimos aos herdeiros do Consenso de Washington, os filhos de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Francis Fukuyama. Esta discursividade põe ao centro a defesa da ordem liberal-democrática e a difusão à escala mundial dos valores “democráticos” e “civilizadores”. Sua performatividade discursiva tem dimensões globais graças à ação comunicacional das corporações midiáticas que possuem; fundamentalmente dispositivos tradicionais como o cinema, jornais, televisão, rádios e editoriais. São estes os meios aos quais apostam e que usam politicamente. Segundo sua concepção, não poderia haver democracia sem capitalismo, considerando-se ambos intrinsecamente inseparáveis. Seu discurso é pseudo-cientificista, e nesse marco consideram suas ideias como técnicas e objetivas, com base no saber da ciência matemática e econômica.

Nesse sentido, apoiados entusiasticamente pelos neoliberais progressistas, promoveram um individualismo hedonista e competitivo, e através de um discurso politicamente correto e de centro-centro, incentivaram a apatia política dos sujeitos, a despolitização da sociedade e o descrédito dos espectros políticos esquerda-direita. Só existiria um centro gravitacional: o centro. Isso porque de acordo com a tese de Fukuyama, a democracia liberal seria o fim da historia evolutiva da humanidade e dos antigos enfrentamentos ideológicos. Esse discurso “impossibilista” e anti-utópico, que enfatiza a ausência de alternativas validas ao neoliberalismo e qualifica como “irracionalidade” se opor aos postulados do mercado, foi até agora o hegemônico e o que governou amplamente nas últimas décadas.

No entanto, seus postulados, seu estilo e sua comunicação política defendida por dirigentes como Macri, Piñera, Aznar, Santos, Merkel, Macron, etc., são hoje postos em tensão e questionados por líderes de ultradireita como Le Pen, José Antonia Kast, Iván Duque, e, certamente, Trump e Bolsonaro, no marco de uma disputa pela hegemonia no interior do bloco dominante. Não casualmente, escutamos recentemente a Madeliene Albright, ex Secretaria de Estado Estadunidense, advertir contra esse perigo do autoritarismo e qualificar-lo, sem pudores, de “fascismo”. Em sua opinião, a democracia nos Estados Unidos e no mundo está em perigo, e os governos livres “estão em franca recessão, em decadência, em total retrocesso, completamente assediados”.

Efetivamente, o neoliberalismo de ultradireita, passou de uma exceção periférica para se localizar na centralidade do tabuleiro, e já está alternando os termos discursivos do debate político, tanto em seu conteúdo, como em sua forma. Hoje confonta o neoliberalismo clássico-tecnocrático em relação à linguagem usada na comunicação política e com que significados construir sentido comum. Linguagem e sentido comum, as bases para a formação do discurso dominante, por isso sustentamos que se trata de uma disputa interna pela hegemonia, quer dizer, pela direção que irá o bloco histórico.

O neoliberalismo de ultradireita levanta dicotomias com o discurso clássico-tecnocrático, tanto no terreno econômico – por exemplo: desglobalização versos globalização – como no terreno doutrinário – liberalismo dos valores versos ideologia de gênero. Nesse sentido, se destaca a impugnação que faz da “linguagem politicamente correta”, estilo que tem sido próprio do neoliberalismo clássico. Escutamos aos seus máximos dirigente, como o próprio Trump dizer que “não tenho tempo para a linguagem politicamente correta”. Esta convicção é repetida por líderes de ultradireita na Europa, EUA e América Latina, de maneira coordenada, e sob esse mantra não temem dizer coisas que há pouco eram consideradas tabu e que fundamentam seu discurso classista, racista e misógeno, ou seja, seu discurso de ódio. Dessa forma tensionam o estilo apolítico, neutro, asséptico do discurso neoliberal clássico, estilo que responde a uma visão fukuyamista que propaga o fim de todo antagonismo.

Foi o discurso da ultradireita o que possibilitou o retorno de substantivos fortes (como pedia Sousa Santos a esquerda) frente aos débeis, que foram marcadamente usados pelo discurso tecnocrático. Palavras como “ideologia de gênero”, “lixo marxista”, “doutrinação ideológica”, “limpeza”, “os bons e os maus” etc, povoam esse discurso. Paradoxal e dialeticamente facilitaram o retorno de termos que a teoria política liberal-individualista queria eliminar, pois, antagonicamente, também se estão revitalizando conceitos como “supremacistas”, “fascismo”, “nazismo”, “ideologia de ódio”, “extrema direita”, etc.

Uma das consequências do discurso politicamente incorreto e dos substantivos fortes usados pela ultradireita é que repolitizou o discurso público. Por sua vez, se revitalizou o sentido político dos espectros esquerda-direita. Deste modo, está deixando em frangalhos os esforços de 40 anos dos neoliberais tecnocratas – seguido pelos progressistas – de destruir e diluir essas distinções clássicas. Falamos de décadas em que se foi constituindo um imaginário no qual não há nem esquerda nem direita, todos seriam de centro. Alguém pode sustentar isso a luz de Le Pen, Salvini, Bolsonaro ou Trump? Por acaso há alguma melhor categoria que “ultradireita”para se referir a eles? Não, não há.

Dessa maneira, o neoliberalismo depois de passar por suas formas “progressistas” e “tecnocratas”, repõe o vínculo com sua origem autoritária e extremista: não esqueçamos que seu engendramento é no Chile de Pinochet.

A esquerda

Se há direita e ultradireita, é porque existe esquerda. Carece de sentido os discursos que afirmam que os espectros direita-esquerda esta o obsoletos. Se assim fosse, como classificar Bolsonaro e Trump? Paradóxamente, a ultradireita com seu discurso de ódio e sua disputa com o centrismo radical tecnocrático abriu um espaço discursivo a esquerda, pois se cristalizou no mapa político e objetivado as posições no interior do mesmo.

É, portanto, o momento de reafirmar com a maior força possível, através de todos os canais, com convicção e ruido a existência e a necessidade de uma esquerda, como categoria e como realidade política. Acabou-se o tempo do discurso politicamente correto. Frente a frustração social que o neoliberalismo provocou, as explicações tecnocráticas, assépticas, abstratas perdem performatividade. O discurso voltou a se politizar.

Por hora, o neoliberalismo encontrou no discurso extremista um método para canalizar a revolta e tensão social, e evitar que a dita revolta se dirija ao sistema que a causa. Porém ao fazê-lo, assumiu uma posição anti-elite que, se bem lhe deu resultados eleitorais, objetivamente também reforçou o ódio social aos ricos, politizando o social.

O conflito de classes está ai e é inocultável. Neste momento se apresenta – ainda – distorcido e se atenua aglutinando setores populares contra outros setores populares em uma infinita lista de ódio. Nesse marco, devemos observar que a extrema direita fala criticamente das consequências concretas de uma globalização com poucos ganhadores e muitos perdedores, enquanto a esquerda se dedicou, sobretudo, a falar abstratamente das causas.

Não obstante, este pode ser novamente o momento para a esquerda, se souber conjugar discursivamente as consequências e causas. Há um histórico sentido de separação dos povos frente às classes dominantes que deve ser ativado em uma lógica anticapitalista. Amplos setores do povo não estão dispostos a aceitar o ódio de classe, o racismo e o machismo; esse rechaço confere coesão e a repolitização do social abre espaços discursivos para por o estrutural no centro da agenda.

Para isso, se dizer, reafirmar e mostrar de esquerda é hoje urgente. Não esqueçamos daquilo que Gramsci nos ensina: se os setores dominados não contam com uma discursividade própria, construirão sua identidade a partir do discurso dominante. Ai está hoje uma de nossas tarefas no marco da batalha comunicacional.


*Pedro Santander é Doutor em Linguística da PUC de Valparaíso.

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